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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLIII)

Cabanas de Tavira, 8 de julho de 2040

Voltemos a ornitológicas metáforas, para que até uma criança entenda a dimensão do drama.

Os primeiros tempos da pandemia foram de prudente expectativa. Seria necessário fazer a pergunta fundadora: seriam as gaivotas capazes de fazer dos aprendizes pássaros sábios e felizes?  Elas sabiam que isso não seria viável num processo de transmissão, como nos vasos comunicantes, mas que o saber e a felicidade se colariam às asas, se o voo aprendido fosse colado à vida.

Na azáfama de erigir uma nova construção social de aprendizagem e porque sabiam escutar, as aves construtoras estavam receptivas a diferentes saberes de diferentes pássaros. Formulavam perguntas essenciais, idênticas àquelas que o amigo Celso incluía na sua “Crítica Epistemológica ao Instrucionismo”:

que é necessário, para que o aluno aprenda, do ponto de vista subjetivo? Para sair do discurso marcado pelo senso comum (ou modismos), desejamos radicalizar a análise do processo de aprendizagem: se compreendermos melhor como o sujeito aprende, poderemos melhor orientar a mediação.

E o Celso apontava um princípio de resposta. Seria necessário: Capacidade sensorial e motora, e capacidade de operar mentalmente (…) É sempre bom lembrar que não temos um corpo, somos um corpo, que participa de várias formas do processo de aprendizagem. Deve ficar claro que todo ser humano tem, em algum nível, estas capacidades, por isto todo ser humano pode aprender [e] para chegar a um conhecimento novo, o sujeito precisa recorrer a conhecimentos anteriores a ele relacionados. Para que o conhecimento do sujeito avance, é preciso que tenha acesso a novas informações.

O Celso não refletiu em vão. A sua inestimável contribuição e as de muitos outros mestres fundamentaram a transiçao paradigmática operada na década de vinte. Hoje, apenas restem resquícios da velha escola.

Para avivar a memória, reproduzimos no museu da pedaggia uma sala de aula dos anos vinte. Quando as jovens gerações a visitam, questionam:

Era assim mesmo? Os professores usavam aquela velha lousa digital? Os alunos ouviam e repetiam aulas online? Pode lá ser!

Para esses sujeitos de aprendizagem (como são considerados) é difícil conceber tal cenário. Mas, lede o que o Celso dizia, há vinte anos, no tempo da pré-história da educação:

O instrucionismo, o paradigma da instrução, a aula meramente expositiva tem, mais ou menos, a seguinte estrutura: exposição do professor, exercício modelo, exercícios de aplicação, tarefa (que repete o modelo dos exercícios) e prova. Confrontemos as exigências epistemológicas subjetivas para que se dê a aprendizagem do aluno com a prática do modelo instrucionista. Não são consideradas a capacidade sensorial e motora, nem a capacidade de operar mentalmente, a não ser como grande justificativa para a não-aprendizagem do aluno.

É impressionante como o preconceito avança neste campo! O conhecimento prévio não é considerado. Quando muito, se for um professor dedicado, vai cuidar da ordem lógica dos conteúdos a serem apresentados…

Assim falava o amigo Celso. Mas expunha-se a mumificadoras reinterpretações do discurso. Naquele tempo, como hoje, frases retiradas do contexto eram interpretadas por professáurios como legitimação do instrucionismo.

No tempo da velha escola,quando o mestre escrevia: “os objetos podem ser apresentados diretamente aos alunos, ou através de alguma mediação (texto, imagem, modelo)”, múmias pedagógicas viam nesse excerto motivo para continuarem… “dando aula”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLII)

Cacela Velha, 7 de julho de 2040

Nos idos de vinte, o meu amigo Celso pediu-me que fizesse uma “leitura crítica” de um artigo, que encontrei num dos meus velhos caderninhos. Fez-me bem reler essa espécie de sensível libelo do instrucionismo. Ainda hoje, nutro gratidão a esse e outros amigos, que denunciaram e desconstruíram um obsoleto e funesto modelo educacional, ao mesmo tempo que anunciavam e concebiam teóricas alternativas.

