Algures, no dia 1 de agosto de 2043
Nos idos de vinte e três, os jovens da fotografia, que junto a esta cartinha, tinham entre 58 e 62 anos de idade. Alguns já eram avós. Três deles já tinham falecido. Era doloroso ver partir um aluno, quase como “arrumar o quarto do filho que já morrera”.
Muita água passou em volta da Terra-de-Entre-Águas (o significado do nome da terra onde a Ponte aconteceu). Há muito tempo já, o vosso avô tomara uma decisão ética irreversível. O tempo de, quixotescamente, pelejar contra ventos e marés cessara.
Neste ano da graça de quarenta e três, é chegado o tempo de fazer a memória de outro tempo, o dos últimos vinte anos.
Naquele tempo, tomando consciência da inutilidade do confronto com um monstro de sete cabeças (o “sistema”), decidi recomeçar como começara, na Ponte dos idos de setenta, quando ousei desobedecer a autoritárias ordens e escapar às armadilhas da sorte, logrando estabelecer práticas do paradigma da aprendizagem. pela primeira vez na história da educação o escolanovismo passava da teoria para uma práxis, na qual o aluno assumiu autonomia, passou de objeto a sujeito de aprendizagem.
Quando me emancipei da solidão da sala de aula, a senhora diretora me ordenava que para lá voltasse. Gritava que não permitiria “falta de respeito pelas autoridades”
Eu recomendava-lhe calma, dizia-lhe que só estava a cumprir a lei e a atender a recomendações de Montessori, de Dewey, da Elise, do Celestin Freinet.
“Não sei quem são esses seus amigos estrangeiros, mas sempre lhe digo que anda com más companhias” (sic)
Aquela diretora “dadora de aula” ignorava a existência e a obra desses e de outros insignes pedagogos. E, sempre que eu quis saber por que me ordenava que voltasse para a sala de aula, ela nada respondia. Ameaçava de fazer queixa ao delegado escolar.
O delegado era boa pessoa, com gentileza me pedia que “acatasse as ordens da senhora diretora”.
Agradecia o conselho, mas não “acatava”.
E lá vinham os inspetores do ministério ameaçar-me com suspensão e até exoneração, acaso eu insistisse em desobedecer aos superiores hierárquicos.
A minha costelinha taurina deixava-os a falar sozinhos. e, serena e resolutamente, aguardava o início dos processos disciplinares.
Havia lido Thoreau:
“Se você já construiu castelos no ar, não tenha vergonha deles. Estão onde devem estar. Agora, dê-lhes alicerces.”
E agia como Gandhi agira e recomendara.
Na Índia da primeira metade do século XX, reagira às injustiças perpetradas pelo Império Britânico. O monopólio britânico proibia os hindus de produzir o seu próprio sal e Gandhi decidiu desobedecer às “Leis do Sal”.
Quando o colonizador ameaçou com represálias, Gandhi informou o vice-rei de que iniciaria uma desobediência civil em massa. E levou os indianos a desafiar o imposto salino cobrado pelos ingleses. A “Marcha do Sal” foi uma das iniciativas não-violentas, que contribuíram para libertar a Índia do colonialismo britânico.
Em 76, eu lera a crítica do instrucionismo feita pela Clarice, quase numa espécie de autocrítica:
“Quando penso que eu dava aulas de matemática e português a ginasianos, mal acredito. Porque hoje seria incapaz de resolver uma raíz quadrada. Quanto a português, era com o maior tédio que eu dava regras de gramática. Depois, felizmente, vim a esquecê-las. É preciso antes saber, depois esquecer. Só então se começa a respirar livremente”.
Há setenta anos, colocamos na entrada da Escola da Ponte um cartaz com versos atribuídos à Clarice:
“Mude, mas comece devagar, porque a direção é mais importante que a velocidade.
Só o que está morto não muda!”
Por: José Pacheco
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