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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXXI)

Brasília, 16 de dezembro de 2040

Queridos netos,

Certamente, estareis recordados de vos ter falado de um empresário que queira “salvar vidas de jovens”. Dizia ele que a escola da aula os matava e que fazer contraturno de escola era como tentar “enxugar gelo”. Pediu-me para “fazer uma escola como a Escola da Ponte”

É evidente que jamais pretendi fazer no Brasil uma escola igual à da Ponte. Com a Edilene, a Claudia e uma extraordinária equipe de educadores, ajudei uma ONG a libertar-se do assistencialismo e a fundar a Escola do Projeto Âncora.

Dei a essa escola quatro anos de vida gratuita. Foi considerada por curadorias internacionais como uma das melhores escolas do século XXI. Salvou muitas jovens vidas.

Quando, em 2014, dela me afastei, para que a escola desenvolvesse autonomia, fui convidado pelo Instituto Brasileiro de Informação e Comunicação para coordenar uma pesquisa, no âmbito do projeto “Brasília 2060”. Passei a viajar, frequentemente, para a capital. Outro convite me foi dirigido para integrar o Grupo de Trabalho da Criatividade e Inovação do Ministério da Educação. E as viagens para Brasília se intensificaram.

Voltei ao convívio de educadores, que tentavam “salvar vidas”. Colaborei com a “Vivendo e Aprendendo” e com a EC 115 norte, admiravelmente dirigida pelas minhas amigas Marta Caldas e Martha Scardua. Com a Cláudia, que também queria “salvar vidas de jovens”, realizei a primeira formação “Gaia Escola”. Fiz morada no Jardim Botânico de Brasília, para ajudar a criar comunidades de aprendizagem.

Em meados de janeiro de 2015, no seu gabinete da Secretaria de Educação, um homem bom de nome Júlio me recebeu. No início da reunião, comentou:

“Desde que assumi o cargo de secretário, já fiz muitas reuniões. Esta é a primeira em que nesta secretaria de educação se fala de… educação”.

Tal como o empresário Walter, o Júlio queria salvar vidas de jovens.

O Complexo Penitenciário da Papuda é um conjunto de presídios situado na região administrativa de São Sebastião. O Júlio levou-me a visitar essa prisão. Percorremos a ala dos jovens considerados infratores. Dali, fomos para a Unidade de Internação de São Sebastião, onde jovens já cumpriam sentença.

No regresso à Secretaria, o Júlio pediu-me que elaborasse um projeto para salvar vidas de jovens. Respondi que poderia ajudá-lo, mas que eu estava mais interessado em desenvolver um projeto, que evitasse a necessidade de haver prisões como a Papuda e unidades de internação. Isto é: conceber e desenvolver um projeto a montante do sistema, para não haver necessidade de medidas de compensação e correção, a jusante. Assim nascia a ideia da primeira comunidade de aprendizagem do Distrito Federal.

Em 2017 e a partir da iniciativa de professoras do CEF 04 do Paranoá, o projeto começou a tomar forma junto ao conjunto habitacional do Paranoá Parque. Fruto de uma construção coletiva, entreguei à secretaria o Projeto Político-Pedagógico, o Regimento Interno e uma minuta de Termo de Autonomia. Aprovados os documentos e após encontros com a Coordenação Regional, foi publicada a portaria de criação da Escola Classe/Comunidade de Aprendizagem do Paranoá – a CAP.

Na esteira dessa iniciativa, outros projetos surgiram e se consolidaram, por obra de extraordinários educadores. Finalmente, há vinte anos e neste mesmo dia de dezembro, a educação do século XXI chegava a Brasília, uma chegada adiada por décadas de investimento num modelo educacional causador de milhões de “mortes de jovens”.

Quando essa educação chegou, foi para ficar. Contar-vos-ei como tudo aconteceu.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXX)

Lajeado, 15 de dezembro de 2040

Queridos netos, depois de uma longa viagem por terras gaúchas, estou de regresso a Brasília, para comemorar com velhos amigos uma data histórica. E, nesta cartinha, voltarei a falar do “Currículo em Movimento”. Espero que a sua leitura não seja maçadora.

Nos idos de vinte, o “Currículo em Movimento” continuava inerte. A secretaria de educação impunha às escolas um modelo educacional fóssil, alheio ao misto de teoria crítica e escolanovismo proposto no documento. Se quiserdes e para entenderdes as contradições entre teoria e prática, poderei enviar-vos o texto. Passá-lo-ei do formato em PDF (que, há muito, deixou de ser utilizado) para um suporte de texto que vós utilizeis. Esse velho documento foi posto em prática nas comunidades de aprendizagem da década de vinte. Aqui vos deixo algumas citações.