Sábio e honesto, como poucos o foram, num tempo feito de medo e de obscenos silêncios, o amigo Celso assim introduzia o seu artigo: A crítica ao instrucionismo tem de ser feita em muitas e articuladas frentes: desde a valorização da profissão docente (para ter professor que queira, de fato, ser professor), a formação (superar o vício instrucionista da universidade), até a questão das condições de trabalho da escola (trabalho coletivo constante, planejamento integrado, currículo etc.). Uma das frentes da crítica deve ser o desmonte de sua legitimidade: deixar muito clara sua fragilidade, sua falta de fundamentação epistemológica.

E acrescentava a crítica, evocando o início da pandemia instrucionista, de que vos falei na última cartinha. Desta feita, na voz autorizada de um dos mais válidos teóricos:

Para algumas pessoas, o ensino frontal, o ensino simultâneo sempre existiu. A rigor, do ponto de vista da História da Educação, é uma prática relativamente recente que tem suas primeiras formulações nos séculos XVI e XVII (ex.: colégios jesuítas; proposta de Comênius: ensinar a todos como se fosse a um só), mas que vai se concretizar em larga escala, no final do séc. XVIII e início do XIX, com a constituição e expansão da escola pública na Europa, onde a lousa, enquanto dispositivo pedagógico, teve grande influência, por funcionar como elemento organizador do espaço da atividade educativa, da sala de aula: o professor na frente, falando e escrevendo na lousa, os alunos uns atrás dos outros, em filas, ouvindo e copiando.

Tal como o Celso, o amigo Rubem também ansiara pela libertação de amarras conceituais e pela imersão no “desaprender” e no “desensinar”.  Era um romântico, mas acérrimo crítico do “ensino simultâneo”, do frontal anônimo da sala da aula. E dizia:

“Quero uma escola retrógrada, em que a aprendizagem seja um empreendimento comunitário, uma expressão de solidariedade e não uma linha de montagem”

Tudo começara no derradeiro ano do século passado, no dia em que o Rubem visitou a Escola da Ponte. Ali, assistiu à desconstrução do paradigma da instrução, a práticas do paradigma da aprendizagem, de que o amigo Celso falava em 2020, pois também havia visitado essa escola.

A Ponte havia sido a primeira escola pública a ousar tal ruptura. E fora “como um momento de “iluminação”, que o Rubem dizia ocorrer, quando acontece o lapsus (a queda, segundo a psicanálise), uma fratura no discurso lógico. Da perplexidade, face ao que vivenciou, ao se deparar com a quebra prática de paradigmas dos conceitos herméticos de educação, o Rubem passou à escrita a surpreendente descoberta.

Era um homem da academia, tal como o Celso. Mas, conseguiu despir-se de títulos acadêmicos e reconhecer, na simplicidade, a forma mais refinada do universo educacional. Porque:

“Gente de boa memória jamais entenderá aquela escola. Para entender é preciso esquecer quase tudo o que sabemos. A sabedoria precisa de esquecimento. Esquecer é livrar-se dos jeitos de ser que se sedimentaram em nós e que nos levam a crer que as coisas têm de ser do jeito que são. Não! Não é preciso que as coisas continuem a ser do jeito como sempre foram”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLI)

Praia Verde, 6 de julho de 2040

Há uns sessenta anos, aceitei o convite para fazer formação inicial de professores, na convicção de que também aprenderia com a experiência universitária. Mantive o meu trabalho na Ponte e disponibilizei um tempo para criar oportunidades de transformação das pessoas e de formação de futuros professores. Porque é sabido que, onde não existe uma pessoa, não se pode implantar um professor.

Foi desagradável a surpresa. No primeiro dia, entregaram-me uns papéis encimados pela expressão “registros de presença”. Perguntei o que era aquilo. Disseram-me que deveria “passar pelos alunos” aqueles registros “no início e no final de cada aula, para controle de presenças”. Respondi que não utilizaria os registros, porque contradiziam o teor do projeto da instituição. Nele estava escrito que se pretendia “formar professores autônomos e responsáveis” Como se poderia atingir esse objetivo impondo instrumentos de controle?

