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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXXXIV)

Santo Aleixo da Restauração, 18 de maio de 2041

Guardo gratas recordações da margem esquerda do rio Guadiana. Sobretudo, da aldeia de Santo Aleixo. No século X, o geógrafo Ar-Razi a ela se referiu. Mas, a Totalica já existia como povoado da ocupação romana, no século II a.C.

Santo Aleixo foi palco de múltiplos conflitos bélicos ao longo da sua história. Quase despovoada por razias, na Crise de 1383–1385, foi agraciada com a denominação “da Restauração”. Talvez a isso se deva o saudável bairrismo das suas gentes, traduzida na calorosa canção com que fui acolhido e que evocava a Festa da Tomina.

No maio de 2021, o João e a Anabela me levaram a visitar a escola de Santo Aleixo, um dos mais belos e singelos projetos, que encontrei em décadas de deambulação por escolas.

Dada a reduzida taxa de natalidade e o exponencial envelhecimento da população, os jovens  eram deslocados para a Amareleja e para Moura, quando completavam o primeiro ciclo do Ensino Fundamental. A dedicação da Ana, da Romana e de outras extraordinárias mestras inverteu a situação. E regressei, no ano seguinte, para as ajudar a “restaurar” a escola e a construir uma comunidade de aprendizagem.

Aquela boa gente encarnava o que de mais nobre tinha a profissão de professor. Fiquei eternamente grato à minha amiga Anabela por me ter levado a essa aldeia raiana. Em 2021, eu atingira a saturação de escutar a expressão “educação do futuro”. Lá, me apercebi de que aquelas professoras, sem que o soubessem, praticavam um futuro possível, no presente.

Foi forte a impressão, mesmo no escasso tempo de uma visita. No chão da escola, sempre que eu perguntava a uma criança o que ela queria ser, a resposta era sempre esta:

“Eu posso dizer o que eu quero ser?”

Quando formulei essa pergunta em Santo Aleixo, as crianças diziam o que queriam ser. Talvez porque as suas professoras fizessem a si mesmas algumas perguntas primordiais:

O que preciso saber? O que deverei fazer? Que professora quero ser?

O que é educar? O que é aprender?

No dia seguinte ao da visita, a Professora Ana enviou-me um e-mail:

“A minha maior preocupação prende-se com o facto de ter dificuldades em ensinar os meus alunos na aprendizagem da escrita e da leitura, pelo que pedia ajuda neste sentido”.

As professoras de Santo Aleixo ainda “davam aula”, mas não desistiam de perguntar e de pedir ajuda. E, porque, nesse tempo, ainda se mantinha a separação entre educação familiar, educação social e educação escolar, questionavam:

Por que não se prestava maior atenção à intervenção no pré-natal e nos cuidados até aos quatro anos de idade? Por que não se partilhava a responsabilidade de educar, no convívio das crianças dos jardins de infância com os seus avós?

Por que razão se segmentava a educação escolar em jardim de infância, primeiro ciclo, segundo ciclo, terceiro ciclo, ensino secundário, ensino superior (e ensino inferior)? Por que razão se repartia a educação em formal, informal, de adultos, do campo, especial, ambiental, para a saúde, para a sexualidade, para a paz…?

No início do século XX, Almada Negreiros nos dizia que, no tempo em que nascera, todos os tratados que deveriam fazer mudar o mundo já tinham sido escritos. Só faltava uma coisa: mudar o mundo. Quando arriscariam os professores um “golpe de asa”, um ato de coragem, na concretização do amor que sentiam pelos seus alunos?

Em 2021, qual seria a “escola do futuro”? A resposta chegaria ainda nessa década, na escola de Santo Aleixo e em outras escolas. Em comunidades onde os professores transformaram um mítico futuro, sempre adiado, numa educação que o seu presente merecia.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXXXIII)

Algures, no Alentejo, no dia 17 de maio de 2041

Numa breve passagem por Odemira, a Filipa e a Cláudia levaram-me até um edifício a que chamavam “escola”. Ao entrar, senti-me regressar meio século atrás, quando ainda dava aula, numa turma masculina, num edifício de duas salas separadas por uma parede atravessada pelo som das palmatoadas e o choro de crianças castigadas.

Para não escutar os gritos da professora da turma feminina, eu ensaiava com os meus alunos umas cançõezinhas, ou a minha escola saía do prédio e ia passear pela aldeia.

O que é uma “escola”? Em 1872, Eça de Queirós, assim a descrevia:

“Uma grilheta escura e suja: as crianças, enfastiadas, repetem a lição, sem vontade, sem inteligência, sem estímulo: o professor domina pela palmatória e põe o tédio da sua vida na rotina do seu ensino”.