“Em 1957, Anísio Teixeira concebeu o Plano Educacional de Brasília. Tratava-se de um plano ousado e inovador, que traria da Bahia a experiência de escola-parque. Não somente: reformaria os currículos vigentes, excluindo temas inadequados e introduzindo ferramentas de ensino mais modernas (…) O programa educacional compreenderia verdadeiros centros para o ensino elementar, composto pelos jardins de infância, escolas classe e escolas-parque. Após a conclusão do ensino secundário, o aluno estaria preparado para ingressar na Universidade de Brasília”.

Reparai que nestes excertos de há quase um século, Anísio nos falava de inovação, de um novo currículo, da utilização de tecnologia e, indiretamente… da abolição do exame de acesso à universidade! Continuemos.

O primeiro dos objetivos de Anísio Teixeira para a educação de Brasília foi o de “fazer escolas nas proximidades das áreas residenciais, para que as crianças não precisassem andar muito para alcançá-las e para que os pais não ficassem preocupados com o trânsito de veículos (pois não teria tráfego de veículos entre o caminho da residência e da escola)”.

Para bom entendedor… Anísio estava alinhado com a proposta das comunidades de aprendizagem do Mestre Lauro. E antecipava em meio século a formulação do conceito de “círculo de vizinhança”. Por que havia necessidade de transporte escolar?

No bairro onde o vosso avô vivia, a secretaria de educação desperdiçava, mensalmente, cerca de um milhão e seiscentos mil reais, para transportar crianças aqui residentes para prédios de escola distantes. Já tínhamos preparado tudo o que era necessário para criar círculos de vizinhança. Inclusive, havíamos enviado à secretaria um projeto de “práticas sustentáveis”, que contemplava a proposta do Anísio. Por que razão essas crianças não ficavam “nas proximidades das áreas residenciais“? O que iriam aprender em prédios distantes, que não pudessem aprender em espaços com potencial educativo, no seu círculo de vizinhança? Nada!

Por que não se cumpria a recomendação do Mestre paladino da justiça social? No domínio das intenções, assim ele era citado no Currículo em Movimento:

“Promover a convivência das mais variadas classes sociais numa mesma escola, seja o filho de um ministro ou de um operário que trabalhava na construção de uma superquadra, tendo como objetivo a formação de cidadãos preparados para um mundo sem diferenças sociais”.

Na prática, ignorando a recomendação, o fosso entre herdeiros e deserdados se aprofundava, sobretudo no decurso da pandemia. Mas, em dezembro de 2020, em novas práticas, educadores do Distrito Federal conferiram coerência ao Currículo em Movimento, recuperaram a memória do Mestre Anísio.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXIX)

Bento Gonçalves, 14 de dezembro de 2040

A educação é um ato estético, ou não é educação. A beleza está nos olhos de quem sabe ver, de quem sente. Nos idos de vinte, quem apenas optasse por pensar estaria doente dos sentidos, como disse o poeta. Sem o sensível experienciar da beleza, seríamos impedidos de experienciar o amor e a liberdade, que, juntos, nos conduziriam pelos caminhos da sabedoria.

Foi Nietzsche quem escreveu: “A voz da beleza fala delicadamente: ela se move dentro das almas mais iluminadas”. E um amigo me disse que quem nunca se comoveu com uma suite de Bach talvez nunca tenha existido. Então, seguindo a máxima nietzschiana, por volta de 2020, este vosso avô ousava juntar a poéticos atos de amorosos professores um gesto criador de práxis comunitárias. As dava a conhecer, porque, nos idos de setenta, quando partilhei Vivaldi com os meus alunos, descobri que só amamos aquilo que conhecemos. E fiquei triste, quando conheci o Fábio. O moço queria ser violoncelista, mas decidiu estudar Direito. Disse-me:

Depois, quando eu tiver um emprego, se verá…”

Muitos jovens se perderam nos labirintos de uma escola sem sentido. E, como diria o Óscar, muitos professores morreram aos vinte para a vida plena, para serem enterrados aos sessenta.

Para o Murilo a educação deveria formar as pessoas para serem poetas a vida inteira. Pessoas – escolas eram as pessoas que nelas viviam o drama educacional – que, não somente saibam fazer versos, mas que viviam em poesia, que percorriam o curso da existência a poetizar os seus gestos.

