Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXVIII)

Guarulhos, 27 de agosto de 2042

Se a prática de um dentista não tivesse acompanhado a evolução da produção teórica no campo da Medicina, ainda hoje nos curvaríamos sobre uma bacia de barbeiro, para que o dentista nos arrancasse os dentes com uma tenaz. Se um engenheiro recusasse ler e pensar, se prescindisse do recurso à literatura científica e à experimentação, ainda hoje viajaríamos em carroças puxadas por asininos. 

Ao desenvolvimento dessas duas ciências correspondeu mudança e inovação. Hoje, a complexidade e a sofisticação de processos é tal nessas profissões, que ninguém ousa questionar o saber e a prática de um médico, ou de um engenheiro. E que dizer dos professores “dadores de aula”? 

Nos idos de vinte, era frequente lermos artigos invectivando as chamadas “novas pedagogias”, atribuindo-lhes a responsabilidade por todos os males que afectavam o sistema. Dava vontade de perguntar aos autores desses artigos: quantas escolas tinham adoptado as famigeradas “novas pedagogias”. Se alguém soubesse onde se escondia alguma dessas escolas, que fizese a bondade de me facultar o endereço. 

Também havia quem prometesse “mares e fundos” pedagógicos, milagreiros “ensinos híbridos” e míticas “metodologias ativas”. A educação mercantilizava-se, os fabricantes de paliativos prosperavam, o discurso teórico se sofisticava, inúteis congressos se multiplicavam, e a Ana me assegurou que o tempo da sua escola foi um “tempo morto”.

Entrou feliz como um “pássaro livre” e de lá saiu triste e de “asas estragadas”. A Ana continuava cativa de uma escola “porque sim”. Porque era “porque sim”, porque “pai manda e está mandado”, e pronto! 

Mais uma vez, passo a palavra à Ana, que me disse, a propósito do episódio que irei contar: “Chorei ao lembrar, porque ainda dói em mim como uma ferida.”

“Uns minutos antes da aula de História, a turma (já expliquei o que isso era) preparava-se para o que desse e viesse. E, quando a porta se abria para dar passagem à professora Joana, todos os alunos sentiam vontade de ir à casa de banho [ao banheiro brasileiro]. 

A professora era mulher de ter estações e, naquele dia, era um Inverno bem estampado no rosto: o baton desbotado e a fugir dos lábios, um rimel que não rendia homenagens à simetria, os cabelos despenteados… Em dias assim, os alunos concentravam-se em sobreviver, invisíveis, fundidos na mobília. Até as moscas paravam de voar.”

Eram dias “unifrásicos”, como lhes chamava a Ana: 

“Páginas quarenta a quarenta e cinco!”, “páginas cem a cento e três”, “páginas cento e sete a cento e vinte e três!…” 

Ao contrário dos companheiros, a Ana nunca aceitou ser mobília de sala de aula. Do fundo da coragem e da baixa estatura, o dedo indicador emergia, desafiando a lei da gravidade. Perante qualquer problema de compreensão, ele ia subindo, subindo, devagar, mas subindo… 

Numa sala de aula (nesse tempo, ainda havia salas de aula), se o aluno levantava o braço, o professor dava-lhe a palavra. Quando soava a campainha (ainda havia escolas em que os alunos andavam a toque de campainha), o mesmo aluno passava para outra sala e, perante uma dúvida, erguia o seu braço. Logo ouvia o que não queria: 

“Ó menino, acaba lá com essa palhaçada! Isso era lá na escola primária. Aqui falas quando eu te mandar! Ouviste bem?” 

Na aula seguinte, o aluno já não sabia se deveria erguer o braço, ou se o deveria manter quieto. A alternância das atitudes dos docentes instalava na psique dos alunos uma subtil espécie de esquizofrenia. 

A Ana se fez professora. E, como me pedistes que contase mais estórias da Ana, o farei em próximas cartinhas.

Um beijo!

Por: José Pacheco

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