Se substituirmos a “palmatória” por “violência simbólica”, as escolas dos idos de vinte pouco diferiam das suas congêneres do século XIX.  Numa prosa que se mantinha atual, à distância de século e meio, Eça informava-nos das vivências escolares em edifícios de que restavam vestígios arquitectónicos, por exemplo, no tipo de construção “Conde de Ferreira “.

Eram escolas com um pé direito altíssimo, com uma inclinação de pedra junto às janelas, também altas, muito mais altas do que a altura dos alunos. Era impossível uma criança observar, dentro destas salas, o que se passava em torno do edifício. Se nos colocássemos ao nível do olhar dos infantes, apenas nos seria possível ver alguns ramos de árvore e uma ou outra nuvem. A par com as práticas descritas pelo Eça, mas com as devidas distâncias, poderíamos estabelecer alguns paralelos com as descrições dos estudos de Foucault.

A escola era um edifício? Na explicação do projeto do “Plano dos Centenários” era elucidativa a racionalidade que lhe presidiu. Esse projeto, que celebrava os oitocentos anos de nacionalidade e os trezentos da Restauração da Independência, surgia na sequência de um ciclone ocorrido em 1941. Estávamos na presença de uma razão de elevado coturno pedagógico…

Milhares de árvores foram arrancadas pelo vento. No acatar da sentença de Comenius, as escolas e as árvores convergiram num projeto de raiz. Para não desperdiçar madeira de tão boa qualidade, o ministério decidiu aproveitar a madeira das matas para atender a “uma necessidade gritante a nível nacional”.

O chamado “Plano dos Centenários” nasceu fruto do acaso e da necessidade. E o testamento de Joaquim Ferreira dos Santos, 1º barão, 1º visconde e 1º conde de Ferreira, assim rezava:

“Quero que os meus testamenteiros mandem construir e mobilar cento e vinte cinco casas para escolas primárias de ambos os sexos, nas terras que forem cabeças de concelho, tendo todas por uma mesma planta e com acomodação para vivenda do professor, não exercendo o custo de cada casa e mobília a quantia de 1 200$00 réis. E, pronta que esteja cada casa, será a mesma entregue à junta da paróquia”. 

O prédio a que a Filipa e a Cláudia chamavam “escola” era um exemplar do Plano dos Centenários, era uma “escola desativada”. O ministério mandara fechar escolas com menos de dez alunos. As crianças eram transportadas para grandes “armazéns de docentes e discentes”, à medida que o efeito colateral da desertificação de comunidades isoladas era consumado.

“Escolas desativadas” se foram transformando em asilos de idosos, sedes de associações e até em casas de habitação. A Filipa e a Cláudia transformaram uma “escola desativada” numa ágora de uma comunidade de aprendizagem. Finalmente, esse prédio de uma “escola desativada” virava espaço útil.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXXXII)

Amareleja, 16 de maio de 2041

Num hiato de dez anos, Reggio Emília e a Escola da Ponte concretizaram a proposta da Escola Nova e anunciaram a génese de novas construções sociais de aprendizagem. Muitos foram os educadores que visitaram essas escolas. Os seus projetos ganharam relevo, por terem sido experiências que operaram uma profunda ruptura com o paradigma que suportava um velho modelo de escola, numa espécie de “peregrinação pedagógica”, nas palavras do sociólogo Mariano Enguita.

Os projetos de Reggio Emilia e da Escola da Ponte tiveram início, respectivamente, nas décadas de sessenta e de setenta do século passado. Os idealizadores dos projetos – Malaguzzi e, sem falsa modéstia, este vosso avô – tinham em comum um audacioso objetivo: o de que a escola fosse um lugar em que as comunidades pudessem decidir dos seus destinos, aprendendo no seu tempo e a seu modo.

Num vídeo de meados dos anos noventa, o amigo Armindo e outros pais da equipe inicial davam testemunho do essencial: que a Ponte havia nascido pela vontade de uma comunidade e pela da iniciativa de um professor. Duas professoras e, mais tarde, toda a escola se lhes juntaram.

Em 1976, já sabíamos que escolas não eram prédios, que eram pessoas. E que o projeto era um ato coletivo, assente em princípios.

Há vinte anos, tive necessidade de recordar aos professores da Ponte os princípios fundadores do projeto. Parecia terem sido esquecidos. Espero que a sua leitura não seja maçadora. Ei-los:

1- Uma equipa coesa e solidária e uma intencionalidade educativa claramente reconhecida e assumida por todos (alunos, pais, profissionais de educação e demais agentes educativos) são os principais ingredientes de um projeto capaz de sustentar uma ação educativa coerente e eficaz.