Sempre que eu ia ao chão das escolas, pedia para ler os seus projetos. Quase sempre, a direção das escolas desconhecia o conteúdo de tal documento, ou ignorava o seu paradeiro. Quase nunca encontrei professor que o tivesse lido. Raramente encontrei uma escola que o concretizasse. Até que chegou uma pandemia.

Tinham decorrido longos anos de uma educação-mentira. A boniteza andava arredada de prédios de escolas sem alma. Valia-nos a ciência, a arte e a amorosidade de professores, que punham alguma luz em tenebrosos antros.

2020 foi oportunidade de um despertar para a anómala situação. O “regresso às aulas” prenunciava o regresso aos trágicos efeitos que, já antes, a escola da aula havia provocado. Então, se outros não haviam percebido a mensagem de um vírus, cabia-nos recriar uma “nova normalidade”. E o fizemos – colocamos beleza em projetos contemporâneos da pandemia.

Certa vez – teria eu uns setenta anos – me perguntaram:

“Você não está aposentado? Por que continua a fazer projetos?”

“Não sou eu quem os faz. Os projetos humanos são atos coletivos. Eu apenas ajudo” – respondi.

“Mas, está a fazer algum projeto?” – insistiu.

“Estamos a preparar um projeto de comunidades de aprendizagem. Trata-se de um projeto de política pública. Foi um secretário de educação que me pediu ajuda. E os professores aderiram à iniciativa”.

“E, quando acabar esse projeto, vai parar?”

“Ajudarei a fazer outro.”

“Outro? Qual?”

“Será, certamente, um projeto para acabar com as comunidades de aprendizagem. Deve haver algo melhor, depois disso. Porque “todo cambia, cambia el modo de pensar, cambia todo en este mundo”.

Citei a Mercedes. Se em Portugal estivesse, evocaria Camões: “Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades”. Estávamos em plena 4.0.  A Quarta Revolução Industrial trouxera a automação, sistemas ciber físicos, a Internet das Coisas, a computação em nuvem. E a escola havia ficado retida no 1.0 da Primeira Revolução Industrial.

Foi, então, que escolas de Brasília se inundaram de freireana boniteza.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXVIII)

Pedras Altas, 13 de dezembro de 2040

O primeiro parágrafo do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova rezava assim: 

Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional.”

Decorria o ano de 1932. Entre os signatários do Manifesto estava Anísio Teixeira.

Em 2010, fui ao sertão baiano à procura do que restava desse insigne brasileiro. Acolheram-me na casa que foi sua. Mostraram-me o leito em que dormia, o berço que se presumia ter sido o seu, livros e objetos vulgares, que foram tocados pelas mãos de um gênio. À saída, detive-me junto a uma das derradeiras fotos de Anísio – está na melhor companhia a que um educador pode aspirar: crianças.

Em Caetité, encontrei boa gente com muita vontade de melhorar. Mas não resisti a perguntar:

“O que existe de Anísio nas escolas de Caetité? Qual o legado de Anísio, que se faça presente nas práticas escolares?

Respondeu-me um embaraçado silêncio.

Apercebi-me de que os professores brasileiros conheciam Anísio somente de nome. Quase nada teriam lido do muito que escreveu. O tempo aliou-se à incúria dos homens para apagá-lo da memória dos educadores brasileiros. Conheciam Freire de meia dúzia de leituras mal digeridas. Ornamentavam projetos de escola com citações dos mestres, mas não os cultivavam. Na formação, adquiriram vagos contributos de ilustres pedagogos estrangeiros, mas não conheciam a obra de Eurípedes e nunca ouviram falar de Lauro ou de Agostinho.

Foram muitas as horas de viagem pelas estradas do interior da Bahia, vendo garrafas e latas arremessadas por energúmenos, que dirigiam automóveis, ultrapassando em curvas. No rádio do carro, quase tudo era lixo sonoro – na terra de Caymi, Caetano e Bethânia, nem uma só vez escutei as suas vozes. A caminho de Caetité, passei por Brumado. Ali, na margem do São Francisco, o povo sofria de… falta de água potável. O que terá tudo isso a ver com a Educação e com o Anísio?

Procurei na cidade uma lápide ou um busto que o evocasse. Não encontrei. Mistério e silêncio encobriram as circunstâncias da morte de Anísio. Consta que foi encontrado em posição fetal, entre as molas do fosso de um elevador, sem vestígios de com elas ter colidido, numa presumível queda. Talvez com marcas de agressão. Talvez, porque questionar esses tenebrosos tempos era tabu. Ao que parece, sepultaram-no sem que as conclusões de qualquer inquérito fossem dadas à luz. E a luz que Anísio lançou sobre a Educação do Brasil também se extinguiu com ele.  Anísio morreu duas vezes.

