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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXVIII)

Morro da Urca, 5 de dezembro de 2043

Freire dixit: “O fracasso é do sistema”. Mas, não lhe deram ouvidos.

Por volta de vinte e três, enquanto o teoricismo se presumia “superior” ao mundo dos “praticantes”, se acantonava no submundo das cátedras, ou desenvolvia “Estudos Avançados” (que, de tão avançados”, se mostravam inacessíveis, inúteis), cientistas da educação subiam ao chão da escola, para apoiar projetos de melhoria da vida de crianças e das comunidades. Entre eles, aquele que sempre se mostrou mais lúcido, próximo da realidade. Andava pelas escolas, inscrevendo num bloco de notas material com que elaborava preciosos textos. 

Se nunca fui puxa-saco de quem quer que fosse, à distância de duas décadas, confesso a minha admiração por esse e outros insignes mestres, cuja produção teórica se mostrou indispensável, quando chegou o momento de substituir um “sistema de ensino” obsoleto por uma nova construção social de aprendizagem.

No fundo do baú das velharias, recuperei um dos textos do amigo António, um discurso proferido na Assembleia da República, decorria o ano de 2006, e que, nos idos de vinte e três se mantinha atual:

“Este Debate pode ser, assim o desejo, o início de um processo de reconciliação da nossa cultura com a cultura escolar. É importante que ele se construa como um debate informado (não apenas de especialistas, mas de todas as pessoas e instituições). Um debate aberto e transparente, que não se limite a ser um recetáculo de queixas e lamentações, mas que procure dar um rumo, um sentido positivo, à nossa insatisfação. Um debate que nos coloque perante um dever de coerência, designadamente no que diz respeito a uma exigência de resultados por parte da escola. Não vale a pena uma permanente indignação, caso ela não se traduza em ação decidida e constante. 

(…) em educação é impossível colher aquilo que não se semeia. Quem está disposto a bater-se pela escola? Quem acredita na importância da cultura escolar (literária, artística, científica), de uma cultura que é feita de trabalho, de persistência, de continuidade, de justiça, de diálogo? 

(…) Não me ficaria bem, iniciar um debate apresentando soluções. Tentarei, sim, avançar questões que me parecem importantes. Organizei-as em quatro pontos – as missões, os alunos, as escolas, os professores – com os seguintes títulos:

  1. À escola o que é da escola, à sociedade o que é da sociedade. 
  2. Assegurar que todos os alunos tenham verdadeiramente sucesso. 
  3. A liberdade de organizar escolas diferentes. 
  4. Reforçar a formação dos professores e a sua profissionalidade. 

O meu primeiro ponto intitula-se “À escola o que é da escola, à sociedade o que é da sociedade”. 

Ao longo do século XX, fomos atribuindo cada vez mais missões à escola e esta deixou-se inebriar por solicitações que, aparentemente, a dignificavam na sua missão. Não tenho tempo para descrever este processo a que tenho chamado o “transbordamento” da escola. Mas deixo-vos um apontamento incompleto, escrito depois de uma leitura rápida dos últimos meses do Diário das Sessões desta Assembleia. 

Aqui se referiu o papel da Escola: – na educação ambiental e, em particular, no que diz respeito às questões do mar e da proteção das florestas; – na proteção civil e na segurança, ensinando as crianças a lidarem com o risco e com situações de emergência (…).

Efetivamente, pela primeira vez na história, enfrentávamos o risco de um colapso global. Mas como conseguiria um “sistema de ensinagem”, que presumia ser a escola um prédio isolado do seu contexto social, contribuir para encontrar soluções? Ele era parte do problema. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXVII)

São Cristóvão, 3 de dezembro de 2043

Quando olhei o anfiteatro da Conane de vinte e três, cadê os RC, que criaram a CONANE de dois mil e treze? 

No ENARC de vinte e três, das dezenas de educadores participantes no primeiro Encontro Nacional dos Românticos Conspiradores restava apenas o amigo Guga.

Passáramos mais de meio século, teorizando teorizações de teorias, sofisticando o discurso, colocando mantos diáfanos de fantasia sobre contraditórias e míseras práticas. Tínhamos sido neutralizados pelo autoritarismo de burocratas, explorados por abútricas empresas, iludidos por formadores e os palestrantes dos congressos feitos de saliva e power point.

Vimos serem destruídos centenas de projetos por via da aliança entre o voluntarismo e a ingenuidade pedagógica. Lidando com a falta de sustentabilidade financeira, ingloriamente, muitos pereceram. 

Ao mesmo tempo, provisórias “alternativas” eram, indevidamente, apontadas como “inovações”. E o teoricismo reinante legitimava o apoio “científico” a teóricos paliativos, generosamente financiados pelo Estado e por “filantrópicas” empresas.

