Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXV

Caraíva, 31 de dezembro de 2043

Netos queridos, com 2043 quase a terminar, venho falar-vos, não de um fim, mas de um início de ano: o do ano letivo de 1976.

Há quase setenta anos, partimos para a reinvenção da Escola. Escrevi “partimos”, porque, como sabeis, um projeto educacional é um ato coletivo. Na Ponte não partimos de problemas, mas daquilo que nós éramos, para aquilo que queríamos ser, porque nós éramos… o problema.

Bem cedo compreendemos que, se reelaborássemos a nossa cultura pessoal e profissional, também estaria em nós a solução, porque um professor não ensina aquilo que diz; transmite aquilo que é. Para sabermos o que éramos, realizamos um exercício simples: escrevemos num papel os dez valores que orientavam as nossas vidas.

Três valores surgiram em todos os papéis: liberdade, solidariedade, responsabilidade. Porém, quando quisemos operacionalizar o valor “liberdade”, deparámo-nos com um obstáculo: não existe uma ciência da liberdade. Ela poderia ser ensinada, mas esse ensino não passaria por uma didática específica, mas por uma gramática que explicitasse transformações.

O conceito que encontramos desenvolvido em termos, mais ou menos, teóricos foi o de autonomia, conceito de vasto espectro semântico e com muitos apêndices: autoestima, autoconfiança, autocontrole, autodisciplina…

A autonomia se assume na relação e o conceito de singularidade lhe é bem próximo. Este se situa muito aquém da autonomia, porque o reconhecimento da singularidade consiste na aceitação das diferenças interindividuais, enquanto a autonomia é o primeiro elemento de compreensão do significado de “sujeito” como complexo individual. Ou, como diria Morin, a componente egocêntrica deste complexo é englobada numa subjetividade comunitária mais larga., porque ser sujeito é ser autónomo, sendo, ao mesmo tempo, dependente.

Desde o início do projeto “Fazer a Ponte”, prevaleceu uma matriz axiológica bem definida. Tudo aquilo que fizemos (ou optamos por não fazer) decorreu de valores.

Não se pense que tais valores foram mero ornamento de um projeto educativo. Eles foram levados às últimas consequências nas mudanças, que, gradual e responsavelmente, introduzimos nas práticas, até à celebração do primeiro contrato de autonomia de que há memória no mundo da educação.

A autonomia exprime-se como produto da relação. Não existe autonomia no isolamento, mas relação EU-TU, no sentido que Buber lhe outorga. É, essencialmente, com os pais e os professores que a criança encontra os limites de um controlo que lhe permite progredir numa autonomia, que é liberdade de experiência e de expressão, dentro de um sistema de relações e de trocas sociais. Conclusão: a autonomia convive com a solidariedade.

Passei os últimos setenta anos afirmando ser um projeto humano resultado do labor de um coletivo. Sofri por ver como as quebras de solidariedade fragilizaram promissores projetos. No sul da Bahia do final de 2023, se anunciava uma nova Educação para um novo tempo. E eu fazia votos de que, em 2024, os educadores se tornassem exemplos de solidariedade, pois a aprendizagem acontece por imitação.

Certo dia, acolhemos na Ponte mais um jovem jogado fora de outra escola. Na primeira ida ao banheiro, o jovem urinou no cesto dos papéis. Na reunião da Assembleia de Escola, um aluno pediu a palavra e disse:

“Eu faço parte da Responsabilidade do Recreio Bom, que também cuida dos banheiros. Quero dizer-vos que, nesta semana, um de nós urinou no cesto dos papéis. E quero pedir a ajuda de todos, para ajudarmos um de nós a não voltar a fazer isso.”

Um de nós!

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