Cito o mestre: “O professor prelecionava, marcava a seguir a lição e tomava-a no dia seguinte. Os livros eram feitos adrede, em lições. Os programas determinavam o período para se vencerem tais e tais lições. Exames que verificavam se os livros ficaram aprendidos, condicionavam as promoções. Ora essa escola é inadequada para a situação em que nos achamos.”

Numa pesquisa realizada em 2014, envolvendo cerca de duzentos professores do Distrito Federal, concluímos que eram raros aqueles que tinham lido o “Currículo em Movimento” e ainda menos eram aqueles que o praticavam.

Supostamente, esse documento seria orientador da política educacional do estado. E o maior inspirador desse documento era Anísio, que, em 1934, fazia a crítica da “escola do passado”.

Na Brasília de 2020, a administração educacional ainda impunha a prática de inúteis aulas presenciais e remotas. Teimosamente, insistia no instrucionismo, que Anísio criticara… há quase um século!

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXVII)

Guaporé, 12 de dezembro de 2040

Por que escrever histórias? – perguntareis – Porque as histórias, como a poesia, são uma linguagem do coração. O coração entende-as. E bate mais rápido. Uma história tem o poder de transformar pessoas. Então, contemo-las…

Retirante baiana, a Antônia chegou à grande cidade só com os andrajos que lhe cobriam o magro corpo. Não foi o amor, mas a fome, que a fez parir dez filhos, a juntar aos oito que o seu homem já fizera em outra mulher.

Iria fazer cinquenta anos, mas tinha no rosto as marcas de décadas de provações. Mais de um século decorrido sobre a Lei Áurea, havia na sociedade brasileira cidadãos de cidadania menor, que nada possuíam e a nada aspiravam.

O homem da Antônia sofrera três derrames e caíra na cama para não mais se levantar. A Antônia cuidava-o com o mesmo desvelo que dedicava a um menino, que uma jovem nordestina lhe confiara, antes de se perder nos atalhos da vida e da prostituição.

“O meu menino é como o meu homem, não fala nem consegue andar dois passos, mas eu peço à senhora que o deixe vir para a sua escola. Vai ver que ele ainda assim consegue aprender…”

Comovida, a diretora da escola abraçou a Antônia e a garantiu-lhe que o Edilson seria bem tratado e aprenderia tudo o que pudesse aprender. A Antônia abriu no rosto um sorriso terno e desdentado, e lá se foi de bem com a vida. E eu ali fiquei, num canto da sala, a voz amordaçada pela emoção, incapaz de responder à diretora, quando ela me dirigiu a palavra:

É como canta o Milton, professor, “há que se cuidar do broto, para que a vida nos dê flor”.

Dizia o mestre Agostinho da Silva que não existem só poetas de verso. A ideia de que a pessoa tem de se dizer poeta porque faz verso, não é verdade. Poeta é aquele que cria na vida alguma coisa que na vida não existia. Na minha peregrinação pelo Brasil das escolas, encontrei poesia nos gestos mais simples, aprendia humanidade, deparava com beleza a todo o momento. E, no dia em que conheci a Antônia, aconteceu uma overdose de beleza.

Nos idos de vinte, quando falhava a educação, subia à cena o polícia e o juiz. Mas, num quotidiano violento, eu testemunhava amorosos gestos:

“Não vá por aí, que tem assaltante esperando!

Arrepiei caminho, com um sorriso de agradecimento para o moço que me lançara o aviso. Mais adiante, um menino da rua remexia num caixote de lixo e retirava dele um pedaço de carne suja e infecta. Sacudiu-o, para soltá-lo de pedaços de guardanapo de papel. Quando já abria a boca para engoli-lo, um transeunte foi junto do moço, deu-lhe uma nota de vinte reais e, em silêncio, se afastou.

No mesmo dia, a Tatiane deixou uma mensagem no meu computador:

“O que me move é o amor, pela vida, pelo outro e por acreditar nisto traço meu percurso enquanto educadora na emoção e no sentimento. Não posso basear minha ação pedagógica no sistema falho, devo baseá-la no ato vivo na emoção e na relação que estabeleço a cada dia. Para resgatar este outro que foi julgado, descriminado e rotulado.”

Comenius, na Pampaedia:

Nosso primeiro desejo é que todos os homens sejam educados plenamente em sua plena humanidade, não apenas um indivíduo, não alguns poucos, nem mesmo muitos, mas todos os homens, reunidos e individualmente, jovens e velhos, ricos e pobres, de nascimento elevado e humilde.”

