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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLXXII)

São Paulo, 10 de maio de 2042

Queridos netos, certamente, estareis recordados do que vos contei numa cartinha enviada há cerca de uma semana. Era o início de uma estória, na qual dedicados discípulos deixaram que a cabaça do mestre se perdesse.

“E, depois?” – perguntastes.

Pois bem! Deixei que uma semana passasse, para que tivésseis ensejo de pensar o “depois”. Vede se a vossa hipótese coincide com o vosso desfecho da estória.

“Quando o mestre acordou, perguntou se estava tudo bem.

“Está tudo bem, mestre — responderam. — Acontece que a tua cabaça caiu.

E vocês não a apanharam? Onde vou agora pôr a minha água? 

Os discípulos responderam:

Mestre, disseste-nos para vermos bem o que caía da carroça e assim fizemos.

Sois mesmo néscios! — replicou o mestre. Não era isso que eu queria dizer, mas o que está feito está feito. A partir de agora, se alguma coisa cair no caminho, apanham-na e põe-na na carroça, perceberam?

Sim, mestre — responderam em uníssono.

O mestre adormeceu, de novo. A carroça balançava e os alunos sentiam dificuldade em manter os olhos abertos. Subitamente, a carroça parou, devido às necessidades dos bois. Quando estes terminaram, a marcha foi retomada. Dois discípulos saltaram para a estrada e apanharam os dejetos para os meter na carroça. Um dejeto caiu sobre a cabeça do mestre, que acordou.

Que estais a fazer? Que porcaria é esta?

Mestre, disseste-nos para apanharmos tudo o que caísse no chão.

O mestre ficou silencioso, por instantes. Decidiu fazer uma lista minuciosa do conteúdo da carroça e deu-a aos discípulos.

Se alguma destas coisas cair do carro, recolhei-a. Mas só o que está escrito na lista.

Sim, mestre — concordaram os alunos.

O mestre voltou a adormecer. A carroça subia uma encosta íngreme, ladeada por um riacho. Os discípulos iam ensonados. De repente, ouviram um grande ruído: o mestre tinha caído à água.

Socorro! Socorro! — gritava.

Os discípulos pegaram na lista e percorreram-na escrupulosamente. O nome do mestre não constava dela. Decidiram retomar o caminho. Ao vê-los afastarem-se, o mestre gritou:

Aonde ides? Parai imediatamente!

Os alunos, obedientes, pararam e foram ao encontro do mestre.

Quereis que eu morra? Caio da carroça, quase me afogo e nenhum me vem socorrer?

Mas, mestre — desculparam-se — não tínheis incluído o vosso nome na lista e nós só devíamos apanhar o que lá estivesse escrito. Quisemos obedecer-vos.

Claro que me obedeceis! — gritou o mestre, exasperado. — Mas o fazeis sem refletir! Pensai antes de agir, em vez de seguirdes cegamente o que eu vos digo para fazer!”

Sei que não agis como esses discípulos. E que estareis a pensar: por que razão o nosso avô nos conta esta estória? Porque, há vinte anos, vigorava o paradigma do comando e controlo. O Donald dissera serem os professores profissionais críticos, reflexivos, mas eram reproduzidas práticas carentes do ato reflexivo e pródigas em atos reflexos. 

Eram trágicas as consequências. Por essa altura, um milhão e seiscentos mil estudantes estavam sob a influência de duas ou mais drogas psiquiátricas. Contava-se por setenta a quantidade de jovens que se mutilavam e por 120 mil os que tentavam suicídio (só nos Estados Unidos). 

O Donald também afirmava que era impossível aprender sem ficar confuso. Neste mesmo dia de há vinte anos, eu completava o meu septuagésimo primeiro ano de vida e começava a suspeitar de que seria eu quem estava confuso e sem razão. Começava a pensar que, por desejar refletir e aprender até ao fim da vida, a minha perplexidade perante a trágica situação talvez não passasse de um primeiro sinal de senilidade. Talvez…

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLXXI)

Parceiros, 9 de maio de 2042

Na década de 80, o prédio onde se começara a “Fazer a Ponte” foi demolido. A Associação de Pais providenciou instalações provisórias. E uma ágora nasceu num edifício de “área-aberta”. 

A ele aspirávamos, desde os anos setenta. Sobre ele o Miguel escreveu um artigo, em língua inglesa. Dele vos falo em português:

“As escolas de “área aberta – tipo P3” foram amplamente contestadas em Portugal. Muitos professores, administradores e até encarregados de educação consideravam este modelo de escola inapropriado e, por isso, um “fracasso”. 