Freire dixit: “O fracasso é do sistema”. Ou talvez não tivesse fracassado o “projeto”, que Darcy denunciou…

O fracasso não era apanágio do professor, muito menos do aluno – era o sistema que fracassava. Lentamente colapsando, com ele arrastava milhões de analfabetos e discentes bonsais, que a solidão do docente em sala de aula produzia. 

Há muito tempo, tínhamos compreendido que a o exercício da profissão de professor não era um ato solitário, que deveria ser um ato solidário. Desde o início da década de setenta, abandonáramos a solidão da sala de aula e passáramos a trabalhar em equipe. 

Já nesse tempo havia propostas teóricas nesse sentido, idênticas àquela que o amigo Nóvoa disponibilizava, nos idos de vinte:

As Equipas Educativas – Uma condição sine qua non da melhoria das aprendizagens (porque gere o currículo das aprendizagens, porque personaliza, porque eleva o potencial da inteligência coletiva…)

A ideia de equipa pedagógica, tal como é formulada por Philippe Perrenoud (em 1996), aponta justamente para a necessidade de erigir sistemas de ação coletiva no seio do professorado. 

Na perspetiva deste autor, o trabalho em equipa não deve ser visto como uma conquista individual da parte dos professores, mas como uma faceta essencial de uma nova cultura profissional, uma cultura de cooperação ou colaborativa. 

É útil mencionar a importância de uma análise coletiva das práticas pedagógicas, que pode sugerir momentos de partilha e de produção colegial da profissão. 

Num certo sentido, trata-se de inscrever a dimensão coletiva no “habitus” profissional dos professores.

Sim, mas não só. O ”habitus” organizacional, o modo como se concebe o trabalho docente, o modo como se organizam os alunos, os modos como se afetam os docentes a (grandes) grupos de alunos, o horário semanal com tempos próprios para o encontro e a produção coletiva são ingredientes fundamentais. 

Em 1996, Perrenoud “recomendava” um “sistema de ação coletiva”. uma nova cultura profissional, uma cultura de cooperação ou colaborativa. Esse teórico propunha que se fizesse aquilo que, na Ponte de vinte anos antes já se fazia.

Em 2015, em sucessivas reuniões do GT da Inovação, insisti na necessidade de assegurar aos projetos reconhecidos como inovadores pelo MEC “estabilidade do trabalho em equipe”. A regulamentação instrucionista continuou a “remanejar” os professores, provocando uma mobilidade letal para os projetos. Em 2023, poucos restavam.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXVI)

Humaitá, 2 de novembro de 2043

O prometido é devido e cá estou eu a falar-vos de tabus e interditos dos idos de vinte. Felizmente, já lá vai o tempo em que o desconhecimento de realidades de chão de escola pública dava origem a equívocos, como o de um reitor que, num jornal de grande tiragem, se queixava de dificuldades de ordem financeira.

“Não sei se, amanhã, teremos sequer dinheiro para comprar papel higiénico”.

Nesse tempo, não havia computadores, pelo que lhe enviei uma carta, de que transcrevo um excerto:

“Senhor Reitor, imagino que seja bem difícil controlar o consumo do ar condicionado. Sorte nossa, que não o temos e, por isso, não temos de gerir dinheiro que não recebemos para esse efeito. Nos dias de maior calor, levamos as crianças para debaixo das árvores, como recomendava o bispo Coménius. 

Certamente, fará imensos cálculos, terá muito trabalho na gestão da verba destinada ao funcionamento do refeitório da sua universidade. A nossa escola não tem cantina, pelo que somos uns privilegiados. Quem se encarrega de matar a fome dos nossos alunos é a Divina Providência e o queijo da Cáritas.

Soubemos, há pouco, que o Estado inaugurou uma cantina na sede do município. E que a criançada escreveu redações como esta, que aqui deixo: 

“Gostei tanto de ir hoje à escola, minha mãe! A senhora professora estava muito contente, porque inaugurou uma cantina, onde os meninos pobres podem almoçar de graça. 

As mesas muito asseadas, os pratos branquinhos, jarras floridas e tudo tão alegre! 

A sopa cheirava que era um regalo. Todos estávamos satisfeitos ao ver os pobrezinhos matar a fome”. 

O ministério talvez parta do princípio de que as nossas crianças não têm estômago. Mas, mesmo sem cantina, ajudaremos o Senhor Reitor, seremos solidários com quem as tem. 

Fique tranquilo. Não precisará de se preocupar com a compra de papel higiénico. Achamos uma solução. Habituaremos as crianças a não comer. De modo que, quando chegarem ao ensino “superior”, não precisarão de defecar”.