Nas minhas peregrinações pelo Brasil das escolas, encontrei muita maravilhosa gente, que buscava realizar o desiderato de Comenius. A esperança – aquela que Pandora não deixou que saísse da sua caixa e cuja etimologia nos remete para a fé na bondade da natureza – manifestava-se em discretos gestos de educadores, que nos davam lições de humanidade.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXVI)

Nova Bassano, 11 de dezembro de 2040

Encontrei numa velha pen drive um ficheiro com várias notícias de uma mesma semana do dezembro de 2020.

Na rotineira violência da favela, o ajudante de pedreiro Alexsandro, chorava a morte da sua filha Emily e da sua sobrinha Rebeca:

“Tô enterrando a minha filha, que não viveu nada”.

As duas crianças foram mortas em tiroteio na Baixada Fluminense. Emily, de quatro anos e Rebeca, de 7, brincavam na porta de casa quando foram atingidas por balas. Foram sepultadas, uma ao lado da outra. Alexsandro fechou o túmulo com as próprias mãos.

Na chamada “estrada da morte”, que tantas vezes percorri com o credo na boca, um ônibus não autorizado para transporte de passageiros caiu de um viaduto. Morreram vinte pessoas.

Numa sociedade doente, desgovernada, cativa da inversão de valores, reinava o caos da incúria e da má educação. Escasseava o exercício da cidadania.

Nas escolas, havia aulas de “educação para a cidadania”, quando se deveria educar no exercício de uma cidadania plena. As escolas cívico-militares praticavam um civismo de caserna. A cidadania instrucionista causava a destruição da Amazônia. A cidadania ensinada na universidade não obstava a que estudantes estuprassem colegas, durante o trote. Havia projetos de “educação cidadã” financeira, para o trânsito, para a saúde. Mas, a inadimplência se generalizava, as estradas eram cemitérios e a covid-19 voltava na segunda vaga. E uma “cidadania armamentista” contribuíra para o assassinato da Emily e da Rebeca.

No início deste século, o meu amigo António Nóvoa redigiu um artigo com o título “A educação cívica de António Sérgio vista a partir da Escola da Ponte (ou vice-versa)”. Com uma dedicatória: “Para todos os que têm feito e continuarão a fazer a Escola da Ponte”. Eis o que o António escreveu, a partir da obra do Mestre António Sérgio:

“É grande a nossa tendência para “adormecer a própria mente com noções vagas, sentimentais”. Tem sido uma das pechas do debate sobre a educação: a frase feita, o gesto fácil, a solução pronta-a-servir, a banalidade transformada em eloquência, em vez do estudo aturado, da reflexão sobre as experiências concretas, da análise sistemática e informada (…) Sérgio critica a albarda da resignação fomentada pela escola e afirma a necessidade de uma formação cívica prática: «a educação cívica meramente teórica parece um ensino de esgrima em que se não empunhasse uma arma, ou uma aprendizagem de piano em que os dedos se não mexessem: é um absurdo”.

E deste modo concluía o artigo:

“Fazer uma escola é, também, ser capaz de suster a indignação por tanto disparate que se escreve e manter um rumo que se alimenta da esperança enquanto necessidade ontológica, de uma esperança que, nas palavras de Paulo Freire, precisa da prática para se tornar concretude histórica. A Escola da Ponte, é uma escola extraordinária. É uma escola pública como as outras, com alunos e professores iguais a muitos outros. E com esta matéria-prima se tem vindo a fazer, graças a um trabalho metódico, persistente e coletivo, uma escola notável.

Júlio Cortázar escreve que uma ponte só é verdadeiramente uma ponte quando alguém a atravessa. Os colegas da Escola da Ponte já fizeram muitas travessias. Pelo deserto ou pela floresta, eles sabem que não estão sozinhos nas travessias que têm pela frente.”

A Ponte, de que o amigo Nóvoa falava no início do século, foi inspiração para aqueles educadores que, no dia 16 de dezembro de 2020, anunciaram o advento de uma nova educação. Eles sabiam que não estavam sozinhos na prática de uma educação verdadeiramente cidadã.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXV)

Itapiranga, 10 de dezembro de 2040

Em 2015, o MEC lançou uma chamada pública, para identificar iniciativas com potencial inovador. Foram identificadas 178 iniciativas. O ministério enviou certificações às escolas consideradas inovadoras, comprometendo-se a acompanhá-las. Mudaram-se os tempos, mudaram-se as vontades. E o MEC não cumpriu o compromisso assumido. Muitos projetos foram extintos por intervenção de um poder público ignorante, corrupto e autoritário.