No entanto, a Escola da Ponte, uma das escolas de área aberta que “sobreviveu”, foi reconhecida num guia sobre experiências inovadoras. Curiosamente, uma das principais razões do sucesso dessa escola era, precisamente, o seu design em “área aberta”. Essas escolas eram convites à inovação e abertura à comunidade”. 

Assim falava quem sabia… e a abertura à comunidade se expandiu, quando fiz uma breve passagem pela gestão da autarquia. Foi um tempo propício à participação. O polivalente do novo edifício foi espaço propício à prática de desportos e nele se realizaram inúmeros espetáculos e reuniões. 

Em 87, fui um dos oito professores selecionados para frequentar a primeira licenciatura em Ciências da Educação. Foi tempo de compreender que toda a prática tem, implícita ou explicitamente, teoria. Tudo o que fizéramos na Ponte tinha teoria subjacente. Amor e coragem tinham sido suficientes nos primeiros anos do projeto, mas ignorávamos que o projeto tinha explicação… científica. 

Atualizáramos Montessori, Claparède, Dewey, Steiner, Decroly, Freinet, Freire e um sem-fim de autores da Escola Nova – a transição para o paradigma da aprendizagem estava consumada.

Adaptáramos contribuições da Psicologia da Educação, da Filosofia da Educação, da Sociologia da Educação, do Desenvolvimento Curricular; da Epistemologia, das T. I. C., da Política Educacional, da Psicanálise, das Neurociências, da História da Educação e de outras áreas. Mas, um incidente crítico me propiciaria refletir sobre o que fizéramos. 

Um realizador de cinema fizera um documentário sobre a Ponte e me mostrou algo de que eu não me apercebera. Sempre que eu me sentava junto de um aluno, ele abraçava-me, eu dava-lhe a mão e a conversa fluía. Foi o que aconteceu, quando uma criança ergueu o seu braço e fui ao seu encontro.  Perguntei-lhe:

“Que me queres, amigo Pedro?”

“Tenho uma dúvida, Professor Zé.” – respondeu.

“E qual é a dúvida?”

A conversa findou com uma surpreendente observação:

“Pensa um pouco, professor! Se um ser vivo é aquele que nasce, cresce, se reproduz e morre, então eu não sou um ser vivo, porque ainda não me reproduzi, nem morri.

Quando a criança questionou o que estava escrito nos livros, compreendi que acontecia metacognição, que ela já pensava sobre o pensar. Persistentemente, tínhamos ajudado a desenvolver processos complexos de pensamento. Tínhamos ensinado a selecionar informação pertinente, a analisar e a criticar a informação colhida. As crianças comparavam diferentes informações e as avaliavam. Após as sintetizar, passavam do saber construído à ação, desenvolvendo… competências.

Nas formações realizadas no contexto dos programas de Coordenação Pedagógica dos anos setenta e oitenta, aprendizagens realizadas ainda em transição de sala de aula para novas práticas fertilizaram outras práticas, e nos deram ensejo de pensar sobre o pensar. Sempre que ensinávamos aprendíamos, porque seguíamos o conselho de um jovem aluno: 

“Pensa um pouco, Professor Zé!”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLXX)

Amor, 8 de maio de 2042

A década de setenta se completou com uma passagem por Macieira da Lixa, onde o Padre Mário reabriu a velha Casa do Povo. E por Ferreira, onde quase fui assassinado, até chegar a… Vila das Aves. 

Encantei-me com aquele lugar e com aquela gente. Compramos uma casinha. E lá fomos de abalada – eu, a Fátima e o André – do Porto para o lugar onde um projeto de escola (e de vida!) surgiria.  

A Escola da Ponte era constituída por vários edifícios. Iniciei o meu percurso de trinta anos num velho prédio do bairro da Ponte, feito de uma sala de aula, que, em turnos eu repartia com a “Mãe Dores”. Em menos de um mês, estava integrado. Dois meses depois, apresentava ao Conselho Escolar um documento intitulado “Fazer a Ponte”. 

Naquele tempo, ainda não se falava de “projeto”, mas era um projeto o que eu ousava propor. Perguntei se poderia lê-lo e… “Nem pensar, colega!”.  Ainda tentei cativar alguma das professoras para partilhar o pedagógico empreendimento, argumentei, li o início do documento, que mais além não permitiram que eu fosse. Pedi que dessem opinião. Deram-na.

A primeira colega foi clara:

“Isso é tudo muito lindo, mas eu tenho mais que fazer. De manhã, dou as minhas aulinhas. E, à tarde, tenho a minha loja para manter, que não tenho meios de pagar a uma empregada.”

A segunda professora ironizou:

“Você é jovem. Tem o sangue na guelra. Deixe passar uns aninhos e vai ver que deixa de ser utópico.” 

