Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXLIV)

Recreio dos Bandeirantes, 10 de dezembro de 2043

Nos idos de vinte e três, não passava um dia sem que eu lesse o que a minha amiga Tina publicava. Religiosamente, guardei seus escritos no baú, junto de objetos remotos, mas de indispensável e atual releitura. 

Por isso, lhes retiro a poeira e vo-los dou a ler:

“Uma parede está sendo construída no lugar errado. Há uma comissão, composta por engenheiros e especialistas em construção de paredes, que se une em uma força tarefa para estudar como podem fazer a obra dar certo. Depois de muito estudo, a comissão decide mudar o tipo de material que vem sendo usado para subir a parede. Agora, com o novo material, mais tecnológico, a parede fica bonitona. Ao término da obra, ninguém entende porque, apesar de bonita, a parede deu errado.

Ai daquele que se atreve a dizer que, com base na lei e nos teóricos, ali deveria ter uma ponte.

Até quando a educação vai receber maquiagem nova no que está dando errado?”

E a Tina listava aquilo “que estava dando errado”, para que ninguém tivesse dúvidas: Conteudismo, Instrucionismo, Padronização (geradora da exclusão e evasão), Foco na ensinagem, Fragmentação dos saberes em disciplinas, Professor detentor do saber, controlador, Sala de aula, Carteiras enfileiradas, Nota, Prova, Uso sequencial de material didático, Separação de estudantes por idade ou nível de conhecimento, Competição (geradora do bullying e evasão), Olhar repressor e desaprovador, Ranqueamento, Punição ao erro, Desprezo à curiosidade… E acrescentava que naquela lista, o que não era ilegal, era imoral.

A Tina era um daqueles seres humanos a quem fora concedido o dom de uma amorosa indignação, e deu significativo contributo para a humanização do ato de aprender e ensinar. Confirmava aquilo que Brecht dissera, há um século:

“Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.”

Naquele sábado de novembro, a Tina andava pelas escolas de Mogi, participando do plantio de quarenta árvores, comemorando a chegada de uma primavera, que traria com ela o princípio do fim de uma Educação e de uma Humanidade desumanizadas.

E em que consistia “reumanizar” a Educação? 

Não seria, certamente, em teorizar o amor, mas de Amor em ato. De concretizar velhas promessas e propostas de mudança. De efetivar um Educação capaz de reumanizar a comunidade mundial, a partir das comunidades locais. Seria preciso escutá-las, para resgatar a esperança num futuro, que se construiria num novo saber cuidar.

Os exemplos de Vida da minha amiga Tina me davam alento para não desistir. Inspirado na sua Vida e na sua obra, isto escrevi num livrinho:

“Compreendi por que razão certos professáurios recorriam a uma abundante adjetivação – “líricos”, “lunáticos”, “utópicos” e outros epítetos bem menos lisonjeiros – quando se referiam a professores como a minha amiga. 

Alguns faleceram, outros estão à espera de alguém que os descubra. Insisto numa busca que não cessa, por ter sido nessa busca que me encontrei e encontrei razões para me manter professor. A esses “utópicos” devo quase tudo o que de bom possa ter e ser.” 

Porque se aproximava o Natal, à semelhança dos magos que se deixaram guiar por uma estrela, até uma claridade que rompia as trevas de um casebre, eu mantinha a crença de encontrar mais um marco de referência de uma Escola que irradiasse uma luz dissipadora de desumanas trevas.

 

Por: José Pacheco

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