De então par cá, cantinas foram edificadas nas escolas do ensino “inferior” e até ar condicionado foi instalado nos caixotes de betão a que chamavam escolas. Porém, no quadro de um sistema hierárquico, outras desigualdades foram “naturalizadas” e ignoradas. Por exemplo (e porque estamos a falar de porcarias), havia hierarquia até no defecar e urinar. 

Por que razão, nas escolas, se mantinha banheiros de alunos separados de banheiros de professores – nos lares, haveria banheiro de pai separado de banheiro de filho? 

Quando visitava escolas, observava que o banheiro do aluno não tinha tampa no vaso, nem papel higiénico. O do professor já tinha tampa e papel e até espelho. O banheiro da direção tinha isso tudo e até ar-condicionado.

Encontrei a foto, que junto a esta cartinha, numa escola…bilingue. Desde a década de sessenta, encontrei idênticos e apelativos dísticos, em escolas, repartições públicas, universidades e até no ministério da educação. Na “Preparação para a Cidadania”, a escola da sala de aula nem sequer ensinava a usar uma sanita. 

Um decreto de 1984 transferiu para os municípios competências em matéria de ação social escolar, nomeadamente a gestão de refeitórios. Consequência: as raras cantinas existentes foram extintas e os seus bens, legados e doações passaram a património dos municípios. Uma gestão caduca retirava às escolas até a capacidade de gerir cantinas, mais um anátema de menoridade, que as escolas acataram “a bem da nação”

Em 2043, talvez seja difícil imaginar que tais situações pudessem ter ocorrido. Mas, outros absurdos vos contarei.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXV)

Botafogo, 1 de dezembro de 2043

Queridos netos, não sei se vos contaram a estória do “Primeiro de Dezembro de 1640”, nas aulas de História. Fora esse dia o da Restauração da Independência, um golpe de estado revolucionário chefiado por quarenta conjurados. 

Dizem os tratados que se seguiu um processo histórico de assunção de autonomia, após sessenta anos de União Ibérica. E que, após 28 anos de guerra com os castelhanos (e com franceses e holandeses, no Brasil), a independência se consolidou. 

Por que evoco a efeméride? Porque aquilo que é evidente, por vezes, mente. Nesse contexto, deveremos fala de autonomia, ou de independência?  

Não que eu fosse nacionalista, ou anti-iberista, mas porque prezava em demasia a ideia de gestão autonomia, fosse em que situação (pessoal, social, institucional) em que ela se manifestasse, talvez inspirado pela comemoração, nos idos de vinte e três, deu-me para convidar companheiros de longas jornadas para um último fôlego de mudança e inovação. Também lancei um fraterno repto a amigos amantes da teorização, para acompanhar aqueles que ainda não tivessem desistido de ousar. Isto é: agir por Amor sustentado e Coragem.

Acontece que, nessa mesma semana de dezembro, li uma mensagem do meu bom amigo Isaac, na qual manifestava legítimo regozijo pela consolidação da autonomia universitária. Efetivamente, era motivo para celebrar. Mas, por vezes, o que é evidente… mente – o Nóvoa escrevera um livro sobre isso.

Tenho muitos defeitos, mas nunca fui omisso. Mesmo correndo o risco de desagradar a um amigo, pelo qual nutria profundo respeito e admiração, ousei perguntar: 

Por que razão a autonomia é apanágio apenas da Universidade? 

Por que consentimos que os diretores de escola sejam escolhidos por políticos?

Por que ainda existe “dever de obediência hierárquica”? Quando um diretor recebe uma ordem “superior, mesmo que dela discorde, terá de a cumprir e fazer cumprir aos seus professores. Cadê a autonomia?

Por que permitimos que a autonomia seja negada ao “ensino não-superior”?

Essa eufemística expressão era usada em Portugal, nos idos de oitenta e de noventa. E no léxico do sistema hierárquico português de vinte e três, mantinham-se expressões como: “Ensino secundário e pós-secundário não-superior”. 

Frequentemente, a linguagem era fonte de mal-entendidos e não era a falar que a gente se entendia. Evidente… mente, a linguagem continuava a reproduzir uma cultura feita de hierarquia, autoritarismo, em tudo contrária a uma ideia de igualdade, equidade, democraticidade, participação, autonomia.

Muitas vezes, o que é evidente… mente. Esses termos constavam em abundância de teses e outros escritos teoricistas. Foram interpelados pelos meus amigos da Pluriprosa, uma Pluriversidade criada por educadores que, amorosamente, refletiam e agiam, corajosamente, reinventando Freire e praticando Darcy. Eram educadoras e educadores humanizadores libertos de uma cegueira de que Bauman nos falava, uma cegueira moral, uma cegueira ética, a cegueira daqueles que não veem que o que evidente… mente. 

