Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXXXVIII)

Santo Aleixo, 18 de julho de 2042

Os encontros do périplo português dos idos de vinte tinham sido oportunidades de voltar a acreditar. E de confirmar que o principal obstáculo à mudança era eu, ou cada um de nós, enfermos de uma cultura pessoal e profissional reprodutora de um determinado modelo escolar e social. 

Não se afigurava fácil a reelaboração cultural comunitária, sobretudo quando havia quem contaminasse o debate de novas práticas com exóticas palavras e expressões, como: “sala de aula”, “turma”, “vaga”, “carga horária”…

As palavras produziam e reproduziam uma cultura inculcada no pensamento e no espírito, tanto nos adultos, quanto nas crianças. Era o caso do Domingos, que, no seu primeiro dia na Ponte, veio ao meu encontro, contorcendo-se, com ar de quem tinha a bexiga cheia. Perguntei:

“Queres saber onde é o quarto de banho, meu menino?”

Respondeu:

“Ó chefe, onde é que se mija?”

O seu grupo de integração já havia sido referido por duas vezes no dispositivo “Acho Mal”: 

“O Domingos disse cagadeira”. “O Domingos chamou panasca ao Rafael”.

Acaso alguém registasse uma terceira asneira proferida pelo Domingos (ou palavra que fosse considerada “palavrão”) o grupo de acolhimento e integração iria inteirinho para “tribunal”. 

Nos primórdios da Ponte, os jovens criavam dispositivos inspirados em arcaicas instituições dos adultos. Mais tarde, através de um enorme investimento no domínio sócio emocional, o tribunal viria a ser substituído pela criação de “comissões de ajuda”. Na Ponte, todos respondiam por todos. Individualmente, cada aluno ou professor era responsável pelos atos do seu coletivo. 

Conscientes do risco de virem a ser convocados pelo “Tribunal”, por via dos impropérios proferidos pelo Domingos, os seus companheiros levaram-no a incluir uma singular tarefa na sua planificação. O Domingos deveria procurar no dicionário as palavras “proibidas”. E assim fez.

A primeira palavra era “cagadeira”. Procurou-a na letra C. não a encontrou. Os companheiros sugeriram que procurasse na letra S a palavra “sanita”. Apareceu. O Domingos apagou o dito “palavrão” e no seu lugar escreveu o novo termo. Depois, trocou “cagar” por defecar. E por aí adiante…

“Diz aqui “expelir fezes pelo ânus”. O que é “expelir?”

“Vê no dicionário” – retorquiram os colegas.

“E o ânus é o cu?”

Pouco a pouco, o Domingos foi montando um novo glossário. Mas, forçado a modificar o seu léxico, jurou vingança. 

“Não fica assim” – murmurava entredentes. 

Concluída a tarefa, dirigiu-se ao dispositivo “Acho Mal” e nele escreveu:

“Eu acho mal que os meninos vão à casa de banho e, depois de defecar as fezes, deixem a sanita toda cagada”.

Uma reelaboração da cultura pessoal, profissional e comunitária começara no mês de outubro de 76. O André, vosso pai, nascera nesse mês. E o vosso avô começara, nesse mesmo mês, a “travessia da Ponte”. Em escassos anos, a escola ficou preparada para acolher o vosso pai e outros filhos de pais desejosos de que a escola de todos fizesse pessoas sábias, seres humanos felizes. 

Outro passo fora dado fora de Portugal, quando um esboço de comunidade de aprendizagem se implantou naquilo que foi o Projeto Âncora e, mais tarde, a Escola Aberta de São Paulo. 

Portugal voltaria a inovar, há exatos vinte anos. Um convite “especial” foi dirigido a centenas de educadores. Já não era um professor juntando-se a outros professores, para cumprir um projeto. Uma nova geração de pais e outros educadores idealizaram e fundaram novas construções sociais de aprendizagem e de educação, viabilizada por uma formação concomitante com a mudança. 

 

Por: José Pacheco

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