No Brasil, presenciei o desaparecimento de muitos projetos. Em Portugal, praticando uma gramática da resiliência, a Ponte conseguiu resistir. Alcançou os primeiros lugares em concursos de projetos inovadores, teve as mais altas classificações nos processos de avaliação externa e até foi homenageada pela Presidência da República. Isso lhe permitiu granjear prestígio e… muitos inimigos.

O manifesto, que vos dei a conhecer em cartinha anterior, constituiu-se em solidária reação às ministeriais perfídias. Espero não vos maçar com a transcrição de excertos. É um documento longo, mas o “enxugarei”:

“Os professores, os pais e a direção da escola vêm solicitando ao Ministério que cumpra os compromissos assumidos e assegure as condições mínimas para viabilizar a continuidade deste projeto. As suas exigências traduzem-se em solicitar ao Ministério: que celebre com a escola um contrato de autonomia que viabilize o seu projeto; a constituição de uma equipa de acompanhamento e avaliação; a disponibilização de instalações adequadas; a adequada estabilização do corpo docente. O Ministério da Educação faz o contrário do que diz A retórica política tem enfatizado, como orientação central, o prémio ao mérito. A Escola da Ponte tem-se notabilizado pelos resultados obtidos pelos seus alunos nas provas de aferição à escala nacional. Neste caso, o mérito, em vez de premiado, é penalizado.

O Ministério tem afirmado pretender favorecer o protagonismo das famílias, mas, neste caso, procede contra a sua vontade expressa. O Ministério afirma pretender a responsabilização das escolas através dos seus resultados, mas ignora-os e mostra-se incapaz de materializar um contrato de autonomia, previsto na lei. O Ministério apregoa o rigor na avaliação, mas ignora as conclusões e recomendações da comissão de avaliação externa, por si designada. O Ministério pretende negar a esta escola o cumprimento de competências que lhe são inerentes (promover uma escolaridade de nove anos) quando, paralelamente, impõe a constituição à força de agrupamentos verticais.

Os professores da Ponte têm razão! Não aceitam a perversão do seu projeto e, por isso, recusam dar-lhe continuidade, nos termos que o Ministério pretende impor. Achamos que os professores têm razão e, como eles, perguntamos se «é este o prémio que o Ministério da Educação reserva para as escolas de qualidade».

Como professores e educadores, estamos preocupados com o futuro do projeto. Mas estamos, sobretudo, solidários com a comunidade educativa da escola e, em particular, com o grupo de professores que teimam em ser autónomos, criativos e donos da sua profissão, sem para isso pedirem prévia autorização.

Fazendo nossas as palavras da Associação de Pais da Escola da Ponte, consideramos que «seria um absurdo que, por um capricho de governantes, sempre transitórios, este projeto se extinguisse, ao fim de 27 anos». É algo que não podemos aceitar e a todos envergonharia.”

O ministério não conseguiu extinguir o projeto. E, em 2040, a Ponte celebrou o seu sexagésimo quarto aniversário.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXIV)

Santa Cruz do Sul, 9 de dezembro de 2040

“A vida era igual aos grupos de camponeses que iam à missa aos domingos. A criança herdava naturalmente o conhecimento, as reflexões e o bom senso das gerações que caminhavam perto dela, tutelares [mas] as condições do meio mudaram radicalmente e as crianças só serão salvas utilizando métodos adaptados à dinâmica contemporânea.”

Na obra de onde extraí estas linhas, Celestin Freinet descrevia, há cerca de um século, um processo educacional anterior à emergência da Primeira Revolução Industrial. E, há cerca de vinte anos, deparei com personagens do drama educacional, que me “transportaram” ao tempo em que o eminente pedagogo escreveu essas palavras. Aqui vos deixo a descrição de um lamentável episódio.

Da agenda da reunião constava a apresentação de uma proposta de protocolo de avaliação de projetos considerados inovadores. Uma senhora apresentada como “especialista em currículo” ordenou a uma subordinada que desse início à sessão e passou a conduzir os trabalhos, lendo o conteúdo de um power point, como se os ouvintes fossem analfabetos e não o soubessem ler.

A ladainha era monótona e repleta de equívocos. Ao meu lado, um professor de uma suspirava de enfado, pois já deparara com vários disparates com chancela de cientificidade, que nenhum dos presentes ousara comentar. Não se conteve, quando a dita especialista em currículo referiu como critério de avaliação do projeto o “índice de reprovação”. Respeitosamente, questionou:

“A senhora admite que projetos inovadores naturalizem o insucesso, que se reprove? Na nossa escola, acabamos com segmentações, não se reprova.”

