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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXXIX

Caraíva, 14 de janeiro de 2044

Era uma vez… uma escola que dispunha de um belo projeto, no qual pontificavam os valores inscritos na Lei de Diretrizes e Bases: autonomia, respeito, democraticidade… O projeto (escrito) continha abundantes citações de autores na moda, num discurso feito de pedagogia pseudo-humanista e de caricaturas de construtivismo. A prática era a negação daquilo que estava escrito.

Pais que aderiram ao projeto, conscientemente, crentes de que a autonomia seria construída através da cooperação, perguntavam:

“Como é possível desenvolver autonomia numa sala de aula, quando se considera o educador como objeto, mero executante de determinações?”

Logo surgiram torpes reações. E o esforço de uma pequena equipe de professores se perdeu entre os caprichos do diretor e a conivência de serviçais “professores”, que, para não perderem o emprego, perderam a dignidade.

Como muitas outras, aquela escola era uma fraude sustentada por mensalidades milionárias. O rendimento académico pouco se distanciava de um mísero IDEB. Os padrões de comportamento refletiam uma herança civilizatória calcada na dominação, no autoritarismo. Os educadores, que ousaram não concordar com absurdas decisões, não puderam fazer ouvir a sua voz. Foram intimidados, ostracizados e até mesmo despedidos. E a escola permaneceu cativa de uma conceção de produção em série e do papaguear conteúdo. Alguns pais, os mais conscientes da situação, reagiram, exigiram o cumprimento do projeto. Porque não foram escutados, levaram os seus filhos para outras escolas.

Queridos netos, a Escola da Ponte era bem conhecida no Brasil, dada a boa qualidade do seu projeto, e.o vosso avô tinha sido convidado para (gratuitamente) assessorar o trabalho dessa escola. Para que, mais uma vez, eu não fosse usado como “garoto propaganda, denunciei contradições e me afastei.

Mais uma iniciativa de professores éticos fora frustrada. Mas não se pense que os pais e professores desistiram – foram recomeçar em outro lugar.

A situação descrita não era inédita. Era bem comum, aliás, e permitia-nos perceber uma das razões pelas quais o Brasil continuava imerso numa profunda crise moral. O (mau) exemplo vinha de cima, apesar de algumas boas (e raras) exceções.

Escasseava o poder do bom exemplo, mas, há cerca de trinta anos, um deputado federal fez a sua estreia na Câmara abrindo mão dos salários extras que os parlamentares recebiam (14° e 15° salários), reduzindo a sua verba de gabinete e o número de assessores a que teria direito, tudo com caráter irrevogável.

Também reduziu em mais de 80% a cota interna do gabinete de R$ 23.030 para apenas R$ 4.600. Prescindiu de toda verba indemnizatória e de toda cota de passagens aéreas e do auxílio-moradia.

Com esta (solitária) atitude, irá levar os cofres públicos a economizar mais de R$ 2,3 milhões, nos quatro anos do seu mandato.

O deputado José justificou deste modo a sua decisão:

Um mandato parlamentar pode ser de qualidade custando bem menos para o contribuinte do que custa hoje. Esses gastos excessivos são um desrespeito ao contribuinte. Estou fazendo a minha parte e honrando o compromisso que assumi com meus eleitores.”

Diria o Pessoa:

“Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes.”

À semelhança dos seus pares, esse deputado não nascera assim – assim o fizeram. A sua educação familiar e social deveria ter sido bem diferente da dos restantes. Talvez tivesse passado por uma escola feita de professores éticos.

Não haverá razões para sermos esperançosos?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXXVIII

Caçapava do Sul, 13 de janeiro de 2044

Eis-me regressado ao Sul. Desta vez, não pretendo voltar às lides, apenas acompanhar os projetos que, com a Vovó Ludi, ajudei a criar. Coontinuo aprendendo, reaprendendo, partilhando os meus parcos saberes. Neste mesmo mês, o de janeiro, mas de há vinte anos, tambéim voltava ao Brasil possuído por dois antagónicos sentimentos.

Por um lado, se reforçara a esperança de profundas mudanças, por obra daqueles que, reunidos numa ARCA produziam efetiva inovação. Por outro, a deceção de ver que os professores ainda assistiam a palestras de power point, e que a formação de professores continuava tão anacrónica e deformadora como cinquenta anos antes o era. Mas, sobretudo o que mais me preocupava era assistir a conflitos de egos e jogos de poder.

A primeira ARCA brasileira nasceu em Caraíva, em fevereiro de dois mil e vinte e quatro. Estiveram presentes projetos de várias regiões do Brasil e do município de Porto Seguro, alguns dos quais eu ajudara a nascer. Religar era a palavra de ordem, saber dirimir diferenças, cultivar valores comuns, cooperar, concretizar uma nova visão de mundo. Era difícil a tarefa! À semelhança da “via-sacra” vivida nos primórdios do “Fazer a Ponte”.