2- A intencionalidade educativa que serve de referencial ao projeto Fazer a Ponte orienta-se no sentido da formação de pessoas e cidadãos cada vez mais cultos, autónomos, responsáveis e solidários e democraticamente comprometidos na construção de um destino coletivo e de um projeto de sociedade que potenciem a afirmação das mais nobres e elevadas qualidades de cada ser humano.

3- A Escola não é uma mera soma de parceiros hieraticamente justapostos, recursos quase sempre precários e atividades ritualizadas – é uma formação social em interação com o meio envolvente e outras formações sociais, em que permanentemente convergem processos de mudança desejada e refletida.

4- A intencionalidade educativa do Projeto impregna coerentemente as práticas organizacionais e relacionais da Escola, que refletirão também os valores matriciais que inspiram e orientam o Projeto, a saber, os valores da autonomia, solidariedade, responsabilidade e democraticidade.

5- A Escola reconhece aos pais o direito indeclinável de escolha do projeto educativo que considerem mais apropriado à formação dos seus filhos e, simultaneamente, arroga-se o direito de propor à sociedade e aos pais interessados o projeto educativo que julgue mais adequado à formação integral dos seus alunos.

6- O Projeto Educativo, enquanto referencial de pensamento e ação de uma comunidade, que se revê em determinados princípios e objetivos educacionais, baliza, e orienta a intervenção de todos os agentes e parceiros na vida da Escola, e ilumina o posicionamento desta face à administração educativa.

Em 2021, fui a Portugal, para ajudar a criar protótipos de comunidade de aprendizagem. Dado o seu exemplo de pioneirismo e face a este enunciado de princípios, seria de esperar que Ponte fosse a primeira escola a participar nesse projeto.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXXXI)

Odemira, 15 de maio de 2041

No intervalo de um congresso, a organização pediu-me ajuda:

“Professor Pacheco, o seu amigo António Nóvoa vai fazer a palestra seguinte e disse que precisava de um rato. Para que é que ele precisa de um rato? Já só faltam dez minutos para começar a palestra. Pode ajudar-nos?”

Eu ajudei. Expliquei que o “rato” português, que o António pedira, era o “mousse” brasileiro.

Ao longo do tempo, me apercebi de que muitas palavras faladas em Portugal tinham significado diferente no Brasil. Nos meus primeiros tempos brasileiros, sem o saber, disse muitas besteiras. Respondi nestes termos a uma pergunta sobre os alunos da Ponte:

“Os nossos alunos são putos responsáveis, solidários”.

Não entendi a agitação com que o público reagiu à minha resposta. Em Portugal, a palavra “puto” designa o “guri”, é uma palavra de forte cunho poético. “São como bandos de pardais à solta os putos” – cantava o Ary poeta.

Em outro evento, eu disse que “pagava propina” e que as professoras da Ponte eram “raparigas” muito dedicadas ao projeto. Em Portugal, “propina” é o que se paga para frequentar um curso universitário. “Rapariga” é o equivalente de moça, no Brasil.

Involuntariamente, muitos equívocos provoquei. Antes de elaborar uma lista de palavras proibidas, armei confusão em Araraquara. Parti de Portugal num mês de julho particularmente quente. Viajei para o Brasil vestido com roupa leve. No final daquela tarde, um friozinho me fez procurar uma loja e pedir… “uma camisola”.

“Para quem é a camisola?”

“É para mim” – respondi. Imaginai a reação dos interlocutores.

Resta acrescentar que, em Portugal, camisola é um agasalho de Inverno.

No dia seguinte a uma conferência realizada perto da escola em que o vosso pai trabalhava, um professor encontrou-o e lhe disse que ouvira um professor falar de um projeto, mas que o que ele dissera “era tudo teoria”.

“Ele era Pacheco, como tu. Falou de uma tal Escola da Ponte, em que não havia aula. Pode lá ser! Essa escola não existe!”

“Existe” – respondeu o André – “E eu estudei lá. Esse professor é meu pai.”

Imagino que este episódio se possa ter repetido em muitos outros lugares, onde não havia quem testemunhasse a existência da Ponte. Por outro lado, acredito que eu possa não ter sido eficiente na comunicação. Por vezes, a linguagem é fonte de mal-entendidos.

O ano letivo começaria na semana seguinte. Uma reorganização curricular fora aprovada fora de tempo, era intensa a azáfama de editores e livreiros, mas os novos manuais ainda não tinham chegado às escolas. Duas semanas decorridas sobre o início do ano letivo, escutei o seguinte diálogo, na sala dos professores:

“Ó colega, não se enganou a escrever o sumário da aula?”