Saramago também se referia, metaforicamente, a uma cegueira social, quando apelava ao dever moral dos que enxergam. No seu “Ensaio sobre a Cegueira”, usou a expressão “cegueira branca”, não se referindo à cegueira física, mas à cegueira moral, a uma peculiar “patologia” académica, que não permitia enxergar o gozo exclusivo de privilégios e mordomias.

Amanhã, falar-vos-ei de um quiproquó dos idos de oitenta, entre o vosso avô e um Magnífico Reitor, e do belo livro “Evidentemente”, do amigo Nóvoa. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXIV)

Tijuco Preto, 30 de novembro de 2043

E deste modo o amigo Nóvoa prosseguia aa sua conferência de 2006:

“Nos últimos vinte anos, a generalização de uma educação básica de nove anos pode ser contada como uma história de sucesso, como uma “herança” de que nos podemos orgulhar. Mas, recentemente, descobrimos a reduzida percentagem de jovens que termina o 12.º ano de escolaridade. Novos indicadores estatísticos, produzidos pela OCDE e pela União Europeia, deixam-nos inquietos e preocupados. 

Quero chamar a atenção para a profunda insatisfação que se instalou na sociedade portuguesa no que se refere aos índices de insucesso e de abandono escolar, ou à saída prematura do sistema educativo sem qualquer qualificação.

Esta insatisfação “quantitativa” desdobra-se numa outra, “qualitativa”, relacionada com os fracos resultados escolares dos alunos. Tanto os indicadores quantitativos, como os qualitativos explicavam-nos, com a força dos números, que continuávamos no mesmo lugar de sempre. 

Será que não houve melhorias? Claro que houve, mas a nossa “posição relativa” não se alterou desde o final do século XIX. Peço desculpa por falar com esta frontalidade. Talvez não seja a melhor maneira de iniciar um debate sobre o futuro da Educação. Eu sei que é duro, mas precisamos de nos olhar no “espelho do passado”, de um passado ainda tão presente.”

O amigo Nóvoa não era “duro”, nem deveria “pedir desculpa”. Alertava para o “evidente”, que, evidentemente… mente. Não foi escutado. A tendência para ocultar a delicada situação do “sistema” prevalecia sobre as vozes autorizadas como as do amigo Nóvoa. 

Dez anos decorridos, após nova conferência, o ministério anunciava “as bases para três frentes de trabalho: o projeto de autonomia e flexibilidade curricular, entretanto consubstanciado como instrumento de gestão curricular, o regime de educação inclusiva e a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania” (sic).

O “projeto de autonomia e flexibilidade curricular” saldou-se por uma ridícula “inovação”: a passagem do período escolar de trimestre para semestre. O “regime de educação inclusiva” desembocou num nado morto: o decreto 54/18. E a “Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania” manteve-se ancorada em um ou dois tempos letivos de “educação para a cidadania”, na ignorância de que não se prepara para a cidadania – aprende-se cidadania no exercício de cidadania plena e responsável, algo inviável em sala de aula. 

Na busca de um “currículo mínimo”, o ministério acabou por publicar um “perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória”, mais do mesmo, um amontoado de “transbordamento curricular”, que o amigo Nóvoa criticara. Mas, quais seriam as ditas “aprendizagens essenciais”?

Nóvoa se interrogava: na imensidão de “saberes” e conhecimentos, como saber o que é ESSENCIAL ensinar (e que fosse aprendido, acrescentaria eu…)? Como saber o que é essencial?

“Há um pensamento notável de Olivier Reboul. Ele diz que deve ser ensinado na escola tudo o que une e tudo o que liberta. O que une é aquilo que integra cada indivíduo num espaço de cultura, em determinada comunidade: a Língua, as Artes Plásticas, a Música, a História etc. Já o que liberta é o que promove a aquisição do conhecimento, o despertar do espírito científico, a capacidade de julgamento próprio. Estão nessa categoria a Matemática, as Ciências, a Filosofia etc. Com base nesse princípio, podemos selecionar o que é mais importante e o que é acessório na Educação das crianças.”