Mudança, na linguagem ideográfica oriental é a mistura de dois ideogramas: oportunidade e sofrimento. E também o Pessoa já dizia que “quem quiser passar além do Bojador terá de passar além da dor”. Contra ventos e marés erguemos essse projeto. Escolas são pessoas, mas são as pessoas que, não raramente, invalidam intenções. Foi precisa muita paciência, muitas lágrimas vertidas. Quando vos contar a história da Ponte, vereis que foi resultado de resiliência e de muito sofrimento.

Os pais dos nossos alunos foram os nossos maiores aliados. Quando a “fofoca” e a maldicência se instalavam nas relações humanas, os pais defendiam o projeto como uma leoa defende os seus filhos. Até que, após mais de vinte anos de projeto, o ministério da educação o consagrou e o reconheceu no “Primeiro Prémio do Concurso Experiências Inovadoras no Ensino”.

Como corolário de reconhecimento, o ministério celebrou com a Ponte o primeiro contrato de autonomia de que há memória. Porém, não tardaram as tentativas de destruição do projeto. Entre dois mil e quatro e dois mil e doze, perante artimanhas de políticos matreiros e uma sucessão de decisões (tão autoritárias, quanto ilegais) do ministério, o projeto “cristalizou”.

Talvez, um dia, vos fale desse conturbado período. Quase setenta anos após a chegada do vosso avô a Vila das Aves, resta a gratidão àqueles que fizeram possível a continuidade do projeto. Talvez, um dia, vos fale desse conturbado período. Por agora, a mensagem que vos deixo é esta: é muito fácil começar um projeto; difícil é não o desvirtuar, ou não o deixar morrer. Por isso, no Brasil dos idos de vinte, cuidei de ajudar a criar uma organização – a ARCA – na qual se religaram projetos isolados.

Na ARCA não cabiam educadores auto-centrados, nem protagonismos fúteis. A cultura profissional seria reelaborada, ao longo de um processo de formação iniciado em meados de fevereiro de dois mil e vinte e quatro.

Nesse tempo, a cultura profissional dos professores era condicionada pela obediência formal a “superiores hierárquicos” e pela tentação de entrar na “zona de conforto”, de onde jamais sairiam. E, por essa razão, a maioria dos professores morria aos vinte e era enterrada aos sessenta ou setenta.

Netos queridos, por que seria tão difícil deixar de ser dador de aula, nesse tempo? O que os impedia de tomar a decisão ética de serem professores?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXXVII

Montemor-o-Novo, 12 de janeiro de 2044

Nos idos de vinte, muitos jovens passavam mais de uma década a estudar em manuais didáticos a necessidade de cuidar dos recursos naturais, em escolas e salas de aula marginais à possibilidade concreta de intervenção em conflitos socioambientais.

Era provável que uma criança ingressasse no primeiro ano de escolaridade numa escola ao lado de um córrego poluído e saísse de lá, ao cabo de alguns anos, com o córrego ainda mais poluído. Era bem provável que os seus professores atravessassem décadas “dando aula” de educação ambiental, sem lançar um olhar sequer para além dos muros da escola.

Poder-se-ia pensar que a uma escolarização prolongada propiciaria uma maior consciência ambiental, mas isso raramente acontecia por efeito de uma escola distante da vida real.

No início deste século, o Greenpeace lançava contínuos alertas:

“Quando a última árvore tiver caído, quando o último rio tiver secado, quando o último peixe for pescado, vocês vão entender que dinheiro não se come.”

A Terra continuaria doente, augurando-se graves conflitos socioambientais, enquanto a nossa maneira de viver fosse reproduzida em contravalores, que muitas escolas insistiam em transmitir.

Entrei no banheiro de um aeroporto, lugar de passagem de executivos, pessoas de “formação superior”, supostamente na posse de muitos conteúdos de educação ambiental. A água escorria abundante de uma torneira avariada, mas ninguém se importou com o fato. Por cima da máquina de onde era arrancadas resmas de papel, havia um apelo:

“Senhores usuários, sejam educados. Duas folhas são suficientes para enxugar as mãos”.

O americano Richard Louv criou um novo conceito: “transtorno da falta de contato com a natureza”. Verificou a tendência, cada dia mais evidente, de as novas gerações se afastarem do contato com a natureza, de que resultava uma conjunto de problemas comportamentais.

As crianças tinham bons motivos para ficar dentro de casa: computador, videogames, televisão. Gastavam, em média, 44 horas por semana a jogar polegares sobre mídias eletrônicas. Por seu turno, as escolas levavam-nas a explorar o ambiente… em livros didáticos.

