São Sebastião da Giesteira, 29 de julho de 2042
Quando me dispus a participar numa internética conversa dos idos de vinte, não imaginava escutar o que escutei. A Sandra descreveu progressos operados pela sua equipe. Rio do Sul tinha ido mais longe do que nós poderíamos imaginar, quando ousamos propor uma formação concomitante com a transformação das práticas. E se juntava a outros polos de inovação, num mapa de lugares e gentes que já aprimoravam o que nós considerávamos ser um dos esboços de novas construções sociais de aprendizagem.
No final da conversa, visivelmente emocionados, o Mauro, a Tina, a Zizi e a Cléo agradeceram as boas notícias. E não era para menos! Por caminhos que uma “cultura árida” consentia, a equipe da Sandra engendrava novas “trilhas culturais”. As aspas permitem reproduzir expressões de uma fala que passou por Nicolelis, Damâsio e outros anunciadores de novos tempos.
Apercebendo-se da proposta de re-ligare a educação com a arte-cultura e saúde pública, a Cléo até se disponibilizou para ajudar a organizar um livro divulgando o que havíamos escutado. E, porque a Sandra referiu ter usado um livrinho (Inovar é Assumir um Compromisso Ético) publicado, alguns anos antes, neste julho de quarenta e dois, me senti impelido a reler outros livrinhos. Sacudindo o pó das cartinhas enviadas à Alice nos primeiros dias de vida dessa linda psicóloga quarentona, não por acaso, ele se abriu numa página em que eu conversava com o meu amigo Rúbem. Ocultas sincronicidades me conduziram ao “fio da meada” da internética conversa com a Sandra.
A expressão “encontrar o fio da meada” surgira no tempo da primeira revolução industrial e da criação da Escola da Modernidade, quando máquinas faziam tecidos com a manipulação da mão humana. Perdoai o encicolopedismo posto neste (talvez dispensável) parágrafo. Não resisti à tentação de (talvez subtilmente) comparar a evolução da indústria com a obsolescência da escola.
Encontrar o “fio da meada” significava perceber a lógica ou origem de algum fenómeno por desvendar. E creio ter encontrado no livrinho da Alice algo relacionado com a diegese da Sandra. A sua equipe tinha dado resposta à pergunta do amigo Rubem: “Como é que o guacho coloca o primeiro graveto do seu ninho?”
O guacho vivia para construir ninhos. Sabia que, no instalar dos frágeis alicerces da estrutura que serviria de berço à sua prole, para enlaçar o segundo dos gravetos no ramo pendente sobre o abismo, precisaria de dois bicos solidários segurando o primeiro.
O guacho detinha a faculdade de fazer outras pontes, pois entendia e sabia reproduzir os cantos de outros pássaros. Como disse o Pássaro Encantado, quando se fala com amor, cada palavra que se diz é uma revelação daquele que fala.
A equipe do Rio do Sul estabelecia pontes de entendimento entre diferentes linguagens, abria janelas sobre a lucidez dos dias, levava o alimento da palavra até às raízes dialógicas, até que o que o que padecesse de aridez se transformasse em comunicação fértil.
Voltando às cartinhas para a Alice… “Muitas aves ignoram a finalidade dos seus actos – o que não é o caso do guacho. Poder-se-á chamar instintivo ao acto paciente e fraterno de juntar um galho a outro galho, até se completar um ninho. Eu diria ser mais um acto religioso. Que mania a dos humanos seres a de considerar não ser da natureza dos pássaros o re-ligare! Que estranha presunção a dos humanos seres a de considerar que os pássaros sejam desprovidos de alma e que a construção do ninho de um guacho não seja um acto de intensa comunicação de alma para alma entre pássaros construtores.”
Por: José Pacheco
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