Guapimirim, 4 de dezembro de 2042
Neste mesmo dia, mas do dezembro de há vinte anos, convidei amigos acadêmicos, exímios no campo teórico, para acompanhar educadores éticos na teorização das suas práticas. Porque, há setenta anos, me reconheci… praticista.
“Ainda bem que chegou um homem!”
A exclamação da diretora da escola deixou-me apreensivo. Entre sorrisos e votos de boas-vindas, fui amavelmente recebido e esclarecido:
“Colega, temos uma turma de lixo a precisar de pedagogia musculada, de um professor homem.”
“Turma de lixo?”.
“Sim. De analfabetos e malcomportados. O colega aceita ficar com eles? Fazia-nos um grande favor”.
Essa frase ainda ecoa na memória deste vosso avô. E já lá vão quase setenta anos. “Turma de lixo”! Chamar lixo a seres humanos?…Aceitei.
No primeiro dia de aulas, perguntei àqueles jovens por que não tinham aprendido a ler.
“A gente não tem cabeça, senhor professor. A gente é burro. Estamos aqui, há seis anos, nós já tivemos pr’aí umas dez professoras e todas as professoras disseram que a gente é burra.”
Quis saber como as professoras dos anos anteriores os tinham ensinado (melhor dizendo, não tinham). Responderam em coro:
“Todas ensinaram igual…o a, e, i, o, u. E a gente fazia carreirinhas de as, es, is, os e us. Depois, a senhora professora dava a lição do pê, a do pa, pe, pi, po, pu. Depois, a gente juntava à lição do tê: pato, pito, pote, pipi, tatu, tutu…
“A gente é burra!” – Um estranho sentimento se apossou de mim. Passara anos ensinando pelo método fônico, porque outro não conhecia. Se eu voltasse a ensiná-los pelo método fônico eles conseguiriam aprender a ler? É evidente que não. Se o fizesse, seria um crápula.
Entrei em crise, uma crise ética que só admitia duas saídas: ou aprendia a ensinar de modo que todos aprendessem, ou iria embora da profissão.
A solução surgiu com o trabalho de equipe. Juntei a turma “do lixo” com as turmas de duas professoras. A Luísa ficou com a alfabetização lógico-matemática e mais duas disciplinas. A Maria José, com a socioemocional e mais duas disciplinas. Eu fiquei com a alfabetização linguística e mais duas disciplinas. E fui aprender a alfabetizar.
Apercebi-me de que as crianças já sabiam ler, quando chegavam à escola. Sabiam ler, por exemplo, “Coca-Cola”. Mas, até então, eu desprezara o seu repertório linguístico e mandava ler ca, ce, ci, co, cu, “ensinando” todos os meus alunos do mesmo modo, ao mesmo tempo (o famigerado “ritmo da aula”).
Ao cabo de dois ou três meses, aqueles que “não acompanhavam” marchavam para o “reforço” e, mais tarde, para o equivalente do EJA, em Portugal.
Deveria haver outros modos de aprender a ler… Aprendi mais duas dezenas de metodologias: o global de palavras, de frases e de contos; o método natural do Freinet; o das palavras geradoras, das “28 palavras”, o “Tu já lê”; todos os fonomínmicos, todos os fonossintéticos; os silábicos, enfim!
Para saber o que se passava aquelas cabecinhas, no processo de aprendizagem, fui aprender psicologias: a da aprendizagem, a dos processos cognitivos, a da memória, enfim! Li todos os livros sobre alfabetização que, no início dos anos setenta encontrava.
Até 76, a minha sala de aula era uma “árvore de Natal” enfeitada de projetos. A partir desse ano, não mais voltei a ser professor de sala de aula. E a “turma do lixo” aprendeu a ler.
Já pensavam que eu não faria uma pergunta. Então, cá vai (em triplicado):
Por que razão os “teóricos” e os “práticos” andavam de costas voltadas?
Para que servia o “academicismo teoricista”?
Por que se mantinham os professores ancorados num “jeitinho praticista”?
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