Urgia instituir novas práticas sociais nos lugares onde a educação do caráter acontecia. Um dos projetos, que ajudei a conceber – a Escola do Projeto Âncora” – visava passar do contra-turno para uma escola, pois, nas suas palavras: fazer tempo integral era como “tentar enxugar gelo”.

O amigo Walter me enviou estas palavras:

“Por muito tempo tratamos a Terra como algo a nosso serviço, que podíamos aproveitar ilimitadamente. Nunca pensamos na Terra como sendo nós também parte dela, de seu complexo sistema de vida.

O Projeto Âncora tem intensificado cada vez mais o trabalho de consciência ecológica com as crianças e jovens. Acreditamos que esses meninos e meninas além de estarem abertos, mais que os adultos, às necessidades de mudanças em comportamentos e atitudes, são capazes de influenciar suas famílias.

Em nosso dia a dia, podemos usar a Carta da Terra como nosso código de conduta. Nos alegremos por viver neste momento da história humana, onde nos é dada a possibilidade de mudar o rumo da história e salvarmo-nos da destruição da vida.”

No início da segunda década deste século, uma comunidade de aprendizagem começou a tomar forma. Fomos reunir no “Recanto Suave”, para ajudar a resolver a poluição do córrego, que o atravessava. Tornámo-nos incómodos para políticos corruptos. Os novos protagonistas do Âncora atraiçoaram a memória do amigo Walter, e o projeto foi destruído.

Porquê?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXXVI

Estremoz, 11 de janeiro de 2043

Em 1996, quando o Ministério da Educação de Portugal reconheceu a Escola da Ponte como a escola mais inovadora do nosso país, tive o cuidado de avisar que a inovação mataria a inovação, se não fosse assegurada a estabilidade da equipe de projeto, pelo menos, por três anos – as constantes entradas e saídas de professores eram fator de desagregação – e que seria indispensável celebrar um contrato de autonomia.

Volvidos oito longos anos, o contrato foi celebrado. A Escola da Ponte poderia acolher aqueles educadores que optassem por cumprir o seu projeto – em concurso universal, com rigorosos parâmetros e critérios de seleção. À margem da lei, ardis burocráticos retiraram à Ponte essa competência.

Quando fiz parte do Conselho Nacional de Educação, coube-me redigir um “parecer” sobre uma reforma do currículo. No documento, fiz lembrar a necessidade de formalizar contratos de autonomia, sem os quais as minhas “recomendações” seriam inúteis.

Vinte anos depois, quando, no Ministério da Educação do Brasil, integrei o Grupo de Trabalho da Criatividade e Inovação, insisti na necessidade de dotar de autonomia os projetos considerados com potencial inovador. Foi dada visibilidade social a 178 projetos. Decorrida meia dúzia de anos, poucos restavam em atividade. Alguns restavam, mas desvirtuados, “cristalizados”. Os restantes tinham sido destruídos.

Naquele tempo, já tinham sido inventados os “contra-turnos”, as “atividades de enriquecimento curricular” e de “apoio às famílias”, e o “tempo integral”. Eram, respetivamente, formas de desculpabilização curricular, doses duplas de tédio e trabalho de baby sitter, e um tempo integral confundido com educação integral.

Em 2024, quando se pensava ter-se extinguido o espírito fundador desses projetos, muitos deles renasceram. Reagindo à insanidade do “sistema de ensinagem”, uma rede de comunidades emergiu do pântano em que a educação se encontrava.

Pais e professores conscientes dos perniciosos efeitos do rame-rame das salas de aula, não permitiram que os jovens continuassem, por demasiado tempo, “aglomerados” dentro de prédios a que chamavam “escolas”. Um sistema de ensinagem hierárquico, autoritário, imoral e corrupto viria a ser reconstituído como sistema de aprendizagem caraterizadoa pela equidade, democraticidade e ética.

Eu poderia acrescentar a igualdade, a honestidade, a coerência e outros valores identificados nesses projetos, mas opto por falar de lealdade a princípios.

Diz-nos o dicionário que lealdade é qualidade, ação ou procedimento de quem é leal, honesto, fiel a compromissos. E a lealdade, como qualquer outro valor, no exercício da lealdade se aprende.

Se os jovens estavam sempre atentos ao exemplo de vida dos adultos e aos valores que eles traduziam, se, através do exemplo, não fossemos leais, abriríamos espaço para desenvolvimento de contra-valores.

Vezes sem conta, repeti o pedagógico (ou antropagógico) estribilho:

“Escolas são pessoas. As pessoas são os seus valores.