A terceira, que também era diretora, foi peremptória:

“Não autorizo!”

E por aí se quedou o breve diálogo. As minhas colegas me ignoraram, regressaram aos comentários à “Gabriela Cravo e Canela”. Eu inventei uma ata da reunião, onde não permitiram que eu colocasse registo da proibição. Todas assinaram a ata e eu também a assinei, mas… desobedeci.

Se, entre as professoras, não havia quem quisesse “Fazer a Ponte”, fui à procura de quem quisesse. O Armindo, a Clara, o Augusto, a Henriqueta, o Barros e outros pais e mães dos meus alunos assumiram responsabilidades na primeira associação de pais pós-Ditadura. E com eles me fiz trabalhador da educação ao serviço de um projeto, que uma comunidade adotou.

Decorria o ano de 1976. Vinte anos depois, a Escola da Ponte recebia o Primeiro Prémio do Concurso Experiências Inovadoras, lançado pelo ministério da educação. Trinta anos depois, o Presidente da República me fez comendador da Ordem da Instrução Pública. Entreguei o galardão à Escola da Ponte. Quem merecia homenagem não era eu, era a comunidade constituída, a começar pelos pais.

Hoje, sabemos que a Escola da Ponte foi a primeira a completar a transição entre o paradigma da instrução e o paradigma da aprendizagem. Efetivamente, na década de setenta, o centro já não era o professor, o aluno passara a ter o estatuto de sujeito de aprendizagem.

Através das Atividades de Tempos livres – apesar de todo o tempo ser tempo livre – o chamado “tempo integral” foi instaurado. Todo o tempo era autonomamente gerido. Não faltaram as imposições: “Tem de dar aula!” “Tem de dar nota!” “Tem de trabalhar na sua sala de aula”. “Porquê?” – perguntava. A resposta era nenhuma. 

Seguiram-se conflitos sem fim, ameaças ministeriais. Valeu-nos o incondicional apoio das familias, da comunidade. Mais tarde, inovaríamos, também, no domínio da Direção e Gestão, pois o órgão de Direção era maioritariamente constituído por membros da comunidade. Não existindo diretor não havia… “dever de obediência hierárquica”. Mas, todas as conquistas foram “sol de pouca dura”. 

Queridos netos, a história da Escola da Ponte foi feita de sofrimento e resiliência. A ela voltarei.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLXIX)

Leiria, 7 de maio de 2042

É de George Orwell a seguinte frase:

“Toda propaganda de guerra, toda a gritaria, as mentiras e o ódio, vêm invariavelmente das pessoas que não estão lutando”.

Políticos procuravam explicação para uma guerra na Europa, nos idos de vinte. Comentadores teorizavam o conflito. Mas, no campo de batalha, na prática, quem perecia eram seres humanos de longe comandados. 

No campo da educação, talvez se pudesse estabelecer um paralelo. De igual modo, se poderia dizer que a teoria provinha de pessoas que não estavam fazendo o que teorizavam. 

Decorria a guerra na Ucrânia, quando voltei a Portugal, correspondendo a convites de amigos. Encontrei uma sociedade exausta de reformismos. Deparei com vidas plastificadas e apressadas, com escolas possuídas por uma angústia pandémica. Reencontrei professores doentes da mesma solidão de antanho. No chão da escola, convivi com crianças sujeitas a um bombardeamento sensorial e perceptivo do cérebro.

Num congresso, reencontrei o amigo Carlos, que repetia o apelo feito há trinta, quarenta anos:

“Não podemos continuar com uma escola instrucionista, que digitaliza a relação humana. Acabemos com a sala de aula e com o intervalo”.

Em outros eventos, retomei contato com educadores, que já não via, desde que partira do meu país para um voluntário exílio. Retomei conversas adiadas, com eles preparei projetos de mudança. Mas, também sofri a decepção de reencontrar alguns desses amigos convertidos em áulicos.

Se lhes propunha o diálogo, reagiam como reagiu a diretora da Escola da Ponte, em 1976:

“Está proibido de fazer o que disse que quer fazer. Aqui, quem manda sou eu e o Senhor Delegado Escolar!”

No mês de maio de há vinte anos, fui até Leiria. Encontrei educadores como a Hélia, que me ajudavam a manter a esperança que nunca morre. Mais uma vez, me mostrava disponível para partilhar práxis aprendidas em terra alheia. 

Esperava-me um debate sobre “novas construções sociais de aprendizagem”. Nele participaria um amigo de longa data. Ele fora convidado, aceitara o convite e confirmara a presença. Mas, quando tomou conhecimento de que eu faria parte da mesa de debate, recusou participar, invocando “razões de ordem pessoal”. 