“Claro que não!”

“Mas, essa matéria já não consta do novo currículo”.

“Não importa. Enquanto não me derem o novo manual, eu dou aula por este.”

Netos queridos, juro que foi isto o que eu escutei. Muitos professores mantinham-se acomodados, apáticos, cativos de vícios instrucionistas. Revelava-se difícil dialogar, fundamentando o diálogo em teoria praticada. Nem adiantava que eu dissesse que aquilo que eu referia era descrição de uma prática.

“Isso é tudo teoria, caro colega!” – era o comentário habitual.

Cheguei a essa escola bem no final de uma reunião de pais e professores.

“Então, foi boa a reunião?” – perguntei a quem saía.

“Foi boa, sim. Os professores falaram muito bem.”

“Sobre o que falaram?”

“Isso eu não sei. Não entendi nada do que elas disseram”.

As professoras tinham falado de “diferenças entre paradigmas”. E explicado aos pais o que era uma “reorganização curricular”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXXX)

Colos, 14 de maio de 2041

“Quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, qual será a causa desta corrupção? Ou é porque os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber”. No século XVII, Vieira desistira de convencer os homens. Dirigiu os seus sermões para seres mais sensíveis: os peixes, seres alheios às renúncias dos homens. Aos peixes, discretas testemunhas da corrupção de costumes praticada por aqueles que pela terra iam cumprindo os seus dias. E que das injustiças não traduziam consciência. Escutemos Vieira, como se estivéssemos em 2021:

Ou é porque os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem”.

Poderia acrescentar que talvez fosse porque andavam tão distraídos na lida de ganhar a vida, que a perdiam. Ou por pressentirem que, da corajosa denúncia da corrupção, poderia advir nefasta consequência para si e para os seus.

Assistíamos ao uso e ao abuso do poder. O património comum era usado em favor de uns poucos, em atos que quedavam impunes, não sendo raro que os seus suspeitos autores fossem considerados pessoas de bem, a quem eram atribuídas honrarias. Convivíamos com um descarado tráfico de influências, víamos o erário púbico ser defenestrado, efetuadas transações de bens à margem dos procedimentos legais. Os conceitos de respeito pela pessoa humana e de justiça foram banalizados.

Bento XVI dizia que os cristãos não deveriam respeitar leis injustas. Urgia que se agisse, se assumisse resiliência. Numa época de injustiças, como aquela que se vivia nos idos de vinte, urgia que fizéssemos a nossa parte, que se fizesse luz sobre os males de que o mundo padecia, para que fossem abertos rasgões de luz na cortina de escuridão que sobre ele caíra e sob a qual prosperavam os tiranos. Urgia debelar o medo, esse disfarce usado quando se faz o que sempre se fez, como se nada de indigno tivesse acontecido.

Diz-nos o dicionário que valor (do latim valôre) é qualidade de quem pratica atos extraordinários e, eticamente, um princípio passível de orientar a ação humana. Se assim era, conviria seguir o preceito do Dalai Lama:“Precisamos ensinar, do jardim de infância até a faculdade, que a moralidade é o caminho da felicidade. O sistema educacional moderno presta somente atenção no desenvolvimento do cérebro e não o desenvolvimento moral”.

Se a escola não era o primeiro lugar para se educar o indivíduo, também não deveria ser o primeiro lugar de o deseducar. Quando, no quadro de uma reorganização curricular, se instituiu “uma hora semanal de educação para a cidadania”, eu questionei os autores da proposta:

“Por que não deveriam ser as restantes horas de “educação na cidadania”? 

Quem nunca vira uma criança furar fila? Quem nunca vira a família dessa criança a jogar lixo na rua? Até que ponto a escola poderia apenas promover uma inútil acumulação cognitiva, demitindo-se da função de educar?

Por essa altura, Leonardo Boff escreveu que a “crise” não era cíclica. E que uma nova ordem mundial seria necessária, um novo modo de habitar a Terra.

Colos é uma freguesia  do município de Odemira, a primeira povoação portuguesa a que se atribuiu o local de nascimento do navegador Cristóvão Colombo. A convite do amigo Pedro, a visitei, no mês de maio de há vinte anos. O Pedro foi um dos raros diretores de agrupamento de escolas que ousou enfrentar a “crise” e cocriar uma nova construção social de aprendizagem, onde se aprendeu “um novo modo de habitar a Terra”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXXIX)

Aljezur, 13 de maio de 2041

No Brasil, 13 de maio é comemoração da publicação da Lei Áurea, aquela que “libertou” os escravos. Em Portugal, nesse dia, são evocados os milagres testemunhados por três pastorzinhos, na Cova da Iria.