Explícita ou implicitamente, os projetos humanos refletiam valores. Na teoria como na prática, se requeria lealdade a valores. Em que vida estarímos a educar os nossos jovens? Numa vida coerente com valores, na lealdade a princípios? Que virtudes eram ensinadas e aprendidas pelos nossos jovens?

Se um dos valores proclamados pelos professores era o da autonomia e se o professor em sala de aula não era autónomo, se os professores não ensinavam o que falavam, mas transmitiam aquilo que eram, por que continuavam a “dar aula”?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXXV

Borba, 10 de janeiro de 2044.

Perguntais-me por que troquei o calor tropical por um rigoroso inverno europeu. E vos digo que está a ser bem difícil o frio do Norte. Por isso, depois dos encontros realizados nas escolas de Entre Douro e Minho, acompanhados pelo bacalhau à moda da Julinha e de uns tintos de aquecer o corpo até aos ossos, o vosso avô veio até ao Alentejo.

Hoje, a Vovó Paula faz setenta e oito anos. Sempre que celebro este aniversário, me recordo do marido da minha irmã, o Paulo. E me revejo personagem da sua história de vida.

Preocupado, o Paulo pediu-me conselho:

“Sinceramente, qual será a melhor escola para matricular a minha filha na “primeira classe? Faça de conta que a minha filha Catarina era sua filha! Que me diz?”

Lacónica e sinceramente, respondi:

“Há bons professores em todas as escolas.”

Mas o Paulo não desarmou:

“Não é bem assim. Na minha primeira classe, eu tive dois professores. Um tratou-me tão bem que eu nunca mais o esqueci. A outra foi uma cabra que me fez odiar tanto a escola, que me raspei dali para fora

“O que foi que ela fez?” – retorqui.

“Eu era muito pobre e a professora fazia distinção. Pôs-me ao fundo da sala, ao lado dos meninos pobres e da fila dos burros.”

“E o outro professor também era assim?”

“Esse era muito diferente. Tratava-nos a todos com meiguice e paciência. Nunca nos bateu. E nós até éramos para aí mais de trinta e difíceis de aturar. Se eu hoje sou alguma coisa devo-o a ele. Ainda hoje me lembro dele, quando tenho de decidir da minha vida.”

“O que foi feito desse professor?”

“A meio da primeira classe, ele chamou-nos, um a um, ainda me estou a lembrar quando chegou a minha vez. Abaixou-se, pôs-se da minha altura e disse-me: Paulinho, eu vou ter de ir embora, não quero, mas tenho de ir para a guerra.

Até me deu vontade de chorar, mas disse que sim co’a cabeça, que eu até sabia que o Eduardo, lá da minha rua, tinha morrido na guerra de Angola.”

“Em que escola andaste? Em que ano entraste na escola? – perguntei

O Paulo respondeu. E era o mesmo ano e a mesma escola onde eu tinha começado a minha carreira de professor.

Ainda arrisquei esclarecer uma última dúvida:

“E só havia uma “primeira classe” na tua escola?”

O Paulo respondeu negativamente, mas acrescentou:

“As outras três “primeiras classes” tinham professoras, só a nossa é que tinha um professor.”

“E como era esse professor?

“Era mais ou menos da sua altura. Andava sempre vestido de preto e usava sandálias. Tocava violão e ensinava-nos canções bonitas. Tinha o cabelo comprido e uns óculos à John Lennon.”

A descrição feita pelo Paulo ajustava-se, perfeitamente, à pessoa que o seu amigo professor tinha sido, trinta anos antes.

Netos queridos, o professor desta estória era eu. O Paulo da estória foi meu cunhado. Faleceu muito novo, porque a vida lhe foi madastra.

Em meados do século passado, o João Cabral falava dos que morrem sem nunca terem vivido. Pois ficai sabendo que, decorrido quase um século, ainda se morria no Brasil “de morte igual, da mesma Morte Severina: a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte”.

Releio o desabafo do João:

Escolas são usinas, que engolem gente e vomitam bagaço”.

A Escola e o planeta Terra estavam doentes. E doentes continuariam, enquanto a nossa maneira de viver fosse reproduzida nos valores que muitas escolas insistiam em transmitir. Urgia mudar. E já Confúcio dissera:

“Transportai um pedaço de terra todos os dias e fareis uma montanha.”

Há cerca de vinte anos, prudentemente, gradualmente, educadores éticos ergueram a “montanha”. Por que razão ainda havia quem dissesse não ser oportuno fazê-lo?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXXIV

Batalha, 9 de janeiro de 2044

Conta-se que um filósofo conversava com o diabo, quando passou um sábio com um saco cheio de verdades, do qual uma caiu. Alguém a apanhou e saiu correndo, gritando:

Encontrei a verdade!”

