Torre da Gadanha, 25 de julho de 3042
Netos queridos, acaso ouvistes falar do “Crime da Aldeia Velha”? Em 1934, na aldeia de Soalhães, uma mulher foi queimada viva por, supostamente, estar possuída pelo diabo. Dado curioso: consumada a execução, os seus assassinos foram para a igreja rezar para que a mulher ressuscitasse.
Um dramaturgo viria a narrar esse crime numa obra indigadora dos rituais do poder e da repressão social da liberdade e individualidade, da miséria e do obscurantismo reinantes na Ditadura.
Arminda de Jesus foi queimada viva por familiares, que afirmavam estar a mulher possuída pelo demónio. Uma “mulher sábia” os havia aconselhado a queimarem-na, como forma de purificação. A “mulher sábia” assegurara que a morta deveria renascer ,depois de queimada, livre da possessão demoníaca.
No filme, que adaptou a peça de Santareno, Joana é a rapariga mais bela da Aldeia Velha, objeto de desejo dos homens e alvo da inveja de outras mulheres. Ela despreza os seus pretendentes, levando dois deles a um combate de machados, em que ambos morrem. Outros incidentes, como a morte de um bebé, que Joana cuidava, e a tentação que ela parecia constituir para o padre Júlio, provocaram a suspeita de estar possuída pelo demónio e a levaram à morte, num ritual de fogo.
Reparai: essa brutalidade ocorreu no século XX, não na Idade Média. O visionário Öcalan dizia que a história de cinco mil anos de civilização era, essencialmente, uma história de escravatura feminina. E Giovani elucidava que não queimaram bruxas, mas “mulheres, que eram vistas como muito bonitas, cultas, inteligentes, mulheres que tinham uma forte conexão com a natureza. Mulheres foram jogadas de penhascos e na água. Se podiam flutuar, eram culpadas e executadas. Se elas afundassem e se afogassem, eram inocentes. Qualquer mulher estava em risco de ser queimada, nos anos 1600”. E o que dizer da barbárie do século XXI?
Em 2016, a Simone assim começava uma mensagem:
“Queridas pessoas, estou muito, muito abatida com o assassinato da aluna na UnB. Ela era aluna de amigos meus e amiga de alunos meus, no Instituto no qual me formei. O ex-namorado, que a assassinou, era amigo de alunos meus”.
Estávamos no ano da graça de 2019 e eram frequentes notícias como esta:
“A morte de Luciana é o 33º caso de feminicídio no Distrito Federal neste ano. Ela foi golpeada mais de trinta vezes pelo ex-namorado. A perícia mostrou um crime bárbaro e premeditado. “O homem é uma pessoa extremamente agressiva e já havia sido preso por tentar jogar o carro em que os dois estavam contra uma árvore”, informou a delegada”.
O feminicídio, reconhecido como crime hediondo, desde 2015, a violência contra a mulher, ia muito além de agressões, estupros e assassinatos. A Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, classificava em cinco categorias os tipos de abuso cometido contra o sexo feminino: violência física, violência moral, violência sexual, violência patrimonial e violência psicológica.
Mesmo sem dano físico, a violência psicológica provocava danos irreparáveis na vida das mulheres. Não se dissipava a violência psicológica, que diminuia a autoestima da mulher.
O progresso científico avançava no campo material, acumulando riquezas, tornava-se hipertrófico, não contrabalançado pelo progresso moral e ético. Nesse tempo, ainda havia mulheres e mães que tendiam a reproduzir nos seus filhos a herança feminicida da Idade Média.
Como abandonar as amarras do patriarcado e de outros sistemas caducos? Como construir alternativas comunitárias e viver juntos de forma duradoura, respeitosa, solidária?
Por: José Pacheco
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