A escravidão no Brasil foi uma instituição violenta, desumana, que durou mais de trezentos anos. No mês de maio de 2021, sinais de escravagismo ainda persistiam no tecido social. E se faziam sentir no contexto de uma educação, que contribuía para os reproduzir.

Já tínhamos tentado tudo o que era possível e até o impossível, para libertar os professores de um sistema educacional abominável. Restava-nos ir além da Lei Áurea, ou rezar, apelar a que a Senhora de Fátima se dignasse fazer um milagre.

No mês de maio de há vinte anos, percorri os lugares onde hoje me encontro. Professores, autarcas, famílias, comunidades despertavam de um “longo sono”, melhor dizendo, de um “pesadelo”. Quando já me preparava para descansar, essa boa gente me levou a Portugal e me fez acreditar que a “educação do futuro” se faria presente.

No Alentejo, visitei escolas, convivi – presencialmente, máscara no rosto, mãos desinfetadas – com alunos, com professores, com comunidades. Participei de encontros virtuais, de que resultaram reconfortantes mensagens:

“Boa noite, Professor José! Estive a assistir à sua exposição no webinar, e agradeço a sua partilha. Não sou professora, sou mãe de uma criança que frequenta o 4º ano.

Desde que o meu filho ingressou na escola, e uma vez que eu não tinha conhecimento sobre o processo de ensino, senti uma grande tristeza e desilusão pelos moldes do nosso ensino. As crianças não podem ser felizes neste sistema, é-lhes castrada a autonomia e a curiosidade natural. São bombardeados diariamente com programas extensos a que chamam de aprendizagens, mas que de aprendizagens não têm nada. Costumo dizer que não é a escola que se vai adaptar ao meu filho, mas sim o meu pequeno ser é que tem de se adaptar à escola. 

Gostava de fazer parte da mudança, por um mundo melhor, pelas nossas crianças. Muito obrigada. Vanessa”.

“Boa noite, Professor Pacheco! Fiquei de coração cheio com a sua partilha, que me fez recordar a minha formação inicial no Magistério Primário de Beja. E fiquei triste com tudo aquilo que fui perdendo ao longo dos meus 36 anos como professor. Gostava de ter a oportunidade de o voltar a escutar numa das suas quartas-feiras. Os melhores cumprimentos. Jorge”.

“Professor, começo por agradecer as palavras inspiradoras desta tarde e o convite para fazer parte do projeto que persiste em semear em terras lusas e por esse mundo fora. Conto reunir alguns professores que gostam de trabalhar comigo em projetos disruptivos. 

As escolas precisam enfrentar a mudança e sobretudo os alunos merecem encontrar, no espaço em que mais tempo passam, projetos significativos para a vida de cada um, e professores motivados, que não se esgotem em tarefas e avaliações que servem o sistema. 

Conto desde já com toda a burocracia do sistema que tão bem conhece. Contudo, espero que as raízes possam brotar em solo tão formatado, para fazer como viram fazer. 

Como sou professora de Tecnologias de Informação e Comunicação, estou habituada a formatar e instalar novo software sempre que necessário e sobretudo sempre que ele serve para facilitar o aprender a ser de cada um. Sinta-se, pois, à vontade para partilhar um pouco das suas palavras no formato e língua que entender. E o dr. google ajuda, se necessário.

Votos de uma excelente estadia e muita energia para continuar a ser um jardineiro de excelência. Abraço fraterno! Paula”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXXVIII)

São Teotónio, 12 de maio de 2041

No decurso de mais de meio século de projetos, identifiquei sete obstáculos à mudança. Hoje, vos falarei de dois.

Quando me perguntavam qual era o maior obstáculo à mudança, eu respondia:

“O maior obstáculo sou eu.”

Perante a surpresa dos meus interlocutores, eu explicitava a resposta. O maior obstáculo era a cultura profissional herdada de muitos anos de sala de aula. O maior obstáculo era eu e professores, que tinham “morrido” profissionalmente. Tinham sido formatados, industriados para manter o modelo de ensinagem.

A reelaboração cultural por que passei foi custosa e com momentos de constrangimento. Nunca se completou, porque muitos outros obstáculos surgiram após o processo de “conversão”. Sentia que tinha muitos amigos, mas que haviam falecido: Freinet, Montessori, Anísio…

Pais e mães “vivos” me ajudaram a não “morrer”. Pedi-lhes que procurassem professores que ainda não tivessem “morrido”.

Em 2010, professores que eu considerava “vivos” cederam perante a prepotência do poder público. Um “ainda vivo”, comentou:

“Eles obedecem, porque não querem perder o emprego”. 

