Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXLVII)

São Pedro de Gafanhoeira, 27 de julho de 2042

No julho de vinte e dois, correu mundo a foto de um pai segurando a mão do seu filho, que fora morto num ataque do exército russo. Em Kharkiv, depois de um período de acalmia bélica, a população voltava a ser atormentada por múltiplos ataques. Um míssil tirou a vida a três pessoas. E uma das vítimas era um rapaz de treze anos, que se encontrava numa paragem de autocarro.

No mesmo mês, realizava-se o funeral de uma menina ucraniana de quatro anos, também morta numa explosão. Liza, criança com Síndrome de Down, ia com a mãe a caminho de uma sessão de terapia da fala, quando foi atingida por mísseis russos. 

Nesse mesmo dia, outras vinte e três pessoas foram mortas, incluindo dois meninos de sete e oito anos. Durante o funeral, chorando, o padre Vitalii apelava à esperança: 

“Sabemos que o mal não pode vencer”.

O mal, fosse qual fosse o seu significado, se instalara, se eternizava. E o poeta clamava: “Que quem já é pecador sofra tormentos sem fim / Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor, porque padecem assim?”

Outra guerra, uma “guerra oculta” contra a Vida, contra a infância se eternizava. Na Bolívia, um pai vendera a própria filha, para comprar um celular. Quando soube da venda, a mãe da recém-nascida tentou comprar a bebê, trazê-la de volta, mas a compradora exigiu o dobro do valor para devolver a criança. Segundo a polícia, o homem pedira à namorada que abortasse, quando soube da gravidez. Porque a mulher recusou fazer o aborto, ele resolveu vender o bebê.

Nesse mesmo julho, uma bebé morria abandonada pela sua mãe, que tinha ido visitar o namorado. Diana tinha morrido de fome. Foi encontrada deitada no berço tendo ao seu lado um biberão e uma garrafa com ansiolíticos, meio vazia. Estava severamente desidratada. A autópsia ao corpo de Diana iria determinar se a criança ingerira ansiolíticos, dado que, ao longo de seis dias, nenhum vizinho ouvira a criança chorar.

Diana era fruto de uma antiga relação, nunca fora registada pelo pai. Nascera no chão da casa de banho do ex-companheiro, sendo vista pela mãe como um fardo, não havendo sequer fotos da menina com a mãe. Esta terá afirmado que sentiu “que era crucial não interromper os dias” com o parceiro, que “tinha medo” de que a filha morresse, mas que “o futuro” com o namorado “era mais importante”.

Netos queridos, não se tratava de fake news. Eram notícias do fim de um tempo. Daí para cá, nos vinte anos que nos separam desses escabrosos acontecimentos, fizemos a nossa parte numa jornada que nos trouxe até este tempo de respeito pelo ser humano que mora em cada criança. 

Pouco a pouco, vos irei descrevendo o processo. O primeiro passo dessa jornada ficou lá atrás, quando “núcleos de projeto” se formaram nos dois lados do Atlântico. 

Neste 2042 feito de suave harmonia, uma nova infância desponta nas pessoas de novos pais, no quadro de uma novíssima educação. Para tal, nos idos de vinte, refletíamos sobre formas de comunicação, de tomadas de decisão, de gestão de conflitos, numa prática sociocrática. E preparávamos os primeiros acordos de convivência. Houvesse, ou não houvesse frutos, por aí seguíamos, fazendo o caminho ao andar. 

Para o Eduardo, nós éramos aquilo que fazíamos, mas, principalmente, éramos aquilo que fazíamos, para mudar o que éramos. Inspirados nesse e em outros mestres, cumprimos um rol de ”tarefas”, num processo formativo isomórfico. Dito em linguagem de gente, a cada tarefa a desenvolver pela equipe de projeto correspondia uma tarefa de idêntica natureza, a desenvolver com os jovens e os adultos da comunidade. Entendestes?

 

Por: José Pacheco

257total visits,1visits today

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Scroll to top