Do alto do seu pós-doutoramento, sem disfarçar a irritação, a “especialista” o interrompeu:

“Senhor professor, as outras escolas não são como a sua! Não podemos exigir mais dos professores. Eles não sabem trabalhar de outra maneira. O senhor não pode impor as suas teorias aos outros!”

Não agradou ao professor que a dita “especialista” tratasse os professores com condescendência. E respondeu que não se tratava de teoria, mas de práxis transformadoras, desenvolvidas em escolas onde arcaísmos como a reprovação deram lugar a uma avaliação formativa, contínua, sistemática.

Um esgar de desagrado e desdém atravessou a face da “especialista”. Ignorou a interpelação e passou, também, a ignorar a presença do professor.

A apresentação prosseguiu até ao momento em que a “especialista” prescreveu que fosse feita observação de aulas. Após escutar esse absurdo, o professor não se conteve e perguntou:

“Em que século estamos, minha senhora?”

Ela respondeu com ironia à ironia:

“Não queira parecer original! Terá de ser, mais ou menos, assim! E agradeço que não me interrompa!”

Observador atento, fui mais fundo na compreensão do drama daquela “especialista”, cativa de um modelo de escola que apenas admitia uma prática pautada num “mais ou menos”. Em 2020, muitos anos decorridos sobre esse lamentável episódio, vivíamos, mais ou menos, submetidos às decisões de ““especialistas em currículo”, que consideravam os professores incapazes de compreender e ainda menos de fazer diferente, de inovar.

Gestores “mais ou menos”, formadores “mais ou menos”, técnicos superiores “mais ou menos” pariam bases curriculares e medidas (provisórias e definitivas) “mais ou menos”. Institutos, fundações e outras agências de financiamento apoiavam projetos “mais ou menos”, perpetuando a reprodução de seres humanos… “tipo mais ou menos”.

Até que chegou o dia 16 de dezembro de 2020. Fixai esta data, pois dela vos voltarei a falar.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXIII)

Viamão 8 de dezembro de 2040

2041 está chegando, considero necessário reavivar memórias. No próximo ano, passarei à situação de nonagenário. Por isso, preciso apressar a escrita de cartinhas. Elas poderão ajudar os educadores a compreender como se chegou à Idade da Educação. Os futurólogos sempre apontaram a década de 40 como a inaugural de uma nova educação. E eu não imaginaria que pudesse sobreviver até este tempo chegar.

Contar-vos-ei estórias de projetos. Começarei por aquele que foi o marco maior da minha longa vida de professor Antes de partir, preciso contar-vos a sua história.

No início deste século, alguns “alguéns”, dentro da estrutura do ministério da educação tentavam, mais uma vez, destruir o projeto “Fazer a Ponte”. A Universidade portuguesa juntou-se a um movimento de professores em defesa da escola pública. Amigos como o Rui organizaram encontros, que reuniram milhares de educadores. Os maiores vultos da educação desse tempo se juntaram na elaboração do “Manifesto de Apoio à Escola da Ponte”. Aqui transcrevo alguns excertos do documento.

Ao longo dos últimos 25 anos, apesar das sucessivas (e falhadas) reformas, um coletivo de professores, com os alunos e os pais, desenvolveu, na Escola da Ponte, um projeto educativo ímpar, reconhecido a nível nacional e internacional. Esse reconhecimento traduziu-se, a nível institucional, pela conversão numa Escola Básica Integrada, alargando-se o âmbito do projeto a um percurso escolar integrado e coerente de nove anos.

A sobrevivência deste projeto, por ação e por omissão do Ministério da Educação, está ameaçada. A sua extinção representaria um empobrecimento inaceitável do nosso património educativo, sem que haja, da parte do Ministério, qualquer razão plausível dos pontos de vista científico, pedagógico ou de política educativa.

Há razões para apoiar a Escola da Ponte. A criação da EBI não representou uma resposta a problemas de oferta educativa local, nem de racionalização da rede escolar, mas tão-só o reconhecimento da singularidade e da riqueza pedagógicas deste projeto. Com efeito, a Escola da Ponte tem-se afirmado como uma escola diferente, em que a originalidade das soluções – não há anos de escolaridade nem turmas, os espaços são polivalentes e os professores não se queixam da falta de condições para dar o programa – se combina com o sucesso escolar e educativo das crianças e o envolvimento das famílias.