Perante esse quadro, o filósofo disse para o diabo:

Aquele homem encontrou  a verdade e, agora, todos vão saber que você é uma ilusão da mente.”

Mas o diabo respondeu:

Está enganado. Ele encontrou um pedaço da verdade. Com ela, vai fundar mais uma religião. E eu vou ficar mais forte!”

Quem sofrer de alguma forma de angústia existencial encontrará respostas em Kalil Gibran, ou em Saint Exupéry. Aqueles que estiverem em situação de dúvida religiosa poderão recorrer à Bíblia, ao Corão, ou a outro qualquer livro sagrado. Essa experiência pode constituir-se numa bela harmonia. Certamente, haverá muitas verdades para a verdade em que acreditamos.

Se eu vejo de um modo e o outro vê de outro modo, que tentemos ver os dois modos, ver juntos, como Gandhi fazia:

A minha preocupação não está em ser coerente com as minhas afirmações anteriores sobre determinado problema, mas em ser coerente com a verdade.” Não esqueçamos que foi a imposição de uma “verdade” única que levou Espinosa ao exílio e Galileu à retratação.

O José Prat ironizava:

Sempre que alguém afirma que dois e dois são quatro e um ignorante lhe responde que dois e dois são seis, surge um terceiro que, em prol da moderação e do diálogo, acaba por concluir que dois e dois são cinco.”

Apesar das distorções da informação cometidas pela mídia, a verdade continua sendo verdade. Quando a mentira, tal como a Medusa, contempla o escudo de Teseu, sossobra, porque reconhece a sua verdadeira face.

Acredito que todo o ser humano é uma dúvida, uma metamorfose ambulante. A dúvida e a humildade são companheiras diletas da verdade, uma mistura sublime. Aceitemos, serenamente, os mistérios por desvendar, sem necessidade de explicações para o inexplicável.

Venho repetindo que o princípio da veracidade deverá nortear todos os projetos educativos. Mas, na boca das crianças, a verdade chega a ser crueldade…

A tia desculpe! – disse a aluna.

Porquê, minha filha? – quis saber a professora.

É que chamei a senhora de idiota – esclareceu a criança.

Eu não escutei nada – disse a professora, sorrindo.

Foi só em pensamento… – esclareceu a criança.

Ainda que sem que disso tome consciência, a criança age filosoficamnete, buscando verdades, como que reconstitui a história da filosofia dos adultos: Thales afirmava ser a água o elemento fundamental da matéria. Anaxímenes acreditou que fosse o ar. Para Xenófanes o elemento fundamental era a terra. Heráclito afirmou que era o fogo. E chegou Empédocles, para explicar que o mundo é combinação da água, ar, terra e fogo. As crianças e os loucos falam verdades que a sua época permite vislumbrar. Talvez por isso, os loucos sejam internados em hospícios e as crianças em escolas. Permiti, pois, que vos narre mais um episódio, confirmação da infantil prática da verdade.

Uma professora tentava convencer os alunos a comprar uma  cópia da foto do grupo:

Imaginai que bonito será, quando vocês forem  grandes e todos digam «ali está a Catarina, é advogada, este é  o Miguel e, agora, é médico».

Uma vozinha, vinda do fundo da  sala, fez-se ouvir: E ali está a professora… Que já  morreu.

Num e-mail recebido de uma professora estava escrito:

Eu estava numa palestra sua e lhe fiz uma pergunta. Me apresentei como pedagoga e disse que tinha duas dúvidas. O senhor me respondeu algo assim: Como pode ser pedagoga e ter apenas duas dúvidas?”

Sim. Como poderá ter apenas duas dúvidas?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXXIII

Porto, 8 de janeiro de 2044

Nos idos de vinte, recebi um depoimento, que me ajudou a ultrapassar delicadas situações:

Pensamos em desistir varias vezes e retornar ao caminho antigo. Então, fomos criando estruturas organizacionais, que nos permitiram agir em novas formas.

Após muito trabalho e muito estudo, houve muitas conquistas. As crianças demonstravam melhores aprendizagens e víamos avanços em todas as áreas. As relações afetivas foram ampliadas e um grande sentimento de grupo cresceu entre nós.”

Nos idos de vinte, o fundamentalismo pedagógico era uma enfermidade que afetava a perenidade dos projetos. Apoiados por autores de teses sobre inovação – mera sofisticação teórica aprovada por bancas constituídas por quem nunca inovara – novas e velhas seitas pedagógicas e gurus do digital produziram caricaturas de “inovação”, e adulteraram conceitos, convertendo-os em slogans para fins mercantis.

