Lisboa, 7 de novembro de 2043
Por volta de novembro de dois mil e vinte e três, na Faixa de Gaza, entre os muitos milhares de vítimas dos bombardeios israelitas, mais de 3400 eram crianças.
Condoído, Mia Couto falava de caixões pequeninos. Os mesmos que as minhas mais distantes recordações de infância me trazem. Não havia dia que não visse passar esses caixões pequeninos no ombro do homem que os levava para o cemitério. Na Ilha dos Tigres da década de cinquenta, era absurda a taxa de mortalidade infantil. Setenta anos decorridos, a fome e as guerras continuavam a ceifar vidas de inocentes.
Conversava com colegas professores, quando um deles perguntou:
“O que é que isso tem a ver a educação?”
“Tem tudo.” – respondi – “Quem educou os monstros que cometem tais crimes?”
A Família os tinha engendrado e educado. O Estado, através da Escola, havia naturalizado um modelo educacional origem de múltiplas violências. A Sociedade os tinha educado e condenado.
Rompendo o silêncio da denúncia da barbárie, vozes conscientes se faziam ouvir. Como a de Craig Mokhiber:
“Esta será minha última comunicação oficial como Diretor do Escritório de Nova York do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
Estou escrevendo para você em um momento de grande angústia para o mundo, inclusive para muitos de nossos colegas. Mais uma vez, estamos testemunhando o desenrolar de um genocídio diante de nossos olhos e a Organização a que servimos parece impotente para impedi-lo.
Foi nos escritórios da ONU que trabalhei durante os genocídios contra os tutsis, os muçulmanos bósnios, os yazidis e os rohingyas. Em todos os casos, quando a poeira baixou sobre os horrores perpetrados contra populações civis indefesas, ficou dolorosamente claro que havíamos falhado em nosso dever de cumprir os imperativos de prevenir atrocidades em massa, proteger os vulneráveis e responsabilizar os perpetradores. O mesmo tem acontecido com as sucessivas ondas de assassinatos e perseguição de palestinos ao longo da existência das Nações Unidas.
Estamos falhando, mais uma vez. Como advogado de direitos humanos com mais de trinta anos de experiência nesse campo, estou bem ciente de que o conceito de genocídio foi muitas vezes abusado politicamente. Mas a atual matança do povo palestino, enraizada em uma ideologia etnonacionalista colonial, uma continuação de décadas de perseguição e limpeza sistemáticas, baseada inteiramente em sua arabidade e associada a declarações explícitas de intenção do governo israelense e de líderes militares, não deixa espaço para dúvidas ou debates.
Em Gaza, casas, escolas, igrejas, mesquitas e instalações médicas estão sendo atacadas sem motivo e milhares de civis estão sendo massacrados. Na Cisjordânia, incluindo a Jerusalém ocupada, as casas são confiscadas e realocadas exclusivamente com base na raça. Além disso, pogroms violentos perpetrados por colonos são acompanhados por unidades militares israelenses. O apartheid reina em todo o país.
Entrei para esta Organização na década de 1980 porque encontrei uma instituição baseada em princípios e padrões que estavam resolutamente do lado dos direitos humanos. Esse é um caso exemplar de genocídio. Temos muito pelo que nos desculpar. Mas o caminho da expiação é claro. Temos muito a aprender com a posição de princípios adotada nos últimos dias em cidades do mundo todo, onde milhões de pessoas estão se manifestando contra o genocídio, mesmo correndo o risco de serem espancadas e presas.”
Na cartinha de amanhã, talvez volte a falar-vos da tristeza dos caixões pequeninos.
Por: José Pacheco
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