Santo André, 26 de agosto de 2042
O nascimento de uma criança era motivo para celebrar a vida, num tempo de celebração da morte, em que havia quem dissesse não querer ter filhos num mundo assim. Certo é que um amigo descreveu num email o nascimento da sua primeira filha.
Certamente, não te recordarás, querido Marcos, de teres apercebido da emoção que assaltou este avô piegas, enquanto lia a mensagem. Não despegaste os olhos dos meus olhos molhados. A solução do embaraço foi ler a mensagem de modo que tu a ouvisses.
Como a entendeste eu não sei. Sei que a escutaste, muito atento, até ao final. Depois, voltaste para as tuas brincadeiras. Não manifestaste estranheza, talvez porque a beleza fosse tua companheira habitual.
Não conseguia imaginar o alvoroço de alma do Amândio, perante a visão de uma criança rompendo um ventre de mãe. Nem esse sentir caberia em palavras.
Ouso transcrever algumas das escritas pelo meu amigo no email, assumindo o pecado da indiscrição, para poder partilhar o que senti:
“Quando vi a Diotima sair da mãe, a minha primeira impressão foi a de um gesto repetido mil vezes, algo muito para além de uma vida. Senti-me um deus humilde e criador. Olhei a janela, e a cidade estava envolta num vermelho como só em Roma, e só quando morre um imperador. A Lua Cheia erguia-se dominadora entre os sinais do céu, e tudo começou.”
O meu amigo e a mãe da Diotima eram atores de teatro. Representavam como quem respirava. Eram dois seres que geraram filhos com o mesmo amor de que era feita a sua arte. Eram inteiros e puros.
Criança que, no útero, esteve atenta à doce música de tenras palavras, criança que iria ser embalada em braços geradores de beleza, nascia abençoada. Se fazia poeta ao nascer. Conseguia “ver” o Amândio falando com Diotima, num enleado olhar calado, que tudo dizia.
Nem só de palavras vive a poesia. Também é feita da sabedoria dos silêncios. Sobre eles se constrói, tal como a música. E como dói encontrar adultos que não sabem que só a poesia é real!
Quando, na Ponte (já cá faltava a escolinha) outras crianças-poetas (é redundante, mas é propositada a justaposição) quiseram estudar a “cor das vogais”, o trabalho culminou em contributos para um belo livro, que deu pelo nome de “As palavras são como as cerejas”:
“Esta palavra é amor / Aquela palavra é irmão / Esta palavra é espera / Aquela palavra é dor / Esta palavra é silêncio / Aquela palavra é beijo / Esta palavra é o pão / Aquela palavra é o linho / Cada palavra é um gesto / Cada gesto uma palavra / São a vida estas palavras.”
Estes versos aconteceram, como acontecia a madrugada, no quotidiano de uma escola, onde a alegria e a tristeza – matéria de que é feita a poesia – andavam a par. Quando se pediu às crianças uma definição de escola, elas escreveram:
“A minha escola é como plantar um sonho no jardim das letras e é chorar mil palavras num rio de lágrimas.”
O impulso poético revelava-se e ganhava raízes, se o aprender a ler e a escrever não fosse repetir carreirinhas de letras, mas um exercício de canseira e paixão. A poesia consubstanciava-se na palavra, mas não só – inscrevia-se no mais íntimo de educadores como o João Condesso, a Cecília Pinheiro e tantos outros.
Numa escola onde se respirasse poesia – lá volto a ser redundante, pois só haverá escola onde se respire poesia – a toda a hora, as crianças reinventavam a palavra:
“Gostaria de ser astronauta, para espiar as estrelas. Ser feliz é poder acampar nas nuvens de todas as cores. Em cada cor há um sentimento. Quando fecho os olhos, as cores estão lá. Eu vejo-as. Eu sinto-as. Sinto tanta coisa cá dentro do peito. Eu acho que podia fazer um poema.”
Por: José Pacheco
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