Maricá, 3 de setembro de 2042
Hoje, precisamente hoje, completam-se vinte anos sobre a realização do primeiro encontro virtual de um processo de transformação, que culminou na criação dos primeiros protótipos de comunidade de aprendizagem.
Nesse tempo, face a obstáculos aparentemente intransponíveis, agíamos como Darcy recomendava:
“Coragem! Mais vale errar, se arrebentando, do que poupar-se para nada”.
A Zizi, a Tina, a Cléo, o Mauro, a Valéria e outros educadores de uma dedicada equipe, voluntariamente, se lançaram no afã de partilhar saberes, sem nada esperar em troca. Pois o Alain dissera:
“Fazes o que deves e nunca esperes nada em troca. Se vier alguma coisa, acolhe-a como se de um presente se tratasse”.
E o Philippe o corroborava:
“A reciprocidade não é nada comigo. É assunto do outro e só dele. Esperar a reciprocidade, não é dar um presente, é fazer comércio. O que, evidentemente, não impede que quando a reciprocidade advém, a possamos viver como uma verdadeira felicidade. A felicidade nunca está no lugar onde a esperamos; nunca vem quando a exigimos”.
Eram tempos sombrios aqueles em que empreendemos caminhos de mudança e inovação, tempos de fome e sede de justiça, a par da fome resultante da desigualdade social. Uma crise econômica e múltiplas violências se juntavam a uma epidemia de corrupção. Eram tempos que Saramago assim caracterizou:
“Na falsa democracia mundial, o cidadão está à deriva, sem a oportunidade de intervir politicamente e mudar o mundo. Atualmente, somos seres impotentes diante de instituições democráticas das quais não conseguimos nem chegar perto”.
Quando éreis crianças, eu sentia dificuldade em vos explicar absurdos. Os seres humanos de tenra idade não possuem a capacidade de os digerir. Outra solução não me restava, a não ser a de transformar a reflexão em estórias.
Contei-vos que era costume os professores juntarem alunos em grupos a que davam a designação de “turma”. Tentei explicar-vos o que era uma “turma”. Tarefa difícil! A cada vosso olhar de estupefação, a narração foi sendo entrecortada pela definição de conceitos, sob risco de perderdes o fio à meada.
Passei pela provação de tentar explicar o inexplicável. Amiúde, o vosso incrédulo semblante derrotava a minha argumentação, pelo que me socorria da expressão “in illo tempore”, para vos tranquilizar, dando a entender que os factos narrados já não sucederiam no seu tempo.
Sem correr o risco de ofender a inteligência de uma criança, como seria possível explicar-lhes que professores (in illo tempore, claro!) dessem “aulas” a “turmas”, ensinando a todos como se o todo fosse um só? Como explicar que não se apercebessem de diferentes ritmos de aprendizagem? Como explicar que os professores não reconhecessem em cada criança um ser único e irrepetível? Como explicar que juntassem todos os alunos, num mesmo tempo, num mesmo espaço, nas mesmas condições de pressão e temperatura, e a todos aplicassem testes iguais para todos, fazendo perder um tempo precioso aos que sabiam a matéria e impondo chancelas de ignorantes aos que a não sabiam?
Para vos dar tempo de respirar fundo e recuperar de perplexidades, eu introduzia pausas na minha narrativa. E vos falava de insignes mestres. Como Rosseau, que nos dizia que “tudo é perfeito quando sai das mãos de Deus, mas tudo se corrompe nas mãos do Homem”. Ou como Freire, que acreditava ser possível que as pessoas mudassem a sociedade através da escola. E vos sossegava, dizendo ser possível reinventar a Escola, porque ela não era obra de Deus, mas do Diabo, como defendia um senhor chamado Adam Férrière.
315total visits,2visits today