Não havia “razões de ordem pessoal”. Havia gente que estudava, estudava e ia aumentando a arrogância intelectual. Havia quem detestasse quem havia posto em prática o que apenas se teorizava. A erudição dessa gente era a negação da sua prática.

Naquele tempo, eu já não me decepcionava, apenas sentia compaixão e receio de que o teoricismo continuasse a comprometer a mudança e a inovação. 

Quando eu propunha mudança, essa gente contribuía para proibir a mudança. Quando propunha reflexão, interpretavam-na como imposição. Quando me propunha dialogar, respondiam com o silencia e o ostracismo. Quando disponibilizava ajuda, recusavam-na. Quando pedia que me dessem razões da recusa, ignoravam os meus pedidos. Quando ajudava educadores a inovar, impediam que os educadores inovassem.

Recordo-me de, já nos idos de setenta, me ter cansado de escutar palestras proferidas por gente que lia o que um retroprojetor de acetatos debitava. Nos idos de vinte, já não conseguia suportar palestras de power point em que se falava de inovação e “boas práticas”. 

A que se referiam? Onde estariam as “boas práticas”? De que andávamos a falar, desde há mais de quatro décadas?

Quando visitei Portugal, muitas aprendizagens fiz. Não na observação de práticas, mas na leitura de teses produzidas por inovadores não-praticantes. Também compreendi por que havia guerra na Ucrânia.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLXVIII)

Azoia, 6 de maio de 2042

Esta cartinha é feita de muitas datas e algumas memórias. Falo-vos do Portugal de 1986, de 2004 e de… autonomia. 

Tinham passado quase trinta anos sobre a primeira tentativa de democraticidade e participação. Ainda guardo um velho manuscrito (isso mesmo, um manuscrito) redigido em outubro de 76, que consagra a participação da comunidade na vida da escola e que esteve na origem do primeiro estatuto de uma associação de pais. 

Durante o primeiro período de democratização do regime político, entre 1974 e 1976, a assunção de autonomia foi interpretada como forma de autogestão. E, em 1976, a Associação de Pais da Escola da Ponte assumiu o papel de cogestora de um projeto que um professor propunha, visando o exercício autónomo da profissão. A primeira equipa de projeto foi constituída por membros de uma comunidade a que esse professor já pertencia.

Nos idos de oitenta, aprendi com o João como elaborar um enquadramento jurídico, que se abriu a uma autonomia, que ainda não chegara ao chão da escola, após doze anos de regime democrático. Somente no final dos anos 90, a Lei da Autonomia foi publicada. E em 2004, o primeiro contrato de autonomia foi celebrado. 

Em 2004, novas e perversas formas de controlo se instalaram e, no final da primeira década deste século, apenas uma autonomia mitigada era consentida e se converteu em réplicas de novos modos de regulação. 

Algo idêntico havia sucedido na década de 70. A autonomia afirmada pelas escolas levou a administração central a dar-lhe cobertura legal. Mas, terminada a fase de normalização, verificou-se o retorno de uma centralização concentrada e burocrática, explícita no Decreto-Lei n.º 769-A/76.

A Lei n.º 46/86, Lei de Bases do Sistema Educativo recuperou o princípio da autonomia das escolas, lançando na opinião pública e nas escolas o debate em torno de conceitos como: descentralização, desconcentração e diversificação da administração, direção e gestão educacional.

A lei estabeleceu que o sistema educativo se deveria organizar de modo a implementar práticas democráticas e processos participativos, partindo do princípio de que cabia à escola um papel fundamental no desenvolvimento local.

Na segunda metade da década de 80, fiz amizade com um ministro que, por acaso, é das poucas pessoas que conheço que celebram o seu aniversário no mesmo dia que o meu. Esse ministro “taurino” ousou mandar publicar um Decreto-Lei, que previa a transferência progressiva de atribuições e competências para as organizações escolares, traduzindo o reconhecimento pelo Estado da capacidade de as escolas melhor gerirem recursos do que o poder central, através da concretização dos seus projetos educativos. 

No Decreto-Lei 43/89 se dizia que se pretendia redimensionar o perfil e a atuação das escolas nos planos cultural, pedagógico, administrativo e financeiro, alargando simultaneamente, a sua capacidade de diálogo com a comunidade em que se inseriam. No plano pedagógico a autonomia poderia ser exercida na organização dos currículos, na gestão dos processos de avaliação, dos espaços, do tempo. No plano financeiro, a escola poderia elaborar propostas de orçamento, procedendo à gestão financeira.