Enquanto os ministérios se excitavam com as ilusões de finlândias e sobrais, o vosso avô temperava o extase geral com a insistência num bordão:

“Inovar é FAZER algo, não se quedar pela teorização de teorias teorizadas, nem se deixar iludir pelo agressivo marketing de abútricas empresas.

Inovar é tomar a decisão ética de mudar”.

Por essa altura, cuidei de ajudar a criar uma democrática e minimalista organização, através da qual se religaram projetos isolados. A ARCA –  Assembleia das Redes de Comunidades de Aprendizagem – começou a tomar forma nos encontros de sábado de janeiro de vinte e quatro. Não mais veríamos serem aniquiladas nobres intenções.

Em Portugal, educadores das Caldas da Rainha tomaram a iniciativa de criar a primeira das ARCAs portuguesas. Outras se seguiriam. A primeira ARCA brasileira surgiu no sul da Bahia, por iniciativa da Fernanda e do Tomás. O encontro de Caraíva decorreu entre 17 e 19 de janeiro de vinte e dois. Quase em simultâneo, outras se revelaram ao mundo, em Mogi das Cruzes, em Maricá e outros lugares onde novas construções sociais de aprendizagem e de educação surgiam.

Continuamos a ajudar quem tomava a decisão ética de mudar. Isso bastava! Nos idos de setenta e seis, um pacífico “Basta!”, também, bastou. Uma democrática e minimalista organização engendrou a primeira associação de pais pós-revolução – me juntei a quatro pais sensíveis à necessidade de mudança. E o “Fazer a Ponte” se FEZ.

A diretora não concordou. Influenciados por ela, alguns pais transferiram alunos meus para outros professores. “Superiores hierárquicos” proibiam o que chamavam de “método impróprio”. Inspetores do ministério e uma horda de burocratas ameaçavam exonerar-me. Jagunços a soldo de “alguém” destruíram a horta, que as crianças cultivavam com extremo desvelo. Derrubaram o “Hospital dos Animais”, onde as crianças tratavam bichos doentes e abandonados, e mataram os animais. Com o sangue das inocentes vítimas, escreveram na parede da escola:

“MORTE AO PROFESSOR”.

Com leis e vícios herdados de uma ditadura de quarenta e oito anos, numa localidade que não aparecia no mapa, com “chefes de família” emigrados por força da crise da indústria têxtil, num prédio em ruinas e sem banheiro, cuidando de alunos de quinze anos analfabetos, se fez uma Ponte.

Eleito diretor, entreguei à comunidade a direção do projeto. Mas, havia sempre quem questionasse:

“E se o ministério proibir?”

A comunidade respondia:

“O ministério que vá para …! Faça, professor! Faça, que nós estamos aqui, para defender os nossos filhos.”

E o vosso avô FAZIA.

E já cá faltava a pergunta da praxe:

Qual será o segredo da perenidade de um projeto?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXXII

Escola da Floresta, 7 de janeiro de 2044

Perguntais, netos queridos, por que venho terminando as últimas cartinhas com perguntas. Vos direi porquê.

Venho reproduzindo perguntas que eu fazia, vai para uns vinte, trinta, quarenta anos. Perguntas a que ninguém se dignou dar resposta, pois ninguém sabia que resposta dar. Não havia resposta, porque aquilo que acontecia nas escolas perdera sentido. O sistema de ensino era uma grande mentira construída sobre milhões de euros e de reais.

O amigo Miguel Guerra explicava essa mentira, fazendo algumas perguntas:

“Há formas de dizer a verdade que se convertem em mentiras. Por isso é importante avivar o discernimento para não se deixar enganar.

Como nos é contada a verdade através da imprensa, da escola, do poder, da publicidade, da versão oficial?

A ingenuidade revela-se o pior aliado para decifrar o sentido da realidade.
Convém, antes de mais, advertir que se podem dizer as maiores mentiras dizendo verdades incontestáveis.

Uma noite, o oficial encarregado do diário de bordo embebedou-se e, dessa vez, a descrição do dia teve que ser redigida pelo próprio capitão, que, no final, acrescentou esta nota:

“Hoje, o tenente embebedou-se”.

Nota que, naturalmente, ofendeu o oficial, tanto que no registo do dia seguinte se permitiu acrescentar, também, uma nota:

“Hoje, o capitão não se embebedou”.

Eis uma forma de alterar a verdade: explicá-la de forma que a linguagem leve a interpretá-la no sentido contrário. Não restam dúvidas de que, neste relato, a intenção do oficial não podia ser mais perversa. Dizer a verdade era taxar de bêbado alguém que, por acaso, nunca bebia.”

