Monte Pascoal, 4 de março de 2044
Naquele tempo, o vosso avô não dispunha de computadores, muito menos de Internet. Apenas de restos da escola prussiana da Ditadura de Salazar. Apenas dispunha do livro único da ditadura, igual para todos, despojos de rezas obrigatórias no início das aulas e o canto obrigatório de hinos fascistas, que eu recusava cantar com os meus alunos.
A democracia chegaria a Portugal em setenta e quatro, mas não chegou a entrar nas escolas. Meio século mais tarde, quando a Escola da Ponte já havia mostrado um dos caminhos possíveis para a humanização do ato de educar, a administração educacional compunha uma escola de massas enfeitada com computadores e Internet, revestida de burocracia, de autoritarismo e corrupção intelectual e moral.
Recordar-vos-eis, certamente, de vos dizer que, quando “dava aula”, não era eu quem estava na sala de aula. Era um ator desempenhando um papel (o planejamento da aula). Eu não estava presente. E, se não havia presença, autenticidade, relação, não havia criação de vínculos. Vem a propósito um dito de Steinbeck:
“Pergunto-me quantas pessoas terei eu, em toda a minha vida, olhado e nunca visto. É assustador pensar nisso. Quando duas pessoas se encontram, cada uma é transformada pela outra e, assim, eis duas novas pessoas”.
Foi com Rudolph Steiner e Martin Buber que consegui ver, claramente visto, “o outro”. Muito mais do que integrar a Euritmia na prática quotidiana, ou da centração na componente artística do processo de aprendizagem, creio ter apreendido e aprendido o fundamental da contribuição de Buber à fenomenologia existencial – a essência do diálogo, da comunicação, o jogo de relações intersubjetivas e com o mundo. Nunca mais andei sozinho.
Se, na década de setenta, a transição para o trabalho em equipe e o abandono da solidão da sala de aula nos transformou, nos formadores e formandos dos anos vinte, a reelaboração cultural operada produziu efeitos individuais e coletivos “diferentes” dos tradicionais.
Independentemente dessa transição, o que importa reter é que as práticas educativas condicionam o grau em que a autonomia se manifesta nos indivíduos. A sublimação das tensões, ou a manipulação dos processos de mudança, a superproteção, ou o autoritarismo, provocam oscilações entre as gratificações resultantes da dependência a as gratificações resultantes de uma autonomia assumida.
Essas práticas são o contraponto lógico de uma interpretação restritiva dos valores da independência e identidade pessoal tão caros às civilizações ocidentais contemporâneas. E a recusa da complexidade exterior acarreta mutações de personalidade e relações ambivalentes com os outros. A multiplicidade de personalidades resultante apenas permite ao sujeito conhecer uma aparência de si próprio.
Transformar pressupõe esclarecer o modo como se opera a politização da cultura. E o sistema de relações que se estabelece entre política, cultura e ideologia permite um re-situar-se permanente face ao social. Creio ser possível que os professores prestem atenção ao tipo de racionalidade que molda as suas próprias pressuposições e com essa racionalidade medeia, como dissera Henry Giroux (na obra “Teoria Crítica e Resistência”), “as regras da cultura dominante e as experiências da sala de aula propiciadas aos alunos.
Urge que o professor confronte pressuposições a respeito dos objetivos da educação, com os tipos de conhecimento e estes com os valores e as relações sociais considerados legítimos, que se interrogue sobre quem vai – e, sobretudo, como vai – ser educado.
Por: José Pacheco
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