Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MIV)

Queimados, 22 de setembro de 2042

Por que falo de olhares e de modos de ver? 

Porque me incomodaram alguns olhares de pena, que vi dois educadores lançarem sobre uma criança dita “deficiente”. Porque os diferentes não precisam de piedosos olhares, mas da prática de uma “inclusão”, que ainda não passou de enfeite de tese. 

Irritaram-me os olhares, mas não o dei a perceber. Brinquei! Numa dupla rutura de olhar – uma técnica em que os meus netos eram especialistas e meus mestres – afivelei um sorriso e optei por narrar aos pios educadores um episódio exemplar. 

Certo dia, fui fazer uma palestra. Parque de estacionamento com lotação esgotada, uma condutora em desespero, três voltas ao circuito, até que reparei em dois lugares desocupados. Apontei para lá. A condutora respondeu: 

“Então o professor não vê que são lugares destinados a viaturas de deficientes?”

“E, então?… – Retorqui, apontando para os meus olhos de estrábico – Sou diferente e mereço esse lugar.”

A condutora entendeu a ironia, sorriu, continuou rezando entredentes à “Senhora da Vaga” (como se dizia em Brasília), na busca por um lugar onde encostar o carrinho. 

Algumas voltas depois, a minha companheira de viagem contava à plateia o sucedido, para justificar o atraso e criar ambiente. E o episódio relatado foi pretexto para a primeira intervenção no debate sobre “inclusão”. Como sempre, comecei a “palestra”, perguntando:

“O que quereis saber?”

E pela primeira e única vez, em mais de quarenta anos de “palestras”, alguém ergueu o braço -~ agradável surpresa!

Talvez para gerar informalidade, a senhora do braço erguido atirou um chiste: 

“O senhor é a pessoa indicada para abrir um congresso sobre inclusão. Fala do assunto com conhecimento de causa, porque é deficiente!”

Gargalhada geral!

“Resgatei o gracejo e continuei no mesmo tom o diálogo que reproduzo:

“A senhora importa-se de dizer o que entende por “deficiente”?”

“Deficiente é toda a pessoa que tem qualquer coisa a menos do que uma pessoa normal.”

“Então, se é esse o conceito de deficiente, diga-me, por favor, de quantos modo a senhora vê.”

“É claro que eu vejo como uma pessoa normal, de uma só maneira!” – exclamou a minha interlocutora de visão “normal”. 

“Pois eu vejo de três modos diferentes. A senhora consegue fazer o mesmo?”

“É claro que não!”

“Então, se a senhora vê de um só modo e eu consigo ver de três modos, quem será “deficiente”?”

“Ele é deficiente e é louco…” – murmurou a senhora “normal”. 

Dizia o Jung que cada indivíduo representa uma nova experiência de vida. Cada ser humano é único e irrepetível, e será preciso que os educadores saibam encarar o diferente com a mesma alegria que a sua mãe teve ao dá-lo à luz. 

O que é “deficiência”? E “normalidade”? 

A resposta é conforme aos olhos que vêem. Ser louco é “normalidade” num mundo ao contrário. Loucura e génio são parentes. Os grandes génios poderiam ter nascido “deficientes”. Foram os desajustados de todos os tempos que nos legaram o que de mais sensível e belo o ser humano produziu. 

Deficientes seriam, porventura, aqueles que semeavam a morte nos campos de batalha da Ucrânia e acenavam com uma “guerra nuclear”, e os políticos que espalhavam doença e fome.

Deficientes, ou normais? Loucura, ou génio? Tudo depende da perspetiva.

Há muitos anos, escrevi um livro a que dei um título divergente, “anormal”: “Quando eu for grande, quero ir à Primavera”. Estávamos em pleno setembro brasileiro, mas ainda esperávamos a “Primavera da Educação”. Sentíamos que aquilo a que chamávamos “Escola” começava a sair de um longo, muito longo Inverno de indiferença perante a diferença.

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