A verdade, a mais incontestável verdade era que, nos idos de vinte, a racionalidade que prevalecia na maioria das práticas escolares augurava tempos ainda mais sombrios. Enfeitado de projetos paliativos, ou travestido de digital, o sistema de ensinagem estava falido, desde há mais de cem anos. E, desgraçadamente, a formação de professores continuava a produzir dadores de aula.

Quando algum dador de aula confundia formação experiencial com “experiência” e me dizia ter vinte ou trinta anos de experiência de sala de aula, eu esclarecia que ele tinha apenas um ano de experiência. Em cada um dos restantes dezenove, ou vinte e nove, ele teria repetido aquilo que foi a sua experiência do primeiro ano do exercício da profissão.

Nos idos de vinte e três, Portugal tinha passado de uma euforia de “bons resultados” no PISA para a descida de “alguns lugares” nesse ranking. A fechar o ano de 2023, a comunicação social assim descrevia a situação:

“Foi publicada a edição 2023 do relatório PISA, que Identifica as tendências de evolução, analisa e compara o desempenho dos alunos dos países da OCDE participantes, em matemática, leitura e ciências, analisando também alguns fatores relacionados com o bem-estar. Esta edição revela que os alunos portugueses baixaram o seu desempenho em matemática e leitura, face a 2018. Nas ciências, a quebra foi menos acentuada.”

Os comentários de “especialistas” a este tipo de notícia eram tão ridículos, que me eximo de os citar. A “síndrome do pensamento único” traduzia-se num conjunto de afeções patológicas muito comuns nos habituais “opinion makers”. Para esses doentes existia um só modelo de escola. Entretanto, novas construções sociais de aprendizagem e de educação foram surgindo em Portugal e no Brasil, frutos da ousadia de pais e professores éticos.

Queridos netos, presumo que tenhais ouvido falar das ARCAs. Então, cá vai mais uma pergunta:

O que aconteceu de relevante no 2024 da Educação?

 

 

 

 

 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXXI

Vila das Aves, 6 de janeiro de 2044

Nise da Silveira terá sido um dos símbolos maiores de uma lealdade entendida como fidelidade a princípios. Nela reconheço o seu exemplo e inspiração. A sua figura emerge de um tempo conturbado e no contexto de uma sociedade alienada e alienante, uma civilização desviada para um abismo de si mesma.

Nise sofreu a repressão, a discriminação, mas manteve-se leal a si mesma e àqueles que, nos asilos de então, recebiam o seu eletrochoque diário – quando o médico-chefe lhe ordenou que executasse a eletroconvulsoterapia, Nise recusou apertar o botão do eletrochoque.

Com esse ousado gesto, mudou de forma definitiva o tratamento psiquiátrico que se fazia no Brasil. E precipitou a sua prisão (ainda que, como bem disse Clarice, prisão seria seguir um destino que não fosse o próprio). Assim foi que outro escritor, Graciliano Ramos, companheiro de cárcere de Nise, a ela se referiu:

“A sua presença benfazeja afugentava lembranças ruins, “a pobre moça esquecia os próprios males e ocupava-se dos meus”.

Lealdade a princípios! Lealdade aos seus “loucos”, enfrentando a loucura que havia fora de asilo. O seu exemplo permaneceu vivo ^na vida e na obra de educadores leais a princípios, no Advento de uma nova Educação.

Nos idos de vinte, festejava-se o nascimento de um Menino-Deus, que ninguém sabia quando nascera. A festividade fora oficializada como Natale Domini, cristianizando festas pagãs do solstício de inverno romano. Era invocada a peregrinação do Rei Gaspar, em demanda do Rei dos Reis. No conto “Os três Reis do Oriente”, a Sophia escrevera:

“Uma delegação de homens importantes veio ao palácio de Gaspar. E disseram:

Por que não te apresentas no templo do Bezerro? Por acaso te falta oiro para a oferta? Que tens tu de comum com a ralé das docas? Não estás por acaso vestido de púrpura e de linho como um rei? Porque desafias o poder de Zukarta? Serás um traidor? No culto do Bezerro está a prosperidade e a grandeza da Kalash. Estarás vendido aos nossos inimigos?

Gaspar respondeu:

Não posso adorar o poder dos ídolos. O meu deus é outro e creio no seu advento, que a Terra e o Céu me anunciam.”

Gaspar se sabia acompanhado do seu deus, como sabiam estarem acompanhados aqueles que, nos idos de vinte, abandonaram a solidão da sala de aula e ousaram conceber novos modos de aprender. Aproximava-se um tempo de mudança profetizada por Friedberg:

“Jjá não há lugar para uma noção como «a resistência à mudança», ou, pelo menos, dever-se-ia utilizá-la com muito mais circunspecção do que habitualmente fazemos.”

