Nossa Senhora de Guadalupe, 26 de julho de 2042
O meu baú das velharias mais se assemelha a um saco sem fundo, porque, quanto mais cavo nas memórias, mais relembro. Anamneses sucessivas me transportam a um passado longínquo.
Hoje, topei com um resto de jornal, rasgado, amarelecido, mas onde ainda se consegue ler. Durante mais de meio século, participei de entrevistas, que a Internet e o tempo apagaram. Escolhi o início de uma delas, para entrar numa sequência de cartinhas, que espero tenhais paciência de ler.
Quero que nelas fique consignada a memória de tempos idos, que foram de profunda mudança educacional. Então, cá vai o início da notícia, que transcreve a dita entrevista.
“O educador José Pacheco traz por meio do livro Crônicas da Educação, publicado pela editora Nossa Cultura, textos de sua autoria que explicitam sua inconformada visão sobre a construção social chamada Escola.
Em entrevista ao Jornal Meio Norte, ele aponta que as escolas precisam de espaços de convivência reflexiva. Ensinar não é inculcar, nem transmitir, é fazer aprender; e o professor não é aquele que impõe as respostas, mas o que coloca questões, dado que não ensina aquilo que diz, mas transmite aquilo que é.
E não basta rejeitar práticas pedagógicas ditas tradicionais. É preciso afirmar, igualmente, que a liberdade se exprime e se aprende com os outros”.
De Liberdade se tratava, de uma Autonomia assumida na primeira versão do Projeto Fazer a Ponte, já lá vão para aí uns sessenta anos. Para avivar memórias, revisitei um velho livro, o “Dicionário dos Valores”, cuja primeira entrada, a da letra A, é um A de Autonomia. Eis o que nele se dizia, começando pela “Introdução”:
“Publiquei dois dicionários: um deles, sobre absurdos da Educação; outro, sobre utopias. Como sói dizer-se, não há dois sem três: farei um dicionário de valores. E, se todos os dicionários obedecem à ordem alfabética, comecemos pela letra A… de Autonomia.
Há quase quarenta anos, partimos para a reinvenção da Escola da Ponte. Não partimos de problemas, porque nós éramos o problema. Partimos do que éramos para aquilo que queríamos ser.
Bem cedo, compreendemos que, se reelaborássemos a nossa cultura pessoal e profissional, também estaria em nós a solução. Nos primórdios do projeto, realizamos um exercício simples: escrevemos num papel os dez valores que orientavam as nossas vidas. Três valores surgiam em todos os papéis: liberdade, solidariedade, responsabilidade.
Porém, quando quisemos operacionalizar o valor “liberdade”, deparamo-nos com um obstáculo: não existe uma ciência da liberdade. Ela poderia ser ensinada, mas esse ensino não passaria por uma didática específica, mas por uma gramática que explicasse as transformações. O conceito que encontramos desenvolvido, em termos ditos teóricos, foi o de autonomia, conceito de vasto espetro semântico e com muitos apêndices: autoestima, autoconfiança, autocontrole…
Desde o início do processo de mudança, recomendei que fossemos lendo umas coisinhas sobre os conceitos fundamentadores da nova práxis. A formação teórica seria concomitante com as transformações operadas. Nem antes, nem depois!
O esclarecimento das nossas dificuldades de ensinagem não seria mais do que uma pesquisa realizada num coletivo autónomo. Compreendemos que autonomia era um conceito relacional, que éramos autónomos em relação a algo, ou ao outro. Como diria o Edgar, a componente egocêntrica desse complexo seria “englobada numa subjetividade comunitária mais larga, porque ser sujeito é ser autônomo, sendo ao mesmo tempo dependente”.
Por: José Pacheco
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