Nesta escola, os alunos são tratados como crianças que aprendem a ser gente, com base na construção da sua progressiva autonomia para gerir tempos e espaços, planejar atividades, gerir a informação, participar na sua avaliação, exercer os direitos de cidadania. Nesta escola, tem vindo a ser construída uma resposta pedagogicamente coerente, e eficaz, para lidar com a heterogeneidade do público escolar.

É exemplar o modo como, nesta escola, são integrados e resolvidos os problemas dos chamados alunos difíceis ou com necessidades especiais. O modo original de organizar o trabalho escolar dos alunos tem a sua contrapartida num modo, igualmente original, de organizar o trabalho dos professores.

É particularmente estimulante a maneira como se reequacionou a articulação entre trabalho individual e coletivo e entre generalismo e especialização, com base num coletivo de professores que constroem e exercem uma autonomia não outorgada e que não admite tutelas.”

Por essa altura, a celebração do primeiro “contrato de autonomia” entre um ministério e uma escola já estava anunciada. Mas, ainda iríamos ter de enfrentar muitos obstáculos.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXII)

Livramento, 7 de dezembro de 2040

Sei que poderá parecer mentira, queridos netos, mas juro que, nos idos de sessenta, escutei uma professora dizer o seguinte:

“O último livro, que eu li, foi no curso do magistério. Nunca mais precisei…”

Fiquei atônito. A leitura não era tudo na vida, ler não era suficiente para operar mudança, mas não se poderia dispensar a teoria, porque não existe prática sem teoria. Por mais livros lêssemos, nunca seriam suficientes para resolver as nossas dificuldades de ensinagem. Compreendi isso no contexto de um projeto que concretizou utopias.

Já aposentado, partilhava leituras com professores que não desistiam de se melhorar. Tinha consciência de que, por mais livros que lesse, seria sempre ignorante, dada a imensidão do conhecimento disponível.

Por isso me surpreendia, quando alguém me afirmava haver professores que não liam. Talvez por isso, muitos professores agissem como aprendizes de feiticeiro, não logrando explicar por que faziam aquilo que faziam, fosse lá o que fosse que fizessem. Não conseguiam fundamentar as suas práticas com recurso à teoria e, porque não se distinguisse a sua “opinião” da “opinião” de qualquer leigo em pedagogia, eram “desvalorizados por uma opinião pública na qual todos se consideravam especialistas em educação”, como bem dizia a Hanna Arendt.

Esses docentes eram os mais vulneráveis a discursos pretensamente inovadores e ao assédio de vendedores de poções mágicas. Soube de gente que fazia fortuna, distribuindo receitas de autoajuda pedagógica, “ensinos híbridos”, sedutoras soluções, que os próprios vendedores não aplicavam. Observava falastrões afagando o ego dos professores, falando somente o agradável, em palestras de power point, contornando questões delicadas, recorrendo ao discurso da desculpabilização, tratando os professores quase como mentecaptos.

Eu ria – um riso triste, confesso – das intervenções públicas de adeptos do pensamento único, que acreditavam serem sábios. Misturavam afirmações do senso comum com propostas fósseis, propunham aquilo que sempre se fez. As escolas que não se davam conta da obsolescência do modelo, que tais criaturas defendiam, sempre tentaram transmitir conteúdo, sempre valorizaram a transmissão de informação, centrando o ensino nos conteúdos curriculares e numa “avaliação” feita de inúteis provas.

A formação dos professores parecia ignorar que, à míngua de uma produção teórica que fecundasse as práticas e que por elas fosse reelaborada, se alterava somente a nomenclatura. Ainda se insistia no decorar de teorias velhas de séculos. E, ao preconizar a priorizar a teorização em detrimento da práxis, a formação inicial e continuada contribuía para a desqualificação profissional dos professores.

Em 2020, ainda havia professores, que não liam… a tragédia da reprodução da ignorância estava no auge. O Brasil dispunha de projetos inovadores e de excelentes teóricos. Porém, desconhecia a existência desses projetos. E a teoria produzida quase não tinha espaço nos congressos, pois novas pedagógicas colonizações – quase todas de origem anglo-saxônica – se insinuavam.

No caos de uma comunicação social semeada de fake news, se receitava cosmética educacional, cujos trágicos efeitos, hoje, bem conhecemos. Sucessivas gerações foram condenadas ao grau zero de literacia, ao analfabetismo literal e funcional – havia muitos analfabetos no ensino “superior” – num drama educacional, que a escola da mesmice produzira. Mas, como diria a sabedoria popular, não havia mal que sempre durasse…

 

Por: José Pacheco

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