Cordeiro, 11 de setembro de 2042
O verão de 22 fora o mais quente já registado na Europa. Ficara marcado por ondas de calor e uma seca severa, que deixou albufeiras com reservas de água abaixo dos 40%. Na França, a onda de calor até calou as cigarras de Provença. Temperaturas recordes afetaram a sociedade e a Natureza. A floresta ardia sem cessar.
A desertificação das comunidades rurais era uma das responsáveis pelo desastre. Escolas com menos de vinte alunos tinham sido encerradas. As crianças eram transportadas para megalômanos edifícios construídos nas
sedes dos municípios. Já não havia crianças nas aldeias. Comunidades eram extintas. Famílias despachavam os idosos para enormes asilos, também na sede dos municípios. Os mega agrupamentos escolares desmembraram comunidades, provocaram congestionamento de trânsito. Se em alguns agrupamentos de escolas havia um professor para 10 ou 11 alunos, outros agrupamentos havia onde a proporção professor-aluno era de 1 para 2 ou 3. Mais um absurdo!
Se os (i)responsáveis soubessem que escolas são pessoas e não prédios, seria possível reverter o despovoamento e criar, ou recriar comunidades. Mas, somente em meados da década de vinte foi possível criar círculos de aprendizagem, de vizinhança nesses lugares, evitando o desperdício de transporte escolar, incentivando o caminhar, a deslocação a pé, ou de bicicleta.
Nos idos de vinte, as escolas ainda funcionavam num horário-padrão, com intervalos de fazer xixi e jogar no celular. A simultaneidade de entrada e saída dos prédios-escolas aumentava a complexidade das deslocações. Os congestionamentos de trânsito à porta das escolas criavam um primeiro pico de tensão do dia, o estresse de pais e filhos.
O amigo Carlos afirmava: “Persiste a falta de contacto com os espaços informais, os espaços que permitem o inesperado, que permitem desenvolver capacidade de adaptação: um sinal de trânsito, atravessar a estrada, andar no passeio, ser capaz de resolver problemas, apreciar a cidade. As crianças são vítimas do trabalho dos pais e não têm espaço nem tempo para serem autónomas. Na família, impera o medo e uma superproteção patológica. Vão ter problemas de saúde física, mental, social e emocional, e falta de conhecimento ecológico do local onde crescem e onde vivem.”
Urgia repensar, reconstruir a cidade. Porém, o automóvel tomava conta da cidade. Os pais alegavam ser necessário usar uma viatura, para levar os filhos à escola: “Não tenho confiança e não há meios seguros para deixar o filho ir sozinho”.
E o Carlos reagia:
“Se uma criança passa a vida dentro de um automóvel, apenas fomenta a memória espacial no trajeto, mas não vive corporalmente as sensações fundamentais para o desenvolvimento motor, social, emocional e cognitivo. Isto
impede o desafio e a criatividade. Andar de bicicleta é fundamental, tal como a descoberta dos lugares, o desenvolvimento da imaginação, a consciência da biodiversidade”.
Havia carreiras de transporte público, mas os pais não se sentiam confortáveis em deixarem os filhos em autocarros comuns. E lá voltava o amigo Carlos a falar de qualidade de vida: “Todas as manhãs, milhares de automóveis não respeitam a velocidade junto à escola. Largam as crianças e vão buscá-las ao fim da tarde. As crianças não podem ficar sentadas, quietas e caladas, horas a fio, em casa, na escola e no carro. Corpos ativos dão cérebros ativos através de emoções e sentimentos.”
O Carlos pregava no deserto. A sua voz somente foi escutada, quando protótipos de comunidade foram criados e anómalas situações foram corrigidas.
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