Aldeia, 8 de setembro de 2042
Nos idos de vinte, a comunicação social dava conta de uma crise, a da “falta de professores”. No Brasil, como em Portugal, “professores sem formação” poderiam “dar aulas”. Uma “resolução” até permitia que estudantes de cursos de licenciatura, a partir do quarto semestre”, fossem “contratados para dar aula”. E uma professora universitária comentava a situação:
“É um remendo muito malfeito. Mais uma vez, vão jogar mais problemas para dentro da escola, porque vão contratar pessoas sem formação e sem experiência para atuar em sala de aula.”
Confesso a minha perplexidade. A crítica justa não cairia sobre a universitária autora da crítica? Afinal, quem (não) formava os professores?
O André fez vestibular para ser matemático. Completou os dois primeiros anos do curso com elevadas classificações. No final do segundo ano, decidiu não ser apenas um matemático, mas professor dessa disciplina. Fiquei preocupado.
O André passara dois anos aprendendo noções matemáticas, era especialista em matemática, mas nenhuma disciplina do seu curso o preparara para ser professor de matemática. Apenas beneficiava de uma vantagem relativamente aos colegas da sua turma: fora aluno da Ponte.
Perguntei-lhe se, nos anos letivos seguintes, o currículo do curso incluiria disciplinas que o habilitassem para exercer a profissão de professor.
“Haverá duas: “Metodologias de Ensino” e “Psicologia da Educação”.
“Só isso?”
“Só isso.” – respondeu.
A minha preocupação aumentou.
Na primeira aula (naquele tempo, ainda havia aula), o professor de “Metodologias” informou que iria “substituir o professor titular da cadeira” e que nada sabia de metodologias. Fizera doutoramento em História da Matemática, e passou um ano inteiro ditando a sua tese em fastidiosas aulas. A professora de Psicologia distribuiu e comentou apontamentos sobre alguns autores. Perguntou se havia dúvidas, e dado que as não havia, marcou data de exame.
Nos anos noventa, uma nova fornada de “docentes” iniciou a sua vida profissional, tudo sabendo de matemática e nada sabendo de ser professor. Ano após ano, milhares de matemáticos, engenheiros, advogados, historiadores, padres, literatos, músicos, arquitetos e outros formandos universitários ingressavam numa carreira desprovidos das mais elementares noções de ciências da educação.
A ingenuidade pedagógica e a reprodução do modelo educacional que fora o seu enquanto alunos eram causas do “insucesso escolar”. E os improvisados docentes nem chegavam a aperceber-se da sua quota parte de responsabilidade pelo insucesso e abandono intelectual da maioria dos seus alunos.
Não se julgue que o curso do Magistério de então diferia significativamente da formação do André e dos seus companheiros. Nem o meu curso deu a um sistema de ensino massificado engenheiros capazes de serem verdadeiros professores. Alguns dos improvisados “docentes” usavam de bom senso e conseguiam mitigar a ignorância com leituras e a frequência de cursos.
Um desses professores, que não envelhecera profissionalmente, disse-me:
“Há muitos anos, eu percebi que era um desqualificado com canudo. Admiti que nada sabia de ser professor. A compreensão da dimensão do meu drama assustou-me. Reagi fugindo para a frente.
Apesar das dificuldades defrontadas, preferi o caminho da autenticidade e do conflito. Recusei o fácil caminho de reproduzir o que é velho e não serve. Penetrei os mistérios do fenómeno educativo. Ainda vou no início, mas me converti”.
Nos idos de vinte, ajudei muitos educadores nas suas “conversões”.
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