Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXI)

Várzea das Moças, 30 de julho de 2043

Naquela tarde de um distante domingo de julho, a fraterna e alegre companhia da Valéria, da Vovó Ludi e do Mauro me fez recordar um outro julho feito de tristeza e luto. Dei por mim relendo mensagens recebidas do meu amigo Rubem. Tinham decorrido nove anos sobre o seu falecimento, mas sentia a sua inefável presença junto daqueles que mantinham viva a sua memória. E senti necessidade de lhe escrever esta carta, quase perdida no fundo do baú das velharias.

Querido amigo,

Eu já havia publicado algumas cartas, quando tu, o Manoel e o Ariano partiram. Falando de tempo – essa humana invenção de que te libertaste –, reparo que já decorreram quinze anos sobre um remoto dia de abril, em que, pela primeira vez, partilhaste o cotidiano da Ponte e me convidaste a conhecer educadores do teu país. 

Desde então, a minha peregrinação pelo Brasil das escolas não cessa, como não cessa o meu aprender com professores, para os quais és inspiração e que conservam na memória e nas práticas as tuas sábias palavras: 

Educar não é ensinar matemática, química, português, que essas coisas podem ser aprendidas nos livros e nos computadores. A primeira tarefa da educação é ensinar a ver. A coisa mais deletéria na relação do professor com o aluno é dar a resposta.”

Poéticas e cruéis sentenças escreveste, meu amigo, porque a tua vida foi coerente com aquilo que escreveste. A tua obra – extensa, diversificada, pautada numa complexa simplicidade – suscita múltiplas leituras. Instigou-me a penetrar mais fundo em contraditórias realidades, observadas por um desarmado olhar europeu, que se surpreendia perante o ostracismo a que alguns pedagogos brasileiros eram remetidos. 

Deste-me a conhecer facetas inesperadas de um Freire, sobre cuja integração na universidade redigiste um “não-parecer”. Como ele, sofreste o exílio, no período sombrio dos governos militares, que marcou o desaparecimento das escolas vocacionais e de outros projetos, que poderiam ter alçado a educação brasileira ao nível da excelência. 

Sei que te fará feliz o saber que uma nova geração de educadores emerge, no Brasil como em Portugal, operando ruturas e não prescindindo do património que tu e outros pedagogos nos legaram. 

Valeu a pena teres vivido “na contramão da História”, aprendendo a surfar o dilúvio de lixo educacional em que a sociedade e a escola se afundaram. Valeu a pena viver a sina de “romântico-conspirador”, pois confirmaste a existência de seres (que o Brecht diria serem indispensáveis), numa carta, de que ouso transcrever um pequeno excerto: 

“O bom é sentir que a “pia conspiratio” é muito maior do que se imagina. Há milhares de irmãos e irmãs desconhecidos sonhando o mesmo sonho.“

Na tua derradeira entrevista, reiteraste a afirmação de que a educação deveria passar por profundas mudanças. Pois fica sabendo, querido amigo, eu talvez os governantes tenham, finalmente, reconhecido o dito de Mandela: 

A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo.”

Resta saber qual é a educação que os governantes têm em mente. Resta saber se essa proclamação é um grito do Ipiranga educacional, ou um prenúncio de morte, porque o sistema já não aguenta mais promessas e paliativos. Tu, que dizias que os educadores deveriam ser esperançosos, saberás agora, que a esperança (de “esperar”) não poderá ser adiada. 

Requiescat in pace, amigo Rubem. Se o teu estatuto de pastor te conferir crédito junto do Pai, pede-Lhe misericórdia para as crianças e o perdão daqueles educadores que recusam escutar-te.

 

Por: José Pacheco

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