Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXIV)

Brasília, 11 de outubro de 2043

Voltemos a falar de integral, integralidade, integração, começando por vos contar mais uma estória. Ouvi contá-la assim:

“Enquanto uma menina desenhava, a professora perguntou:

Que desenho é esse? O que estás a desenhar?

Estou a desenhar Deus – respondeu a menina.

Como poderás estar a desenhar Deus, se ninguém sabe como Ele é?

Quando eu acabar de desenhar, a senhora vai saber.”

Foi assim mesmo que respondemos, quando todo mundo duvidava de que fosse possível “desenhar” uma coisa chamada Escola da Ponte.

Eurico Lemos Pires foi personalidade marcante no campo da afirmação da identidade plural das ciências da educação, gestou os conceitos de escola integrada e de educação integral. O seu heterodoxo pensamento abriu caminhos para pensar a educação de diferentes modos. Investigador incansável, foi autor de livros como “Nos meandros do labirinto escolar”, no qual fez um relato sucinto da sua visita à Escola da Ponte.

Foram marcantes as imagens da sua passagem pela nossa escola. Logo à chegada, surpreendeu-se com o fato de não haver portaria nem porteiro e por encontrar um portão aberto. Antes que eu pedisse a uma criança que lhe mostrasse a escola, pediu-me que o “deixasse deambular pelos lugares onde houvesse crianças”. Acedi ao pedido.

A meio da manhã, fui encontrá-lo, sentado junto de uma mesa onde crianças preparavam o “guarda-roupa” de uma peça de teatro. As crianças tinham colado fitas de todas as cores nos escassos cabelos brancos do “amigo Eurico”. Paciente e feliz, o mestre com elas conversava. 

Não quis interromper o diálogo. Discretamente, me retirei dali. Só no início da tarde, quando o mestre Eurico parou o seu deambular, consegui chegar à fala com ele. Visivelmente comovido, me disse:

“Professor Pacheco, durante a minha já longa vida, visitei muitas escolas. Apenas nesta me foi permitido estar com crianças, brincar com elas”.

O Mestre Eurico manifestou agrado por ver como era valorizada a integração comunitária da escola, entendida esta como nodo de uma rede de aprendizagem propiciadora de desenvolvimento local, espaço em que se fomentava a liberdade de pensamento e de expressão, onde todos eram estimulados para a descoberta, para o questionamento e a resolução de problemas, onde a educação integral passava do teor do projeto da escola para a prática quotidiana.

Naquele tempo, no enunciado dos projetos objetivos como este era anunciado: 

“Promover educação integral do estudante, seu pleno desenvolvimento como pessoa”. 

Eram meritórias as intenções, como a de “assumir a educação como meio de promover a justiça social e a igualdade de oportunidades”. Mas, como poderia uma escola fundada no paradigma da instrução assegurar uma prática efetiva de “educação integral”?

No Vale de Santiago, no Alentejo profundo, a Cristina reuniu famílias, professores e lideranças locais, num encontro fundador de comunidade. Numa velha pen drive, consegui reaver o documento que a Cristina enviou para o Agrupamento de Escolas:

“É necessário humanizar a educação, concretizar educação integral. A modernidade está nos tornando individualistas, portanto, precisamos aprender mais sobre convivência e diálogo, sendo oportuno falar de novas construções sociais.”

Havia quem “desenhasse” possíveis futuros. também havia quem os destruísse. Tristes tempos foram aqueles do início dos anos vinte! A Cristina viu ser destruído o seu projeto. Mas não desistiu. Como diria o Aleixo:

“Quem prende a água que corre / é por si próprio enganado / o ribeirinho não morre / vai correr por outro lado.”

 

Por: José Pacheco

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