Recusei “dar aula”, porque, já há vinte anos, havia deixado de as “dar”. E uma boa surpresa sucedeu à má surpesa inicial: havia alunos, que faltavam às “aulas” controladas por registros de presença, para participar nos meus encontros de aprender a ser professor. Isso me valeu destrutvas críticas, provindas de professáurios. Ameaçavam os alunos de os reprovar por faltas. E diziam que o meu trabalho “era uma porcaria”.

Pedi aos alunos que convidassem esses professáurios para um debate franco, através do qual provassem que “dar aula” estava certo e que o meu modo de fazer aprender estava errado. Nunca aceitaram o meu fraterno convite.

Quando propus desenvolver uma avaliação formativa, contínua e sistemática, com recurso a um portfólio, fui surpreendido por um fenômeno, que considerava erradicado. Os meus alunos do curso de Pedagogia entregavam-me “trabalhos de pesquisa” enfeitados com citações do tipo: segundo fulano, conforme Piaget, Vygotsky disse, beltrano disse… Devolvia os textos, dizendo que aqueles “trabalhos acadêmicos” não eram pesquisas,  eram cópias. E que eu não era fofoqueiro, não me interessava saber aquilo que alguém disse, mas verificar a aquisição de saberes, a produção de conhecimento.

Chegada a era da Internet, reinterpretei o fenômeno. Deparei com o copy past digital, que não dotava os professores de um saber-fazer fecundante de práxis coerentes, nem os habilitava a argumentar num espaço de debate transformado em terra de ninguém – o debate sobre educação. Foi dura a surpresa, mas também esclarecedora. Acabava de compreender por que razão os professores só sabiam replicar aulas.

A formação é isomórfica. O modo como o professor aprende será o modo como o professor ensinará. Se tinham sido formatados na prática da aula, reproduziam essa prática. Os professores da formação inicial amiúde Citavam Donald Schön e o amigo Nóvoa: O professor é um profissional intelectual, reflexivo, crítico das suas práticas. Mas… cadê esse profissional?

Há cinquenta anos, era comum escutar a anedota do “cachorro que falava”.

No decurso de uma palestra, o palestrante afirmara, que, numa aula, era possível ensinar. E que, na sua sala de aula, ele até tinha ensinado um cachorro a falar.

Foi-lhe pedido que, na palestra seguinte, levasse consigo o cachorro-fenômeno. Ele assim fez. E pediram-lhe que pusesse o animal a falar.

Cachorro, fala! – ordenou o palestrante.

O cachorro não falou.

Reagindo aos apupos da plateia, o palestrante auleiro exclamou:

Eu disse que o ensinei. Ele é que não aprendeu!

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CL)

Castro Marim, 5 de julho de 2040

Querido Marcos,

Sempre vi em ti a sensibilidade de um designer, o espírito criativo de um inovador, talento para recriar uma tecnologia social, que possibilitasse a emergência de uma nova construção social de aprendizagem. Partirei tranquilo, por saber que aquilo que o vosso avô não foi capaz de concretizar, sê-lo-á pelas mãos de novos construtores de futuros.

O Pássaro Encantado (de que te falei numa outra carta), dizia que a verdade não é uma só, nem é só nossa, vivendo, sob múltiplas formas, em todas as pessoas… e em todos os pássaros. Nos livros, que vos dediquei, já vai para quarenta anos – o “Para Alice, com Amor” e o “Para os filhos dos filhos dos nossos filhos” – recorri a personificações, para interpelar verdades imutáveis e para vos descrever a escola do início do século XXI. Se pretendesse descrever a escola de hoje, de modo que os filhos dos filhos dos vossos filhos me entendessem, poderia esboçar algo assim:

Lá pelo século XVII, um país que já nem existe, chamado Prússia, precisava de um exército forte, para o unificar. E o seu imperador decretou “o ensino militar obrigatório aos cinco anos”. As crianças foram confinadas em casernas a que deram o nome de escolas.