O meu amigo Rui Canário considerava que a autonomia consentida nesse normativo ainda era precária, residual. O Rui tinha razão. Posteriormente, vários normativos limitaram o seu exercício. E o contrato de autonomia da Ponte não escapou a esse cercear de uma “precária” e “residual” autonomia. 

Disso vos falarei, em breve, neste busquejo, mais ou menos, histórico.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLXVII)

Marinha Grande, 5 de maio de 2042

Certo dia do maio de há vinte anos, apossou-se de mim uma estranha nostalgia, “um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê”. Só sabia que uma inquietação me assaltara, quando a dita “revolução” fazia tantos anos quantos a Ditadura durara. E porque me pusera a fazer uma espécie de “balanço” de quase meio século de intenso labor pedagógico. O “deve e haver” se fizera negativo. Os insucessos superavam tímidas transformações. 

Quis saber onde paravam aqueles com quem estivera, antes da dita “Revolução dos Cravos”, e os encontrei. 

No auge da “revolução”, com eles partilhara a alegria de um alvorecer de liberdade. Com eles me envolvera na implantação do regime democrático. Militantes convictos, fomos para o chão das escolas, anunciando tempos novos para a educação.

Eu vinha do maio de 68. Tentava imitava as pisadas do Adolfo Lima, do Faria de Vasconcelos, do António Sérgio. Amigos exilados me deram a conhecer Agostinho da Silva. Tentava escapar do reino das abstrações, convertendo em imperfeitas práticas conceitos como cidadania, cooperação, autonomia e autogoverno na comunidade, gestão democrática, numa escola de estrutura ética. Sabia que educar ia além de distribuir informação. Buscava a forma perfeita de uma educação integral.

No início dos anos 70. o ministro Veiga Simão já recomendava aulas de tipo coloquial e a organização do trabalho escolar por projetos multidisciplinares. E, quando da engenharia me passei para o Magistério, discretamente, me fiz freinetiano clandestino. Se não possuíamos uma imprensa Freinet, do copiador de gelatina nos servíamos. E os primeiros jornais escolares (como aquele de que vos envio cópia) saiam das mãos das crianças para as mãos dos pais e para os olhos atentos de uma comunidade.

Nesse tempo, militante do Movimento da Escola Moderna, divulgava as técnicas que a Elise e o Celestin haviam engendrado, há meio século: a imprensa Freinet, a correspondência escolar, a assembleia, a classe cooperativa, os ficheiros autocorretivos… E o “Método Natural de Leitura” e a “aula-passeio” eram práticas comuns na Ponte. 

Na Escola do Carmo fiz o meu tirocínio, agregando uma diversidade de tendências. Juntei os materiais Montessori aos centros de interesse do Decroly. Recuperei a individualização do Dottrens e a juntei ao “learning by doing” do Dewey. Adaptei o personalismo do Mounier e o compatibilizei com a antroposófica euritmia do Steiner. 

Na Ponte, pude, enfim, conciliar tendências, metodologias e técnicas, ajudar a unir, constituir uma equipe e uma comunidade. Em trabalho de equipe, o “Fazer a Ponte” muitas pontes fez. 

Numa viagem a Portugal, voltei à Ponte por desejo de pais leais ao projeto, conscientes da necessidade de o relançar. Me ofereci para ajudar a retomar caminhos de mudança, que em outras escolas já iniciáramos. Rejeitaram a oferta. Impuseram silêncio e distância.

Tentei, também, dialogar com amigos de longa data, pessoas que eu muito estimava. Tinham optado pela carreira universitária, produzindo teoria jamais posta em prática. Desdenharam.

Caminhos paralelos dificilmente se encontram. Esses amigos discorriam sobre transição paradigmática, mas contribuíam para legitimar a manutenção do paradigma da instrução, ainda que disfarçado de “flexibilizações curriculares” ou pseudo-autonomias. Quando afirmei a necessidade de criar uma turma-piloto, esses amigos viraram obstáculos. 

No passado, eu fora para eles “uma referência”. Decorrido meio século me transformaram num “incómodo”. 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLXVI)

Pampilhosa da Serra, 3 de maio de 2042

Notícia de jornal dos idos de vinte: 

“Rússia nega fim da guerra na Ucrânia a 9 de maio”. 

Naquele tempo, uma guerra tinha dia e horário previamente fixados para começar e para terminar. Feitas as contas às “baixas” (leia-se: seres humanos assassinados), as máquinas de guerra regressavam aos quartéis e as fábricas de armamento retomavam a produção de máquinas de matar, para as comercializar na guerra seguinte.