Conclusão: quem ouvia o amigo Nóvoa não o escutava, ou o ministério não tinha lido Reboul.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXIII)

Aterro do Flamengo, 29 de novembro de 2043

Felizmente, já lá vai o tempo da incoerência comentado por Niemeyer. Um tempo em que muitos amigos e muitas amigas aplicavam a freriana “receita” – usavam de amor e de coragem. Outros havia que nem por isso… E eu chegava a duvidar da amorosidade de muitos dos educadores que dela se reclamavam. Quanto à coragem, estávamos falados. Enquanto os primeiros sofriam as agruras do chão de escola e pagavam com isolamento a ousadia de cumprir Freire, freirianos não-praticantes exibiam nos palcos de congressos uma amorosidade delicodoce e sepultavam a coragem em inúteis teses, que apodreciam nos arquivos das universidades.

O meu amigo Paulo era exemplo de amorosa e corajosa desocultação da incoerência de órgãos de administração e de gestão e era, por isso, votado ao ostracismo:

“A escola na qual fui estudante, a quem dei parte dos anos mais provectos da minha vida, para quem trabalhei, de forma graciosa, durante 10 anos e para quem, também, elaborei guiões, a troco de nada, decidiu, através de quem lhe gere as redes sociais, bloquear-me. 

E bloquear-me por que razão? Porque, várias vezes, dei conta da minha não concordância, de forma ordeira e educada, sobre algumas das suas ações (ou falta delas), e porque apontei essa incongruência gritante da vaidade de tiro-no-pé que é destacar o ranking (e os prémios de mérito). Não é esse (ou nunca poderá ser) o serviço de uma escola pública. 

As memórias ninguém mas tira, e não vou passar a desgostar de um local que me moldou de uma certa forma (sem nunca me vergar). Mas não aceito, nem quero, ser um dado adquirido. E foi assim que a Escola me tratou, a partir de um determinado momento. Não esqueço que me deixaram, por duas vezes, em apresentações para as quais fui convidado, a pregar sozinho. Não quero ser essa pessoa, nem aceito refugos. Aquele velho adágio da “má Mãe, boa madrasta” assenta como uma luva. 

Não levo a mal, e palavras vão com o vento que passa, mas a mim, garanto-vos, nunca mais me vêem as costas. 

Tenho ótimas memórias e amizades que ainda duram, começadas algures dentro daqueles muros e paredes. 

Não guardo rancor. Sejam todos felizes (mesmo que num 24 de abril qualquer).”

O 24 de abril a que o meu amigo Paulo se referia era a véspera do dia da dita “Revolução dos Cravos”, em que participei ativamente. Cinquenta anos decorridos, não me arrependia de ter pegado em armas e ajudado a acabar com uma ditadura de 48 anos, que me roubou muitos amigos e deixou o país em estado deplorável. 

Lembro-me de, no mesmo dia – 25 de abril de 74 – numa reunião realizada ao cair da tarde, quando já se sentia que “ditadura nunca mais”, eu ter dito aos meus companheiros de armas que o povo não adormeceu fascista no dia anterior, nem acordou democrata nesse dia. Seria necessário investir numa Educação, que nos livrasse do regresso a tenebrosos tempos. 

O que aconteceu no campo da Educação durante aqueles cinquenta anos? O amigo Nóvoa o disse, várias vezes, nomeadamente, numa conferência realizada em 2006:

“Quando eu nasci, há 51 anos, a escolaridade obrigatória terminava na terceira classe. Em 1964, esta obrigação tinha aumentado para seis anos. Depois, um longo interregno. 

Quando o meu filho nasceu, há 21 anos, tudo continuava na mesma. Décadas de atraso (…). A Lei de Bases do Sistema Educativo, de 1986, colocou esta obrigação em nove anos. Releiam-se os debates da época. A ambição parecia excessiva para um país que sempre se contentara com uma “escola mínima”, com níveis baixíssimos de qualificação académica e profissional.”

Amanhã, completarei a citação do discurso do amigo Nóvoa. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXII)

Matinhos, 28 de novembro de 2043

Reagindo ao “puxão de orelha”, que destes ao vosso avô, e tentando redimir-me de velhos pecados, fui remexer no baú das velharias. De lá saíram registros de prodígios. O primeiro provindo de uma mensagem recebida do amigo Valdo: 

“No segundo semestre de 2014, dois avós se encontraram para falar da vida, de desafios e de vivências educacionais. Sentados no chão do Museu do Brinquedo do Instituto Libertad, passaram horas brincando, feito crianças, falando dos netos, contando histórias e tecendo utopias. 

O tempo que contava era só o tempo de brincar e de sentir as identidades, para além das idades. Após o longo tempo não controlado, decidiram que aquela alegria ali sentida, de avós e sonhadores de outros mundos educacionais, deveria ser compartilhada com mais amigos, que também se identificavam com o viver amoroso, fraternal e desafiador dos campos educacionais emancipatórios. 

