Comunidade da Lagoa das Amendoeiras, 12 de outubro de 2043
No “Plano do Dia” que junto a esta cartinha faltava um “A”, mas não faltava amor. O amor-dedicação da Bruna, do Gabriel, da Francis, do Bruno. Não faltava o amor incondicional da Patrícia, que não sossegava enquanto não se conseguisse matar a fome de alimento e de afeto das crianças da Lagoa das Amendoeiras. Não faltava a amorosidade de uma Vovó Ludi e as suas pedagógicas contribuições. Ali, todos os dias eram “Dia da Criança“.
Dei por mim, relendo Ellen Key, pedagoga sueca autora da obra “O século das Crianças”, publicada no ano 1900. Ellen reivindicava liberdade para aprender, despenalizar o erro, incorporar os pais no labor educativo, suprimir castigos. Aquilo que, hoje, nos parece normal não o era, no final do século XIX. E foi por esse tempo que os estados-nação consolidaram um sistema em tudo oposto às propostas de Ellen Key.
As crianças eram consideradas homúnculos, adultos em tamanho pequeno. Nada de educação que reconhecesse a bondade do estado natural do ser humano. Ou lembrasse Goethe que, na sua obra “Os anos da aprendizagem de Wilhelm Meister”, apelava a um humanismo que elevasse o espírito da criança até dotá-la de um saber próprio e uma sólida responsabilidade. Eram raras as referências à beleza como elemento formativo, à estética como fator de redenção social, pensada por Ruskin e, William Morris.
A profecia de Ellen Key não se cumpriu. O século XX não foi o “Século da Criança”. Mais de meio século decorrido sobre o falecimento de Ellen Key, o vosso avô passou por uma insólita situação.
“A sala do senhor diretor é ali, ao fundo do corredor.”
Segui a indicação da funcionária. Pedi para entrar.
Lá dentro, um silêncio de cemitério. Crianças encolhidas, cabeça baixa, copiando o que estava escrito no quadro negro. Régua de cinco olhos em cima da secretária, uma vara comprida encostada à parede.
“Venha cá, colega! Já estava à sua espera. Vem se apresentar, não é? Ainda bem que chegou um homem! Já se me estava a esgotar a paciência de aturar estes burros. Do que eles precisam é de alguém que lhes arreie forte e feio, sempre que eles precisarem”.
Fiz-lhe ver que não costumava recorrer a castigos e muito menos aos corporais.
“Não seja mole, colega, não seja mole! Você é novo, mas vá por mim, que já cá ando há trinta anos!”
A conversa descaiu para uma análise, pouco fundamentada, do insucesso:
“O colega não espere tirar grande coisa destes gandulos. Pancada é do que eles precisam. Do que eles precisam é de alguém com pedagogia musculada, que lhes arreie forte e feio, sempre que eles precisarem!”
Sarcástico, aquele diretor machista se pronunciou, exatamente como vos digo e se a memória não me trai:
“Ó colega, não sabe por que é que a educação está como está? Caro senhor, está-se mesmo a ver! Na nossa profissão só se vê mulheres. É só mulheres! Está explicado!”
Eu não queria acreditar no que ouvia, mas ouvi, claramente ouvido. Efetivamente, sempre que abria um qualquer livro que reunisse biografias dos mais insignes pedagogos dos últimos séculos, inevitavelmente deparava com referências a dez ou vinte homens e apenas duas mulheres. De Louise Michel a Ellen Key, de Irene Lisboa a Nise da Silveira, da Emília Ferrero à Magda Soares, da Maria Nilde à Amanda Alberto, a lista de ilustres educadoras era extensa, mas não totalmente revelada.
Porquê tal ostracismo imposto a “metade do céu”? Se eu quisesse prestar-me a machismos, diria que, de Alma de Mahler à Elise Freinet e à anónima companheira de Einstein, “por detrás de um grande homem havia sempre uma grande mulher”. Ou seria o contrário?
Por: José Pacheco
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