O ministro dos Negócios Estrangeiros russo assim falava:

“Os nossos militares não ajustarão artificialmente as suas ações a qualquer data, incluindo o Dia da Vitória”

Referia-se à data comemorativa de 9 de maio de 1945 e à rendição nazi aos Aliados. A Rússia celebrava o Dia da Vitória com grande pompa e circunstância, com um grande desfile militar no centro de Moscovo, onde o Patriarca Cirilo, líder da Igreja Ortodoxa russa, um dos pilares do regime de Vladimir Putin, apelava à “unidade com o poder frente aos ‘inimigos’ da Rússia, os inimigos externos e internos.” 

Isto dissera num sermão, ao “lutar contra as forças do mal”:

“Neste período difícil para a nossa pátria, que o Senhor ajude cada um de nós a ser um corpo, inclusive em torno do Governo, e que ajude o Governo a assegurar a sua responsabilidade perante o povo e a servi-lo com humildade e boa vontade, até ao ponto de dar a sua própria vida. É assim que a verdadeira solidariedade emergirá no nosso povo, a capacidade de construir uma vida com mais bondade, verdade e amor”.

Dar a própria vida, Pátria, humildade, solidariedade, bondade, verdade, amor… o vilipêndio da palavra, a manipulação da turba.

Do amigo Léo recebi o seguinte comentário: 

“Zé, não há algo mais terrível que as guerras. A humanidade, contudo, só construiu o sentido de Paz (não armada) há menos de oitenta anos. Todos nós nascemos num mundo e em lugares deste vasto planeta em que a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos já era uma realidade. Pena que as escolas continuem organizadas a partir dos processos de disputa e classificação, mantendo, portanto, vivas as características básicas dos processos prussianos de formação. Os mesmos processos que construíram as civilizações das Grandes Guerras do século XX. 

Estou lendo Bauman e vejo nele a crítica ao cientificismo moderno, que com seus rituais, separa o mundo entre pensadores e práticos… parece que o mundo não consegue desapegar dessa ideia de que o fazer-pensar-fazer são faces da mesma moeda.”

Não havia qualquer dúvida de que ainda vivíamos numa proto-história da Humanidade, pois ainda havia tribunais, prisões, guerras. 

Uma educação familiar, social e escolar patriarcal, um sistema social concebido com os homens no centro, os “chefes de família” da vida social e política, transmitindo valores patrimoniais paternos, desumanizara o ato de educar.

Urgia humanizar a educação. Mas, como o fazer, sob o esmagador peso de uma tradição de séculos? As fontes judaico-cristãs acerca do homem e da mulher expressavam princípios de igualdade originária entre géneros. Por exemplo, no livro do Gênesis: 

“Deus criou o ser humano a sua imagem, macho e fêmea” (1,27). 

E no Novo Testamento: 

“Não há homem nem mulher, todos são um em Cristo Jesus” (Gal 3,28).

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLXV)

Valongo, 2 de maio de 2042

Queridos netos, 

Esta cartinha será feita de palavras alheias, colhidas numa velha rede social. Deixo ao vosso cuidado delas extrair alguma conclusão, se conclusão houver. 

Larrosa dissera que a educação era o lugar da relação, do encontro com o outro. Ao mesmo tempo, nos seus escritos, denunciava que participávamos de uma dominação cultural e de algumas instituições, ditas educativas, nas quais esse encontro era pensado como predeterminado. Exemplo vivo dessa situação eram espaços supostamente educativos, eivados de lideranças tóxicas e micro ditaduras, a que deram o nome de “escolas”. 

Nelas se decidia quem o outro era, ou quem teria de ser, o que lhe teria de acontecer, o que deveriam esperar dos encontros com outros predeterminados e o que aproveitar dos outros. Planificava-se aulas, impunha-se um horário padrão, medidas disciplinares autocráticas, injunções e coações em tudo opostas à possibilidade da experiência daquilo que nos conduzia por caminhos imprevistos, que nos confrontava com os mistérios do viver, na gestão da imprevisibilidade das relações autênticas com outros. 

Mostrava-se urgente pensar e viver a educação na “alteridade”, sem fazer do outro objeto de nossa programação, assumindo a responsabilidade desse encontro, na aspiração a que fosse formativo.

A propósito, aqui vos deixo um textinho do Perrenoud: 

“Toda situação didática proposta ou imposta uniformemente a um grupo de alunos é inadequada para uma parcela deles. Para alguns, pode ser dominada facilmente e, por isso, não constitui um desafio nem provoca aprendizagem. Outros, porém, não conseguem entender a tarefa e, por isso, não se envolvem nela. Mesmo quando a situação está em harmonia com o nível de desenvolvimento e as capacidades cognitivas dos alunos, pode parecer desprovida de sentido e não gera nenhuma atividade notável em nível intelectual e, por conseguinte, nenhuma construção de novos conhecimentos nem um reforço das aquisições. Por esse motivo, uma definição possível da diferenciação do ensino é a seguinte: diferenciar é organizar as interações e as atividades, de modo que cada aluno seja confrontado constantemente, ou ao menos com bastante frequência, com as situações didáticas mais fecundas para ele. Como atingir esse ideal?” 

