Caraíva, 9 de dezembro de 2043
Na mesma semana da visita ao Campo de São Bento, a Bruna sofria com o drama de uma infância desvalida, a Fernanda organizava um evento, que marcaria a criação da A.R.C.A. do Sul da Bahia. Eu pedia às minhas amigas Caina e Ilana que participassem, colaborassem, pois conhecia a generosidade que as caraterizava e a força de vontade da Fernanda.
Dizia-se que eu era “casamenteiro”, que juntava pessoas, que unia os desunidos. Talvez! Mas, nos idos de vinte, já era raro encontrar energia, ânimo, para enfrentar adversidades.
Os inovadores eram uma espécie em vias de extinção e não habitavam escolas às quais uma qualquer organização, atrevidamente e lamentavelmente, tinha posto o rótulo de “inovação”. Até havia organizações, que se reclamavam de “educação transformadora”, especializadas em elaborar mapas de “escolas inovadoras”, mas que não passavam de caricaturas de mudança.
Dadores de aula hesitantes diziam que “talvez não fosse o momento adequado”. Tal como numa canção da Deolinda:
“Agora não, que eu acho que não posso / Agora não, que falta um impresso”.
Nos períodos de recesso, como nas interrupções de atividade letiva, diretores de escola lamentavam “não ter tempo para tratar dessas coisas”, porque:
“Sabes como é Zé, no final do período e no final do ano letivo, temos muita papelada para preencher. E temos as avaliações”.
“Avaliações ou classificações? E porquê no final de um período, se a lei diz que a avaliação deve ser contínua?
Se lhes dirigia essas e outras perguntas desconstrutoras, manifestavam incómodo:
“Lá vens tu com essas teorias!”
Não eram “teorias”, eram práticas fundamentadas numa teoria prudente.
No dealbar deste século, num livrinho com o título “Para os Filhos dos Filhos dos Nossos Filhos”, de que a Janaína partiu para montar uma bela peça de teatro, tentei contar ao Marcos que era costume os professores juntarem alunos em grupos a que davam a designação de “turma”.
Tive de explicar ao meu neto o que era uma “turma”. A cada olhar de estupefação do Marcos, a narração foi sendo entrecortada pela definição de conceitos, sob risco de o Marcos perder o fio à meada.
Passei pela provação de tentar explicar o inexplicável. Amiúde, o semblante incrédulo do meu neto derrotava a minha argumentação, pelo que lhe dava a entender que os factos narrados já não sucederiam nos dias de hoje.
Sem correr o risco de ofender a inteligência de uma criança, como é possível explicar-lhe que professores dessem “aulas” a “turmas”, ensinando a todos como se o todo fosse um só?
Como explicar que não se apercebessem de diferentes ritmos de aprendizagem? Como explicar que os professores não reconhecessem em cada criança um ser único e irrepetível? Como explicar que juntassem todos os alunos, num mesmo tempo, num mesmo espaço, nas mesmas condições de pressão e temperatura, e a todos aplicassem testes iguais para todos, fazendo perder um tempo precioso aos que sabiam a matéria e impondo chancelas de ignorantes aos que a não sabiam?
Fiz uma pausa na minha narrativa, para dar tempo ao meu neto de respirar fundo e recuperar da perplexidade. Li-lhe uma frase do Rosseau:
“Tudo é perfeito quando sai das mãos de Deus, mas tudo se corrompe nas mãos do Homem”.
Depois, para o sossegar, disse-lhe que seria possível reinventar a Escola.
Para sublimar a impaciência que conduz ao desespero, sempre que pressentia a virginal perturbação do meu neto, me socorria de uma mentirinha piedosa:
“Isso era antigamente.”
Num nove de dezembro de há vinte anos, tal qual fénix renascida, educadores resilientes geraram os alicerces das ARCAs.
Por: José Pacheco
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