Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXXIX)

Azoia de Baixo, 19 de julho de 2042

Setembro de vinte e dois foi um verdadeiro “separador de águas”. Se cruzase metaforas com o que Bauman diria, não foi uma “pororoca” o que aconteceu, mas um lento mesclar de “líquidas” trajetórias. Hoje e à distância de duas décadas, talvez se possa considerar o fenómeno como uma saudável “inundação”, uma incontida correnteza, que soltou amarras e arrastou grades e silêncios. Era chegado o tempo de se cumprir um sonho alimentado ao longo de mais de meio século.

Num linguarejar mais prosaico e acessível ao comum dos mortais, o teor do documento-base das transformações operadas – o “plano de inovação” – abria com uma perspícua citação do “Currículo em Movimento da Educação Básica”:

“Quando a comunidade se constitui como parte atuante da escola, com voz e participação na construção coletiva do projeto político-pedagógico, surge o sentido de pertencimento, isto é, a escola passa a pertencer à comunidade, que, por sua vez, passa a zelar com mais cuidado por seu patrimônio; a escola começa a sentir-se pertencente àquela comunidade e começa a criar, planejar e respirar projetos de interesse de sua gente, da sua realidade” 

Nítidos eram, também, os objetivos:

“A Comunidade de Aprendizagem não é mais um projeto, ou mais um paliativo de um modelo de ensino. É uma nova construção social de aprendizagem, que concretiza o disposto na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos da Criança”. O objetivo geral será o de conceber uma nova construção social de aprendizagem, que a todos garanta o direito à educação, através da criação de uma rede de protótipos de comunidades de aprendizagem”.

Em Portugal, esse documento concorria para que se cumprisse o estabelecido no Decreto-Lei 55/2018, de 6 de julho de 2018. No Brasil, entre outras leis, a Resolução Nº 60, de 18 de novembro de 2021, da Secretaria de Educação de Mogi das Cruzes, bem como a Portaria Nº 276, de 16 de agosto de 2019, da Secretaria do Diatrito Federal. Esses normativos instituíam “grupos de trabalho para a proposição de diretrizes de política pública para a implantação e implementação de comunidades de aprendizagem”.

O “plano de inovação” visava contribuir para concretização dos objetivos inscritos nos projetos educativos das escolas, a saber: promover o crescimento do educando em todos os aspectos: físico, mental, intelectual, emocional, afetivo, psíquico, para que ele possa interferir, atuar e transformar o seu meio, de forma ética, na perspectiva do desenvolvimento sustentável do ser humano e da comunidade em que se integra, reconfigurar práticas educativas, que não se enquadrem na concepção de novas construções sociais de aprendizagem e de educação; produzir práticas integradas (na confluência dos paradigmas da instrução, da aprendizagem e da comunicação), religando instituições (Família, Sociedade e Escola), unindo Cultura, Saúde e Educação, em projetos de educação integral.

Enquanto esse promissor  futuro era deliniado nas duas margens do Atlântico, no extremo da Europa dita civilizada, aeronaves militares sobrevoavam a cidade ucraniana de Mariupol. No chão contíguo ao teatro municipal, onde centenas de mulheres e crianças aterrorizadas se escondiam, alguém havia pintado um enorme pedido de misericórdia: “CRIANÇAS”. 

De nada valeu o apelo. À semelhança do que sucedeu com escolas e hospitais, o prédio do teatro foi bombardeado, centenas de pessoas foram mortas. A comunicação social propalava as atrocidades cometidas juntando às notícias fotografias de valas comuns e de corpos estendidos nas ruas.

Por: José Pacheco

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