Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMXCIV)

Campos de Goytacazes, 12 de setembro de 2042

Ainda vivos e lúcidos, conheci alguns dos vultos da educação, embora não me perdoasse de, nos meus tempos de África, ter estado paredes-meias com Freire e não o ter encontrado. Para compensar essa perda, recebi na Escola da Ponte dos idos de noventa, a Fátima, sua filha. Acompanhada do marido Ladislau, identificaram nos mais discretos movimentos e artefatos da Ponte a presença do Mestre.

Fui até à Escola da Vila, em demanda da filha Madalena. Mas só chegaria a ter ensejo de a encontrar, quando com ela partilhei a mesa de um congresso. Foi em Mairinque, lembro bem, e era como se nos tivéssemos conhecido há mil
anos. A filha do Mestre o invocava. Nela Freire se manifestava. Até ao momento em que o senso comum de um professáurio a interpelou. Fazíamos referência à práxis freiriana da Ponte. Poupo-vos ao teor da intervenção da criatura. Dir-vos-ei somente que carregava meia dúzia de lugares-comuns do discurso pedagógico, para rematar com uma disparatada afirmação. Serenamente, a Madalena retorquiu:

“Faça o favor de fundamentar o que acaba de dizer.”

O professáurio titubeou alguns dos jargões mais conhecidos das ciências da educação.

“Fundamente a sua afirmação” – repetiu a Madalena.

O indivíduo apresentou credenciais de “doutor”, mas… não fundamentou.

No final da sessão, fraternalmente, me acerquei dele e mantivemos uma conversa afável, sem que ele manifestasse consciência de que tagarelara decoreba de tratado académico, sem contrapartida praxeológica. Era mais um representante da estranha e perniciosa espécie dos freirianos não-praticantes.

Nesse tempo, a dialética freiriana manifestava-se de três modos. A primeira era a “tradicional”: reflexão-ação-reflexão. A reflexão e o planejamento só fariam sentido se agíssemos. A reflexão-na-ação manifestava-se num saber-fazer transformador da realidade e produção da história. A reflexão na ação acontecia quando concomitante com a vivência, a situação, ou quando retrospetiva. Nesse sentido, interpretávamos a dialética freiriana de outro modo: ação-reflexão-ação.

 

Zarpávamos da ação, de práticas já testadas e consideradas criações úteis, para conseguirmos operar mudança. Consolidada a mudança, empreendíamos caminhos de inovação. Íamos em demanda de algo efetivamente inédito.
Ao produzir inovação, novos modos de ensinar e de aprender, questionávamos práticas hegemônicas, demonstrávamos a origem socioinstitucional do insucesso escolar, interpelávamos o discurso da “naturalização” de fenômenos educacionais, como o da exclusão escolar e social.

Adorno denunciou “determinações objetivas da subjetividade”, que considerava responsáveis pela perenização da formação social vigente. O mundo era movimento, transformação da realidade social, construção humana, mas a
terceira versão da “dialética” era estática, reduzia-se a uma monótona e supérflua sequência: reflexão-reflexão-reflexão.

Disso não saiam os não-praticantes. Eram teoricistas inveterados, perdiam-se no labirinto das citações de citações, na teorização de teorias teorizadas, e “inventando” novas designações para velhos conceitos. Apesar dos pesares, Freire era celebrado, dialogicamente praticado. E Gadotti, um dos grandes reinterpretes de Freire, advertia que a prática dialógica se situava nos antípodas da pedagogia metafísica. Dizia-nos que a constituição do homem acontecia pela ascensão da consciência coletiva efetivada de maneira concreta na ação, numa interação que dava existência ao próprio homem.

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