A Rosário comentou o texto: 

“Difícil de responder. Diferenciar alunos é difícil com tantos dentro da sala. Se calhar! Parece-me válido para todas as disciplinas. Impossível de ser realizado quando o professor tem muitas turmas.”

Se calhar… . Dentro da sala., disciplinas, turmas, como se a Ponte nunca tivesse existido.

E um José acresentava:

“Cada ser humano é um fenómeno. Se percebermos isso já evitamos um conjunto muito grande de erros, daqueles que se vão cometendo todos os dias nas escolas, dentro das salas de aula.”

A Ponte teria existido? Confesso a minha perplexidade. Nesse maio de vinte e dois, eu passara por congresssos e seminários, nos quais escutava a costumeira ladainha. O tempo teria parado em meados do século XX? 

Nos longínquos idos de vinte, havia quem teorizasse o que fizéramos na Ponte, cinquenta anos antes. Havia quem se perdesse em estéreis debates, como se a Ponte, ou o Projeto Âncora, nunca tivessem existido. Valiam-me “postagens” de amigos como o Tuck:

“O centro da educação não são os professores, nem o prédio, nem os conteúdos, não os alunos… o centro é a relação. E na relação está tudo: planeta, pessoas, informações, conhecimento, arte e as emoções. Quando não estão no centro, o adoecimento costuma ser um dos últimos sinais de alerta.” 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLXIV)

Apúlia, 1 de maio de 2042

Novas tragédias se sucederam à pandemia. Habitamos a Proto-História do Homem. No tempo que nos coube em sorte viver, os homens dirimiam os seus conflitos, matando em nome de um credo, usurpando territórios em nome da paz. 

A Organização das Nações Unidas e outras frágeis instituições desse tempo eram reflexos de uma humanização precária. E a instituição Escola, concebida como berço de oportunidades, ainda era um berço de desigualdades. 

O espaço público da Educação ultrapassara a exiguidade das paredes de uma sala de aula, mas muitos educadores ainda não se tinham apercebido dessa mutação. Por seu turno, as medidas políticas que visavam reformar a instituição, estavam fundadas em vícios institucionais jamais questionados e em medidas avulsas. Sucediam-se os decretos e os despachos e os seus correspondentes e gongóricos relatórios. 

Acumulavam-se no ministério e nas universidades dispendiosos “estudos”, que não logram ir além de óbvias e ressequidas “recomendações”. Bem nos avisava a Hannah Arendt: tudo quanto é real ou autêntico é atacado pela força esmagadora da «tagarelice» que irresistivelmente emanava do domínio público, determinando cada aspecto da vida quotidiana, antecipando e aniquilando o sentido ou o sem-sentido de tudo. 

Guardava relatórios como o da “autonomia e flexibilização” – um dos inúteis projetos lançados pelo ministério da educação – no ficheiro das anedotas sem piada. Vivíamos imersos em diferentes culturas, mas as medidas de política educativa eram aplicadas, indiferenciadamente, em todos os países. A realidade educacional era condicionada por influências transnacionais, num projeto de modernidade ainda por cumprir. Aferíamos o estado do sistema educativo através de estudos comparativos, como se fosse possível reduzir a realidade a cifras, ou comparar o que era, diametralmente, diferente. 

As leis preconizavam que se deveria assegurar uma formação geral comum a todos, proporcionar aos alunos experiências que favorecessem a sua maturidade física e sócio-afectiva e criar condições de promoção do sucesso escolar e educativo a todos os alunos. Porém, convivíamos com o “insucesso educativo” como se a expressão não fosse, em si mesma, paradoxal. Como pode a palavra “educativo” ser adjetivo da palavra insucesso? 

Nesse tempo, uma administração autoritária ainda fazia calar muitas vozes. Como a do professor que me escreveu: 

“A tristeza vem quando me deparo com a realidade das nossas escolas. Pergunto-me: por que será que muitos professores resistem tanto a uma pedagogia diferenciada, quando, para mim e para tantos outros professores a sua pertinência é tão óbvia?”

Recordo uma parábola contada pelo meu amigo Matias:

“Era uma vez um mestre que tinha vários discípulos. Estes veneravam-no e seguiam escrupulosamente todas as suas instruções.

