Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLXXV)

São José do Vale do Rio Preto, 5 de dezembro de 2042

Queridíssimos netos, sei por que me que dizeis que as perguntas do final das cartinhas são “malandrinhas” e retóricas. Em certo sentido, todas as perguntas o são. Só pergunta quem sabe a resposta, ou uma hipótese de resposta.

Até cerca dos seis anos, quase todas as crianças fazem perguntas de modo espontâneo. Porém, sempre que eu ia ao chão das escolas e fazia perguntas a crianças que já tivessem passado por duas ou três salas de aula, invariavelmente, elas respondiam:

“Eu posso dizer o que eu quero saber? Eu posso dizer o que quero ser?”

“Sim! E não quando fores grande…”

As crianças já quase não perguntavam o que queriam saber, fazer, ou ser. Já lhes tinham destruído o dom de perguntar, de interrogar a vida e de se interrogar. Foram proibidas de questionar. 

Em sala de aula, já tinham ouvido respostas a perguntas que jamais fizeram. Alguém lhes destruiu a curiosidade. E esse era um dos efeitos perversos de um obsoleto modelo educacional, do qual as escolas mais conservadoras somente conseguiram libertar-se já perto do final da década de trinta. 

Ontem, falei-vos da minha emancipatória saída da solidão da sala de aula. Ainda que a direção da escola e o ministério me mandassem a ela voltar, jamais voltaria. Por mais de meio século, exerci a profissão em múltiplos espaços de aprendizagem e em equipe. 

Quando o amigo Rubem me perguntou como conseguia o guacho colocar o primeiro graveto do seu ninho, respondi com metáforas.  

“Ao construir os seus ninhos suspensos sobre as águas, o guacho dava lições de arquitetura. Mas, sobretudo, dava lições de cooperação, de solidariedade. Possuía os saberes dos construtores de pontes, sabia que as pontes estabelecem sempre uma transição entre o que é e o porvir. E que, para enlaçar o segundo dos gravetos no ramo pendente sobre o abismo, precisaria de dois bicos solidários segurando o primeiro. 

Muitas vezes me perguntaram qual o segredo da longevidade do projeto Fazer a Ponte. O Rui nos contou um dos segredos:

“A organização escolar moderna baseou-se na transposição da relação dual entre um professor e um aluno para uma relação dual entre um professor e uma classe. O pensamento pedagógico continuou preso à primeira alternativa (a relação professor-aluno) em desfasamento com a realidade (a relação professor-classe). 

Na Ponte, esta contradição foi superada, na medida em que a organização é estruturada por uma relação entre uma equipa de professores e um conjunto de alunos, considerados na sua individualidade e que multiplicam entre si, na relação com os espaços e na relação com os professores, uma gama variada de modalidades de interação. 

É assim que se torna viável uma escola que, em princípio, não deveria funcionar, pois todos os professores trabalham com todos os alunos e estes não têm um lugar fixo para brincar e aprender. A demonstração prática de que é possível organizar uma escola de forma bem-sucedida, sem o recurso à organização por classes, representa uma contribuição inestimável dos professores da Ponte para enriquecer a utensilagem mental que nos permite lidar com os problemas da organização escolar.

A experiência educativa desenvolvida na Ponte constitui a mais clara afirmação do que pode ser a construção da autonomia de uma escola, baseada no profissionalismo de uma equipa docente, em alternativa a tutelas burocráticas e centralizadas.” 

E a pergunta “que não posso calar” é esta:

Por que seria que este processo de construção e afirmação de uma autonomia real, não outorgada nem imposta por decreto, não acontecia em outras escolas?

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