O Alexandre o dissera nos seus versos:

“Perfilados de medo, agradecemos o medo que nos salva da loucura / decisão e coragem valem menos e a vida sem viver é mais segura”.

Sendo o ato educar feito de amor, cada vez mais, amava aquilo que fazia. Sendo ato de coragem, renovava a coragem no dia a dia. Mas, senti medo, quando me omiti, quando não denunciei a “morte”. Quando critiquei, aliados se transformaram em obstáculos. Alguns viraram inimigos.

Quando professor num curso de pedagogia, deparei com novo obstáculo. Futuros professores, já “moribundos” reagiram às minhas perguntas. 

“O que quereis saber?”

“Nunca ninguém nos perguntou isso” – disseram – “Aqui, o professor entra na sala e dá aula, passa um power point e lê. Lê o que Piaget disse, por exemplo”.

“Vós sois analfabetos? Não sabeis ler?” – retorqui – “Não sabeis pesquisar? Por que ouvir papaguear citações, se podeis ler livros inteiros? E, se os podeis ler numa biblioteca, na Internet, na vossa casa, por que vindes à faculdade? 

Aqueles futuros professores “mortos” estavam viciados em aula, queriam que eu “desse aula”. Não dei. Ajudei-os a reaprender a ser professor.

Outro obstáculo quase me custou a vida. Com desgosto, entendi que, se o maior aliado de um professor era outro professor, o maior inimigo de um professor era outro professor.

Sendo querido pelas famílias dos meus alunos e com fama de bom professor, sofri perseguição, fui vítima de um boato lançado por uma professora da minha escola. Ela fez constar que eu havia posto duas crianças nuas, simulando o ato sexual, para explicar como nasciam os bebês. Tal e qual!

Alguns pais acreditaram e tentaram matar-me. Valeu-me o testemunho de uma aluna, a Margarida. Numa reunião de esclarecimento, a criança afirmou perante todos que tudo não passara de um boato, de maldade humana. O professor nada fizera de mal. A reunião terminou com os pais pedindo desculpa. Mas, o boato poderia ter redundado em tragédia.

Decorridos muitos anos, lancei um dos meus livros em outra escola, que eu havia ajudado a transformar: a da Ponte. Perguntava o nome das pessoas, para personalizar os autógrafos. Quando uma dessas pessoas disse chamar-se Margarida, enquanto escrevia a dedicatória, comentei:

“Muitos anos atrás, tive uma aluna com esse nome. Foi ela quem me salvou a vida, numa situação delicada.”

 “Professor, olhe para mim. Não me reconhece? Sou a Margarida. Não venho só comprar o livro. Venho matricular o meu filho na sua escola”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXXVII)

Tavira, 10 de maio de 2041

Netos queridos,

Nesta data, mas há vinte anos, o vosso avô completava setenta primaveras. O corpo já se queixava de tanta canseira. O espírito, esse regredia ao tempo de criança. Isso mesmo, sentia-me criança grande, fazendo juz ao dito do amigo Rubem: “quem mata a criança que tem dentro de si não vira adulto, adultera-se”.

Voltei a Tavira, à cidade onde cumpri a quarentena de quem chegava do Brasil, em 2021. Passados os catorze dias de isolamento, na casa que foi do vosso pai, visitei Cacela Velha. Por breves instantes, contemplei um mar de memórias tão belas quanto dolorosas. Junto ao Gilão, me sentei num banco de jardim. No mesmo banco onde, cinquenta anos antes, me preparara para entrar num quartel, onde iria fazer a minha formação de atirador de infantaria.

Quase todos os professores da minha geração foram colocados na retaguarda da guerra colonial, longe de onde muitos dos meus amigos pereceram. Eu, pacifista e estrábico fui para atirador de infantaria! Pretendia a ditadura que isso fosse uma sentença de morte para quem a havia contestado ativamente. Eu poderia ter o mesmo destino do meu amigo Valdemar, se voltasse à guerra de África. A ditadura falhou a intenção. Talvez vos conte como escapei.

O Valdemar estava prestes a voltar para casa, depois de muitos confrontos travados em Moçambique. Voltava de uma “missão”. Viu uma criança em cima de uma árvore. Acenou para ela, dirigiu-lhe um sorriso afável. A criança lançou sobre ele uma granada, que e o matou. A desumanização em idade precoce produzia crianças guerrilheiras.

Em 2021, atravessei o oceano no dia em que a Revolução dos Cravos celebrava o seu quadragésimo sétimo aniversário, no mesmo dia em que, duzentos anos antes, Dom João embarcara para Portugal.