Ali nascia a UniProsa: a universidade que versa a prosa. A prosa que humaniza e dá sentido ao viver, numa sociedade complexa e contraditória. Uma entidade educacional comunitária, informal, Intergeracional, Interexperiencial, Intercultural.

No dia 21 de março de 2015, acontecia o Primeiro Encontro da UniProsa. Assim rezava a ata da reunião: 

Após muitos afetuosos prolegômenos e rodadas de prosa, foi empossado o avô El Rei Thor Celsius Primeiro e único Magnífico Reitor da UniProsa. Nessa ocasião, fui designado pelo Magnífico Rei Thor, secretário de El Rei.” 

O amigo Valdo sofria e reagia perante desmandos de políticos, que cediam a imperativos de uma economia predadora: 

O que mudou em dois mil anos? Continuará assim a saga dos humanos, no embate entre humanidade e crueldade? Entre solidariedade e ambição? De minha parte, não. Eu sigo na trilha, acreditando que o único caminho para a humanidade é um caminho que contemple a todos!

Brevemente completarei 66 giros ao redor do sol. Atuo há mais de 40 deles numa Universidade Pública Brasileira. Nunca vivenciei antes na minha história, nem encontrei nos meus estudos de história, das outras épocas históricas da caminhada humana, um único e microscópico organismo vivo que tenha desafiado tão profundamente, no limite, todos os conhecimentos, ideologias e saberes acumulados pela humanidade. 

Estamos todos, com todos os recursos disponíveis mundialmente, enfrentando essa microscópica espécie viva: o coronavírus. Estaremos nós, humanos, ancorados em todos os diferentes conhecimentos e saberes acumulados até hoje, à altura desse desafio? Eu estou vivendo isso intensamente. Nós todos estamos vivendo isso. O sentido, a identidade, a responsabilidade e a solidariedade da espécie humana trarão a resposta e determinarão o nosso futuro!” 

Conheci o Valdo, quando ele tentava fazer da UFPR Litoral um instrumento de humanização. Ele sabia e sabe da importância da relação humana na educação e que o fim último da educação é o bem da humanidade. 

Como me fazia bem ir até Matinhos, para com ele conversar! Como foram gostosos e fagueiros os encontros na casa do amigo Celso! Os primeiros almoços bem regados, completados com música e amena cavaqueira reuniram meia dúzia de uniproseanos. Outros foram chegando e “a prosa humanizadora” se expandiu.

Quase uma década decorrida sobre a fundação da UniProsa, a reflexão sobre a “Educação Democrática e Humanizadora” permanecia central nas mensagens de WhatsApp. E o que tínhamos feito, que contribuísse para a prática de uma educação humanizadora? Para humanizar, necessário seria prosear. Mas, prosear seria condição suficiente?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXXI)

Tijuca, 27 de novembro de 2043

Queridos netos, achastes “exagerada”, “virulenta” a crítica lavrada na cartinha de ontem. Carinhosamente, dissestes ser o vosso avô um “velhinho insuportável”. Pois ficai sabendo que não “exagerei”, que pequei por defeito. E, hoje, apetece-me ser ainda mais insuportável. 

Há vinte ou trinta anos, havia tabus e interditos, que ninguém ousava interpelar. Quando, nos idos de oitenta, o vosso avô se lançou na escrita de uma dissertação, desocultou alguns “dogmatismos”, que sustentavam uma precária formação de professores.  

Acompanhei o percurso académico de muitos jovens candidatos a professor. Todos passaram por licenciaturas em química, filosofia, engenharia, matemática e outras disciplinas. No final dos cursos, eram exímios no domínio da “matéria a lecionar”, mas as ciências da educação eram para eles ciências ocultas. 

Em Portugal, chamavam-lhes “setores”. Na hierarquia académica, ocupavam o patamar de licenciado. Não eram doutorados, mas exigiam que os seus alunos lhes chamassem “setôr”, abreviatura de “doutor”. Eram dadores de aula. Estavam professores, não eram professores. E não sabiam que não o eram.

Quando fui trabalhar no “ensino superior”, não me afastei do “inferior”. Os meus colegas – formadores de jovens candidatos a professores – avisavam-me que eu iria ter mais trabalho do que aquele que tinha na Ponte, mais dificuldades a “dar aula”. Estavam enganados. Na universidade, nunca precisei de planejar aula (até porque já não “dava aula”, há mais de vinte anos). 

Aqueles jovens, desprovidos dos mais elementares conhecimentos de ciências de educação, ansiavam por obter um diploma. Por isso, se submetiam à imposição de horário-padrão e à clausura da sala de aula (com obrigatoriedade de assinatura em “lista de presença”). 

