Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXLII)

Freixo do Meio, 22 de julho de 2042

Parece que terei entrado numa espécie de “onda”, como disse o Marcos, de invocação de mulheres ilustres. Hoje, vos falarei de uma poetiza (ou poeta, como se diz no Brasil), que viajou do Rio para Lisboa ao encontro de outro poeta, que não conseguiu encontrar.

No dezembro de 1934, uma notícia de jornal anunciava “o desembarque em Lisboa da “poetisa do Brasil”. Chegada a Lisboa, Cecília Meireles foi até ao café “A Brasileira”, local combinado de encontro. Após uma longa espera, regressou ao hotel. Na recepção, foi-lhe entregue um livro autografado pelo poeta que faltara ao encontro. 

O presente estava acompanhado por um bilhete, no qual Fernando Pessoa apresentava a razão da ausência. Pela manhã, ele tinha lido o seu horóscopo e havia concluído que aquele não era um bom dia para encontrar a Cecília. Nessa noite chuvosa de tempos sombrios, foi grande o desapontamento da Cecília. Seria a última oportunidade de conhecer o poeta, pois Fernando Pessoa estava no penúltimo ano de sua vida.

Outro poeta português – Ary dos Santos –  nos dizia que, “quando um povo acorda, é sempre cedo”. Quando um país tende a renascer de tempos sombrios, acontecem reencontros e se torna atual o apelo lançado em versos pela Cecília: 

Vem, retira as algemas dos meus braços / Porque a vida só é possível reinventada”.

Também eram tempos sombrios aqueles em que a poetisa os publicava. E, decorrido mais de um século, eles continuam a ecoar como exercícios de indignação, perante as injustiças do cotidiano. 

A Cecília pedagoga foi contemporânea de um Freinet consciente de que “os professores foram tão longamente condicionados pela velha pedagogia que permanecem como que enfeitiçados, incapazes de se libertarem de práticas de que conhecem, por experiência, os perigos”. 

As suas crónicas rompiam a apatia de quem não se apercebia de que a Escola reproduzia iniquidades. Cecília denunciava uma velha construção social, que dava pelo nome de “Escola”, feita de edifícios rodeados de grades, feitos de salas habitadas por solidões, qual cadáver adiado suportado por enfeites paliativos. 

Para a Cecília, ser professor consistia em, permanentemente, viver na idade dos porquês, ousar perguntar: 

Por que razão há crianças que não aprendem? 

E, depois, ter a coragem de mudar. 

Queridos netos, hoje, voltei à leitura da poesia e das crônicas da Cecília. Já as lestes? 

Nnunca encontrei as suas corajosas “crônicas da educação” nas bibliotecas das faculdades de pedagogia. Comprei os cinco volumes da coleção num cebo virtual e os fui oferecendo. No baú das velharias, apenas resta um deles, à mistura com leituras do Darcy, que fazia eco das palavras da sublime poeta, ao denunciar “gente ruim, sem pudor, sem escrúpulos”

Cecília Meireles ousou romper com tabus de uma sociedade tão moralmente doente quanto a dos idos de vinte. Num julho de há mais de cem anos, denunciava um regime, que invocava “a Liberdade como sua padroeira”, enquanto submetia o povo a “velhas situações de rotina, de cativeiro e de atraso”. 

Ser poeta é o mesmo que ser educadora e, pelos seus dezesseis anos, a Cecília se fez professora. Quando se candidatou à cátedra de literatura da Escola Normal, foi preterida, porque a sua tese sobre liberdade individual não agradou ao júri. Foi alvo de perseguições, porque expressou a sua rebeldia nas páginas dos jornais do Rio da década de trinta, quando pugnava por uma efetiva renovação educacional, por “uma reforma de finalidades, de democratização da escola (…) todas essas coisas que a gente precisa conhecer antes de ser ministro da educação”. 

Por: José Pacheco

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