Num tempo em que a burocracia reinante protegia uma mediocridade impune, em boa hora, se organizou um debate em torno da necessidade de mudança. Pela terceira vez, um jovem velho com pretensões de vedeta pegou no micro, para contestar as palavras do sábio João. Pela terceira vez, ele repetiu a frase:

“Nós temos direito à resistência à mudança. Os professores que não quiserem mudar estão no seu direito. O senhor já ouviu falar do conceito “resistência à mudança”?

O João fizera doutoramento em torno desse conceito e o da “autonomia relativa”. Era um profundo conhecedor dessa matéria e já perdera a paciência:

“Olhe, meu amigo! Eu sei muito bem o que é a “resistência à mudança”. Mas, no seu caso, não se trata de “resistência à mudança”, mas de preguiça mental. Porque você nem fala, nem sai do micro…”

Uma gargalhada geral emudeceu o candidato a protagonista do evento.

Netos queridos, eu não consguia entender que, tendo a Ponte mostrado a possibilidade de mudança, ainda houvesse quem a recusasse.

Por que seria? Sabereis dizer-me?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXX

Tavira, 4 de janeiro de 2044

A velha história é contada assim:

“Aquele barco a remos fazia a travessia de um rio. Num dos remos, tinha escrita a palavra acreditar; no outro, a palavra agir.

O barqueiro explicou porquê. Usou o remo, no qual estava escrito acreditar, e o barco começou a dar voltas, sem sair do mesmo lugar. Depois, usou o remo em que estava escrito agir e o barco girou em sentido oposto, sem ir adiante. Quando usou os dois remos, num mesmo movimento, o barco navegou até à outra margem. Não “remou contra a maré” ou ao “sabor da corrente”. Uniu duas margens pelo impulso da escolha que lhe imprimiu um rumo coerente.”

No Brasil do início de século, reaprendi a acreditar e a agir. Com novos companheiros de projeto, reaprendi a lealdade a valores e a princípios. Por mais de cinquenta anos, educadoras e os educadores haviam despendido muitas horas em constantes brigas burocráticas, desgastado a paciência em frequentes choques com o preconceitos e fundamentalismos, nunca beneficiando de elogio ou de financiamento, porque empresas abútricas e fundações só patrocinavam pseudo-inovações.

Como já vos disse – mas valerá a pena relembrar, porque a memória dos fatos foi, por vezes, deturpada – os Românticos Conspiradores estiveram na origem da CONANE, do Terceiro Manifesto, do Projeto Âncora, do movimento Educação Humanizada e de muitas outras iniciativas a que se poderia chamar “inovadoras”. O ano de 2024 faria de muitos excelentes professores “agentes de transformação”. Juntar-se-iam ao que restava dos RC. Porém, dessa vez, organizados.

Assim como havia dito ao amigo Rubem que não bastava ser romântico, que seria preciso ser conspirador, em 2024, chamava a atenção para a necessidade de organização. Para atingirmos o objetivo de a todos garantir o direito à Educação, seria necessário ir além do espontaneísmo de iniciativas nobres, mas pontuais, de projetos isolados e facilmente destruídos pela ignorância e maldade humanas.

Com os Mapuche chilenos, e nos quilombos e comunidades indígenas do Brasil, o vosso avô havia questionado o seu etnocentrismo europeu. Em vinte anos, tinha-se transformado numa espécie de “anti cabralista” educacional. E partilhava as ideias do amigo Walter Steurer:

“Nossos índios detêm a sabedoria capaz de nos salvar com o planeta, são capazes de viver em liberdade, tirando da Terra somente o necessário, com uma organização social que não conhece a corrupção, onde o enriquecimento não faz parte das aspirações pessoais, onde o bem-estar coletivo está acima de tudo.”

Diz-nos o dicionário que lealdade é qualidade de quem é honesto, fiel a compromissos. Mas, nos idos de vinte, ainda havia formadores que escreviam uma coisa e diziam outra. Ou que diziam ser o aluno o centro, enquanto davam aula centrada no professor. Como sempre acontece nas relações humanas, os jovens estavam atentos ao exemplo de vida dados pelos adultos. Se, na prática, não fossemos leais a valores e a princípios, daríamos aos jovens um péssimo exemplo, abrindo espaço para desenvolvimento de contravalores.

Nunca tentei convencer quem quer que fosse, quem pensasse ou agisse de um modo que eu considerava antiético. Mas, não poderia continuar a calar uma velha pergunta dirigida aos dadores de aula:

Se, do modo como vós “dais aula”, excluís muitos alunos, privando-os do direito à educação, por que continuais trabalhando desse modo? Por que condenais à ignorância tantos seres humanos?

Netos queridos, sabereis dizer-me por que razão ainda havia, nos idos de vinte, gente que não assumia um compromisso ético com a Educação?

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