Os seus professores não ensinavam aquilo que diziam. Eles transmitiam aquilo que eram, veiculavam competências de que estavam investidos. Eram pedagogicamente eruditos, autores de teses escolanovistas, arautos do pedocentrismo, mas continuavam mais magistrocêntricos do que o Coménius –~ no século XVII, esse bispo já falava de pedocentrismo.

Nessa instituição de formação, escutei desabafos de “professoras primárias” forçadas a fazer um complemento de formação, para ficarem equiparadas a licenciadas:

“Olha, Zé, todos os dias, faço três horas de estrada, para vir ouvir uns doutores a falar de “paradigmas emergentes” e outras coisas que para nada nos servem.”

Escutava-as com profunda compreensão e até ternura. No final de uma carreira de trinta e mais anos de chão de escola, aquelas mulheres sabiam mais do ato de ensinar do que os formadores. Mas, eram obrigadas a colocar num teste o Thomas Khun e a “Estrutura das Revoluções Científicas”, embora isso nada acrescentasse ao seu saber-fazer.

Nos idos de setenta e de noventa, como nos anos vinte (deste século!) a formação ia de mal a pior. À míngua de uma sólida e coerente formação, muitos professores se refugiavam na segurança do que melhor dominavam. Replicavam aulas em sala de aula, permaneciam cativos de um obsoleto modelo de formação cartesiano. 

Ainda havia quem ignorasse a existência do princípio do isomorfismo, quem acreditasse que a teoria precedia a prática, quem considerasse o formando como objeto de formação, quando deveria ser tomado como sujeito em autotransformação. Nos idos de vinte, prevaleciam práticas carentes de comunicação dialógica, culturas de formação individualistas, feitas de competitividade negativa, das quais estava ausente o trabalho em equipe.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXX)

Rio do Ouro, 26 de novembro de 2043

Aquele “dejá vu” formativo de vinte e três nos mostrava que ainda não chegara um tempo propício à reflexão fecunda. 

Tal como nos idos de setenta, no tempo em que eu ainda acreditava poder aprender algo nos cursos que, então, o ministério disponibilizava.

Algo bizarro acontecia. Os formadores desciam da universidade (ou subiam?) ao submundo do ensino básico. Com o apoio de retroprojetor (não havia computadores), projetavam “acetatos” com as mesmas citações, que, na década de vinte, voltaríamos a ler no power point das palestras e formações.

Nos idos de vinte (deste século!), ainda não ficara para trás um tempo de congressos feitos de saliva e power point. Entre o uso do retroprojetor e o do computador, eu assistira a monótonas ou espetaculares palestras, nas quais os palestrantes citavam teóricos, reciclando lengalengas do discurso das ciências da educação. 

Conheci dadores de aula, que não conseguindo fazer, na prática, aquilo que a teoria recomendava, desistiram do chão de escola. Fizeram doutoramento, conseguiram emprego na universidade. Fabricaram power point feitos de citações e venderam palestras e ações de formação, nas quais ensinaram os formandos a fazer aquilo que eles próprios não tinham conseguido fazer.

Em 2023, eu escutei uma live, na qual uma doutorada em Vygotsky repetia as mesmas citações de uma palestra que eu a ouvira dar cinquenta anos antes. Com uma agravante: a doutora nunca pusera em prática o Vygotsky de que dizia ser “especialista”.

Com perplexidade, assistia a “lives” feitas de power point e saliva, nas quais pedagógicos eruditos (que ainda davam aula) dissertavam sobre “protagonismo discente” e outros assuntos idênticos aos de cinquenta anos atrás, mas com nova roupagem. 

Entre o espanto e a indignação, via-os lendo teoria requentada, como se os ouvintes fossem analfabetos e não soubessem ler frases projetadas numa tela. Com surpresa e desgosto, via-os ser aplaudidos pelos formandos e elogiados pelos seus pares. 

Escandalizado, eu assistia ao degradante espetáculo da venda de “planos de aula”. Na Internet, era frequente encontrar disparates como este anúncio:

“Você já conseguiu identificar quais habilidades precisam de um reforço neste ano letivo? 

Pensando em facilitar essa tarefa, para você que quer finalizar 2023 dando check nas habilidades que ainda precisam ser melhor exploradas com seus alunos, são mais de 4.000 Planos de Aula, do 1º ao 9º. 

Encontre o plano de aula perfeito para o tema que deseja, para transformar sua didática em sala de aula.”

“Em sala de aula”!… em pleno século XXI? 