Um dia, o mestre decidiu que era tempo de ir ensinar noutras aldeias. Acompanhado pelos seus fiéis alunos, fez-se à estrada, sentado num carro puxado por dois bois. Ao fim de algumas horas, o mestre, sentindo-se cansado, instalou-se confortavelmente no fundo da carroça e disse aos discípulos:

“Meus amigos, vou dormir um pouco. Tomai conta da minha bagagem. Sede vigilantes e observai atentamente tudo o que cair”.

Os discípulos anuíram e ele adormeceu tranquilamente. A dada altura, a carroça embateu numa rocha e a cabaça do mestre caiu. 

Os alunos arregalaram os olhos e viram a cabaça dar um salto e cair num fosso. Observaram-na sempre com a maior atenção”.

Como terá reagido o Mestre? Amanhã o sabereis. Vos contarei.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLXIII)

Fão, 2 de maio de 2042

De passagem por Braga, reencontrei o Bernardino, amigo de há muitos anos. Era o coordenador de uma instituição que dava pelo nome de Comissão Justiça e Paz. Nesses tempos sombrios, o Bernardino alertava para “a urgência do diálogo” e para a possibilidade do aumento dos conflitos interpessoais.

A Comissão defendia ser urgente “protelar por uma ética do diálogo e do cuidado, de atenção aos rostos feridos pelo abandono e pela carência extremas”. Era crescente a vulnerabilidade económica e social. Urgia rever os valores transmitidos aos jovens e assumir um compromisso ético:

“Sem instituições justas, comprometidas com a procura do bem comum, dificilmente se sobrevive ao caos individual, nem faremos da terra o lugar de uma qualidade de vida ecológica, em relação sadia consigo mesmo, com os outros, com o tempo ou com os lugares”.

Impotentes, em pleno século XXI, assistíamos a uma guerra tão cruel e destrutiva como as anteriores. Mini ditadores falavam da possibilidade de acontecer uma guerra nuclear e o Guterres (comissário das Nações Unidas) recusava essa possibilidade, dizendo ser a guerra um absurdo em pleno século XXI.

Putin fazia ameaças nucleares à Otan, que prometera reforçar a ajuda militar à Ucrânia, para combater a invasão russa: 

“Nós não vamos ostentar nossas armas, mas sim vamos usá-las se for preciso. Quero que todos saibam disso.”

O conflito atingia o grau da demência, porque, a acontecer uma guerra nuclear, ela seria a última das guerras.

Zelensky denunciava centenas de violações de crianças por militares russos:

“Centenas de casos de violações registados em áreas que estiveram sob ocupação do exército russo, incluindo meninas menores de idade e crianças muito pequenas”. 

Nas áreas libertadas da ocupação, o registo e a investigação de crimes de guerra continuavam. Eram encontradas valas comuns:

“Milhares e milhares de vítimas. Centenas de casos de tortura. Continuamos a encontrar corpos em canalizações e em caves. Foram registadas centenas de casos de violações, incluindo de meninas e crianças menores de idade. Até de um bebé!” 

Uma comunicação social tendenciosa e a contrainformação dos agressores tentavam justificar a matança dos inocentes. Perdera-se o senso de humanidade, pouco valia a vida humana. Destruídas as casas e os pertences, restava a fuga, a busca de um refúgio. Na Pampilhosa da Serra, a Cléo cuidava de dezenas de crianças vítimas da guerra na Ucrânia. 

Oculta, uma guerra surda acontecia no extremo oposto da geografia. Nos Estados Unidos, uma criança de quatro anos morria, após ter sido forçada a beber uma garrafa de uísque:

“Roxanne, de 53 anos, forçou a neta a beber uma garrafa inteira de uísque. A mãe da criança presenciou o crime. Ambas foram detidas e levadas para a prisão, acusadas de homicídio. China Record, de quatro anos, morreu devido a intoxicação alcoólica aguda”.

No Brasil, a imprensa nos dizia que o mundo estava em guerra e não só na Ucrânia.

“Célia foi espancada pelos seus vizinhos, após ser acusada de denunciar para a Polícia Militar uma festa que aconteceria em uma casa ao lado da sua. Ao sair de futevôlei, um adolescente de 14 anos foi estuprado. “Agro milícias” assassinaram 35 pessoas em conflitos no campo. Filha vem do Peru ao Brasil se aproximar do pai e é estuprada por ele. Vítima foi resgatada após passar seis dias em cárcere privado sendo estuprada (sic)”. 

O assaltos, os latrocínios, o assassinato de homossexuais e o feminicídio eram rotineiras notícias. E dávamo-nos conta de como era curta a distância entre um feminicídio e uma guerra na Ucrânia.

Por: José Pacheco

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