Santa Maria da Feira, 2 de junho de 2043
No Portugal de há cerca de vinte anos, os decretos 54 e 55, acompanhados da portaria 181, apontavam para uma nova construção social de educação. Mas, parecia que os professores andavam distraídos.
A lei propunha que se fizesse cumprir princípios e finalidades da educação, conforme expresso na Constituição e na Lei de Bases. Assumia-se o princípio de que era preciso rever os conceitos de educação e de aprendizagem, bem como reconfigurar as práticas escolares. Porém, os “planos de inovação” não passavam de tralha administrativa amarrada a regulamentos de burocracia a “papel químico”.
Li uma caterva de “planos de inovação”, com uma sensação de dejá vu. De inovação nada continham. Eram pródigos em jargão científico e citações de “autoajuda pedagógica”:
“Práticas pedagógicas inovadoras; desenvolvimento de competências do século XXI, como o pensamento crítico, a comunicação, atender aos diferentes ritmos e necessidades dos alunos; promover o trabalho autónomo e diferentes estilos de aprendizagem centrados no aluno. Estratégias de ensino-aprendizagem diversificadas. Uso da tecnologia de uma forma crítica e inteligente. O professor profissional reflexivo, comprometido e empenhado com a sua profissão” etc. etc.”. E por aí seguia o costumeiro relambório.
Nas escolas da “flexibilidade curricular” passava-se de trimestre para semestre, utilizando “uma bolsa de horas para criar mais uma disciplina”, colocando mais uma hora aqui e menos uma hora acolá.
Alguns “planos de inovação” apelavam à gamificação, o que sugeria que a escola se transformasse num imenso casino feito de “aulas invertidas” e outros subprodutos neoeducacionais.
A OCDE já dissera que nenhum país e sistema de ensino conseguira que todos os seus alunos alcançassem um nível de linha de base de proficiência em matemática, leitura e ciência. Reconhecia-se que o modelo instrucionista – da sala da aula – era incapaz de a todos assegurar o direito à educação. Porém, insistia-se em ignorar a declaração da OCDE e em contrariar o disposto na lei. Isto é: as decisões de política educaconal deveriam obedecer a critérios de natureza cietífica (artigo 48º da LBSE).
O amigo Nóvoa dissera que, “no futuro, não haveria salas de aula”. Mas os “planos” falavam de míticas “salas de aula do futuro”. Era afirmado nos ditos “planos de inovação” que “todas as salas de aula poderiam ser inovadoras” (sic).
À margem do descalabro, eu acompanhava projetos com potencial inovador. Analisado o projeto educativo, passava-se à definição de princípios. Da visão de mundo se passava à ação. E o exemplo da Ponte inspirava pais e professores.
Se uma “árvore de valores” tinha por tronco a Solidariedade, o enunciado de princípios poderia começar deste modo:
“A educação é um processo relacional, possuindo um caráter social, que deve ser assumido nas práticas educativas.
A solidariedade, mais do que um objetivo ético a ser atingido, é uma condição primordial para a realização do trabalho educativo. Este se desenvolverá plenamente, se considerar e incluir as diversas relações entre todos os atores envolvidos: educandos, educadores, gestores, famílias e comunidades.
Cabe a escola incentivar a integração de agentes e espaços comunitários, constituir-se em polo integrador e irradiador do saber e do esforço social pela educação.”
No junho de vinte e três, preparamos o trabalho a realizar no setembro seguinte. Pais conscientes e professores éticos se uniram para, civicamente, desobedecer. E para, prudentemente, reaprender a aprender.
Por: José Pacheco
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