Havia uma explicação para o que parecia paradoxal. Os formadores não sabiam, mas a formação era isomórfica: o modo como o professor aprendia era o modo como o futuro professor ensinaria. Se não, reparai…  

O engenheiro completava o seu curso e fazia estágio. O médico completava o seu curso e fazia estágio. Algo diferente acontecia com os candidatos a professor. Começavam o estágio, antes de fazer o curso de pedagogia. Ao cabo de doze anos de estágio feito em sala de aula, seguiam-se quatro anos de curso de formação inicial, em sala de aula. E novo estágio, em sala de aula. 

Quando, numa instituição de formação inicial, coordenava estágios, escutava enormidades deste jaez:

No estágio, somos obrigadas a seguir os planos à risca. A maior parte dos alunos não consegue acompanhar. Mas, se nós demorámos mais um bocado com um ou outro aluno, a professora dizia logo: “Minha senhora, já está atrasada cinco minutos. Olhe para o plano! Já deveria ir no exercício de aplicação.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXIX)

Itaipu, 25 de novembro de 2043

Nos idos de vinte e dois, recordo-me de o meu amigo (e sábio) Isaac Roitman ter lembrado aos seus conterrâneos que, no dia 21 de abril, a sua “querida UnB” completaria 60 anos de existência. Percorramos uma “linha do tempo”. No quinquagésimo ano de vida da universidade, tinham sido comemoradas “conquistas, identificando os fracassos e as omissões”. E a “Comissão UnB.Futuro” surgiu, para pensar a universidade de outro meio século. 

Na década de cinquenta, acadêmicos sentiram “necessidade de uma inflexão no ensino universitário brasileiro”. Mas, o que se pretendia fosse inovação, sofreu o desgaste registrado no livro “A Universidade Interrompida 1964-1965”

Nos idos de sessenta, no seu depoimento na Câmara dos Deputados, Agostinho da Silva defendeu um modelo da universidade, que enfrentasse os desafios dos tempos presentes (estávamos na década de sessenta) e futuros:

“A Universidade atual, que vem da Universidade medieval, é uma Universidade que se alicerça sobre a ideia de fraternidade, de esforço comum, para atingir uma verdade, que não é puramente intelectual, mas uma verdade de sentimentos, de unidade entre os homens. 

O grande drama da Universidade brasileira, hoje, é que estamos tentando implantar no Brasil estruturas que são efetivamente de outros estágios educacionais e que de maneira nenhuma podemos adaptar ao Brasil.”

Nesse corajoso discurso perante a Câmara, Agostinho da Silva denunciou a falta da liberdade e da autonomia, gerada pelo “regime de medo”, que fazia com que a Universidade não pudesse cumprir a sua missão criadora. 

Em pleno “maio de 68”, num ano em que o mundo passou por profundas transformações, Agostinho vaticinava aquilo que viríamos a vivenciar, algumas décadas depois:

“Cada vez creio mais que o Brasil é de todas as nações aquela que mostra no mundo, neste momento, mais capacidade criadora, mais capacidade humana, mais possibilidade de convivência. Mas, de nenhuma maneira nós podemos ter a esperança de ter uma Universidade nova, se não tivermos um Brasil novo”.

Volvido meio século, novo “regime de medo” se instalou. Nesse tempo de negacionismo, sinais de ressurgimento criador surgiam. 

Mas, o sonho de Anísio e Darcy, não morrera. Outros insignes mestres o retomaram: Vladimir Carvalho, Aldo Paviani, Adalgisa Rosário, Isaac Roitman e outros vultos, que tive oportunidade de conhecer. A UnB “estava viva”. Contudo, resquícios de “regimes de medo” afetavam a universidade, corroendo o sonho de Darcy, ignorando a reflexão de Agostinho:  

“A Universidade não é capaz de responder mais aos anseios da juventude, que quer encontrar um estímulo de criação, alguma coisa que a encaminhe para o mundo e não encaminhe apenas para a sua profissão”.

Nos idos de vinte, essas palavras ressoavam carregadas de triste atualidade.Na academia, a formação dos educadores permanecia ancorada em práticas instrucionistas. Pagava-se muitos reais a norte-americanos, que “deram cursos” (deram aulas), para os professores “adotarem novos modelos de aula, adotarem novos tipos de aula, para que os alunos pudessem absorver melhor os conteúdos”. Peremptório, um desses professores afirmava: 

“Não dá para abandonar as aulas tradicionais de uma só vez”. 

Pois não! Nem as “tradicionais”, nem as “modernas”. 

Nas salas de aula de 2023, uma ensinagem desprovida de sentido, sem fundamento científico, reproduzia um modelo arcaico de sociedade. Caberá perguntar: Se a universidade era produtora de ciência, não deveria abandonar práticas desprovidas de fundamento científico?

 

Por: José Pacheco

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