Não existia paralelismo entre as duas efemérides, talvez uma histórica oposição. Em 1974, para trás ficava uma ditadura – que este “atirador de infantaria”, com muitos outros militares, ajudou a extinguir – e tentações totalitárias. Em 1821, Dom João deixaria no Rio um rastro de burocracia, de corrupção e sementes de totalitarismo.

Em tempos de paz e abundância como aqueles que, agora, vivemos, torna-se difícil imaginar tempos de medo e autoritarismo. Se vivemos num jubiloso 2041, o devemos, em grande parte, a educadores dos idos de vinte. Possuídos pela indignação e pela coragem, idealizaram o real, realizando o ideal.

Ao longo de mais de meio século, o vosso avô gastara precioso tempo em quixotescas tentativas de mudança. Até receber premonitórias mensagens, como este lisonjeiro comentário:

“Realmente, para mim, você ‘não fez’ apenas a Ponte. Você foi a Ponte, em Vila das Aves, e, agora, prossegue em outros lugares, nesta ponte entre comunidade, professores e saberes significativos. Sua vocação é “ser ponte” e construir “pontes”.

A mãe de um aluno dava voz a outros pais, retomando demandas paradas em 2010. A degradação do “Fazer a Ponte” requeria um refazer desejado por pessoais leais ao projeto. Reuni com os órgãos de Gestão e de Direção. Busquei abertura ao novo, compreensão. Deparei com uma recusa sem fundamento. Propus o diálogo, invoquei um projeto. Devolveram-me silêncio, tal como fez a Direção da Ponte… em 1976.

Eu estava numa época da vida em que só me apetecia ir plantar árvores e olhar passarinho. Mas, afastei a tristeza, esqueci ofensas. Depois dos setenta, chegou o tempo de novos projetos e de refazer projetos adulterados – o tempo breve de formar uma equipe, que me libertaria de “fazer pontes”.

No livro de Eclesiastes, está escrito que existe um tempo para cada coisa…

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXXVI)

Castro Verde, 11 de maio de 2041

No mês de maio de 2021, o amigo Maturana partiu para um etéreo lugar, onde seres humanos imortais continuam a inspirar aqueles que na Terra continuam a obra iniciada.

Nas escolas de há vinte anos, ainda era escasso o impacto dos ensinamentos do mestre chileno. O termo “autopoiese” começou por ser um conceito da Biologia. Outras áreas dele se apropriaram – a neurobiologia, a sociologia, a filosofia, a arquitetura – e teve grande impacto na educação. O termo designa a capacidade de os seres vivos se produzirem a si próprios. Isso mesmo: o reconhecimento de que um ser vivo é um sistema autopoiético, sempre mantendo interações com o meio, que desencadeava mudanças determinadas em sua própria estrutura. “Com” de Comunicar, de Conversa.

“A conversa nos constitui humanamente” – escreveu Maturana – “No conversar construímos a nossa realidade com o outro. O conversar é um modo particular de viver juntos, em coordenação do fazer e do emocionar. Neste espaço relacional, se pode viver na exigência ou na harmonia com os outros. Ou se vive no bem-estar estético de uma convivência harmônica, ou no sofrimento de uma exigência negadora contínua”.

Nos idos de vinte, em Santa Catarina, crianças foram assassinadas dentro de um jardim infantil. Na Coreia, as autoridades educacionais estavam empenhadas na desintoxicação do consumo de internet. Em países líderes do PISA, o índice de suicídio juvenil era assustador. Restava a esperança de que um poder público autista aceitasse conversar sobre mudança, sobre inovação, sobre a humanização do ato de educar. Que fosse sensível a uma relação de “bem-estar estético, de uma convivência harmônica” e não se mantivesse “no sofrimento de uma exigência negadora contínua”.

O Guardian publicou um estudo da London School of Economics, no qual se defendia que o principal objetivo das escolas deveria ser o de ajudar a criar pessoas bondosas e felizes. E, sobretudo, que equipasse os jovens alunos com recursos de autoconstrução da personalidade. A escola e a família poderiam exercer grande influência na formação da pessoa, mas a decisão final dependeria da pessoa, era uma prática cultural voluntária.

Talvez as escolas devessem adotar um modo de funcionamento assente num relacionamento que elegesse a estética da sensibilidade, habituando o jovem a conviver com o incerto em substituição da reprodução mecânica de planejamentos alheios. Se a virtude pudesse ser ensinada, seria mais pelo acreditar no outro do que pelos livros. Seria urgente proporcionar aos jovens oportunidades de autoaprendizagem, levá-los a não se comparar com outros, a usar um poder que não servisse para mandar, mas para ajudar.

“Em alguma parte da Terra um homem esteja sempre plantando, recriando a vida, recomeçando o mundo”. Foi a Cora quem o disse. Quem ousará questionar um otimismo de poeta? Talvez o Francesco Alberoni que, no belo livro que escreveu sobre o optimismo, nos alerta:

“Muitos acreditam que, quando alguém sabe fazer algumas coisas e as repete, ano após ano, alcançará a perfeição. Esta ideia está errada. Quem não aprende, desaprende”.

Certamente, Alberoni não estaria a pensar naquilo que acontece no domínio da educação e, em particular, das escolas, lugares onde reina um otimismo negativo, a crença de que a experiência radica na mera repetição.

É conhecida a história que um velho índio contava ao seu neto. Falava de um combate entre dois lobos, que vivem dentro de todos nós. Um é mau, o outro é bom. O neto perguntou: 

“Qual o lobo que vence? 

O velho índio respondeu:

“Aquele que você alimenta”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXXV)

Tavira, 9 de maio de 2041

No início do mês de maio de há vinte anos, no meu país de adoção, a covid-19 continuava a provocar mortes evitáveis, mais de quatrocentas mil! Era um país isolado do mundo. O “regime de medo” brasileiro provocara reações de medo em outros países. Era enorme o padecimento nas filas dos aeroportos para os migrantes brasileiros e para quem era meio brasileiro, como eu. À distância de duas décadas, relativizo e dureza da memória, porque o bom povo brasileiro soube sair dessa triste situação. Longe vai esse tempo, em que o povo elegia os seus algozes!

Uma pesquisa realizada pela Escola de Saúde Pública Johns Hopkins concluiu que familiares de alunos que “voltavam às aulas” tinham  de 30% a 47% mais chance de pegar covid-19. Alheio ao estudo, os desgovernos da nação ordenavam o “regresso às aulas”.

No Brasil de novembro de 2020, os jornais noticiavam que o governo não agira para solucionar os problemas da educação durante a pandemia. Havia um “apagão” nas escolas públicas. O estudo “Cenário da Exclusão Escolar no Brasil – um alerta sobre os impactos da pandemia da Covid-19 na Educação” dava a conhecer que, com os prédios das escolas fechados, quase um milhão e meio de crianças e adolescentes de seis a dezessete anos não frequentavam escola remota ou presencial. Três milhões e setecentos mil não tiveram acesso a atividades escolares, nem conseguiram aprender em casa. Mais de cinco milhões de crianças em idade escolar viram negado o acesso à educação. A exclusão afetou mais quem já vivia em situação vulnerável: crianças e adolescentes pretos, pardos e indígenas.

Na obra “O Brasil Como Problema”, Darcy questionava: Qual é a causa real de nosso atraso e pobreza? Quem implantou esse sistema perverso e pervertido? E propunha um diagnóstico dos obstáculos cruciais, que a nação brasileira precisaria ultrapassar, para se desenvolver. Nesse livro, o maior dos obstáculos seria a nefasta ação de um certo tipo de intelectual: o áulico.

O áulico era um ajudante-de-ordens, aquele que estava contente com o mundo tal qual era. Prosperava, vivendo à sombra do poder, produzindo ideias irrelevantes, planos inconsequentes, ou contribuindo para destruir qualquer esboço de inovação educacional.

Identifiquei dois tipos de áulicos: os ingênuos e os esquizofrênicos. Os primeiros controlavam estruturas do poder público. Os outros infestavam universidades e comissões de especialistas. Enfeitavam as suas teses com palavras de belo efeito, aparentemente, defendiam a “escola pública”, mas na prática contribuíam para a manter na menoridade intelectual, moral e social.

Portugal e Brasil eram pródigos em excelentes teóricos, embora não os soubesse distinguir de falastrões e de áulicos obstáculos. Nas escolas particulares, onde educação se convertia em mercadoria, as novas tecnologias assumiam-se como diferencial de mercadoNa ânsia de deter a queda da taxa de evasão e para melhorar a captação de alunosingênuos gestores recorriam a áulicas consultorias, especializadas no uso da tecnologia para atrair pais e capt(ur)ar alunos.

Os áulicos agiam como poderoso, nefasto obstáculo à mudança. A falência do modelo instrucionista era disfarçada com “inovadores” placebos, como escrevia a minha amiga Tina num excelente artigo. Havia quem se apropriasse de conceitos como o de “educação integral”, para batizar práticas obsoletas, ainda que patrocinadas por empresas e até pelo poder público. Em contrapartida, educadores empenhados em inovadoras práticas eram persuadidos a abandoná-las, ou cediam perante ameaças.

 

Por: José Pacheco

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