A escola nasceu militar, assente numa rígida disciplina e num regime autoritário usuário de severas punições. O vírus originário da Prússia – vamos chamar-lhe instru-XVIII – transformou-se numa epidemia, que afetou outros estados-nação europeus. A França dos iluministas e dos conventos o gestou. A Inglaterra das usinas da Primeira Revolução Industrial lhe deu forma e o vírus evoluiu para uma nova estirpe – o instru-XIX. A epidemia prussiana virara trágica pandemia.

Entrados no século XX, numa América do Sul imersa no analfabetismo, um general (mais um militar) de nome Bolívar “importou” o Método Mútuo de Lancaster. E, embora animado das melhores intenções, Pedro II (mais um imperador) expôs o Brasil à mortífera pandemia.

Ao longo de duzentos anos, milhões de vidas jovens foram destruídas pela escola instrucionista, num holocausto educacional, que pedagogos escolanovistas denunciaram. Chamaram à escola da aula “invenção do diabo“, mas não lograram suster a peste. A pandemia chegou aos anos vinte deste século sob a forma de um “instru-19”, um vírus mais letal do que o seu congênere covid-19.

Urgia produzir uma vacina, que protegesse os jovens da pandemia instrucionista.

A produção da vacina dependia da capacidade de diálogo entre diferentes concepções e práticas educacionais. Porém, a herança autoritária prussiana obstava a que os desgovernantes da educação escutassem argumentos dissonantes dos seus.

Causava-me perturbação o fato de, em meados da pandemia de 2020, professores e desgovernantes da educação propusessem o “regresso às aulas”, voltando a expor jovens seres humanos ao assassino “instru-19”, nesse tempo enfeitado de projetinhos híbridos e outros paliativos do assassino modelo da instrução.

Na semana em que desvairados propunham o “regesso às aulas”, enquanto contemplava a Lua de Curitiba, o meu amigo e educador-poeta Valdo partilhava o seu sentir:

Semana triste, que nos desafia ainda mais a continuarmos e persistirmos na construção de outros amanhãs. Muitas forças estão a nos inspirar e a nos impulsionar, mesmo com ventos contrários e com as articulações de forças do atraso, que tudo fazem para dificultar ainda mais a caminhada emancipatória.

A esperança não é a última a morrer, ela não morre. Esperancemos.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha História (CXLX)

Ourique, 4 de julho de 2040

Dissestes que, na última cartinha, o vosso avô parecia pessimista. Então, retomo o assunto num tom, talvez, otimista.

Quando eu era jovem, os velhos professores avisavam:

Você é um lírico, um romântico, um utópico. Quando for mais velho, você mudará de ideias…

Saibam (dizia-se “saibai”, no modo imperativo de outros tempos…) que, ao longo de uma vida de quase noventa anos, sempre me consideraram como uma espécie de aprendiz de utopias. O certo é que partirei deste mundo tão utópico quanto pude ser. E tão ou mais utópico do que quando tinha vinte anos.

No período renascentista, utopia era quase sinónimo de protesto. Múltiplas utopias habitavam o reino da fantasia e da ficção científica. Shakespeare glosou-as na peça “The Tempest”. E no século XIX, as percursoras tentativas de Fourier e Owen visaram passar ao real o ideal de Morus ou de Campanela.

Importará reconhecer que, se Tomás Morus escreveu a sua “Utopia” baseado num opúsculo de Américo Vespuci, talvez seja necessário suliar a busca de novas utopias. Foi no sul que Vespuci encontrou um mundo onde “todas as coisas eram comuns”, onde “cada pessoa era dona de si própria”. Foi no sul que o navegador deparou com a concretização da utopia de não haver ricos nem pobres, uma sociedade mais humanizada do que a europeia.

A América viu concretizar-se a primeira experiência utópica renascentista. Em 1530, Vasco de Quiroga, juiz e bispo de Nova Espanha, fundou um colégio conservando as línguas autóctones e proibiu a escravidão dos índios. Depois, no hiato de cinco séculos, houve um desvio de rota…

Quando quis celebrar os feitos do Gama, Camões partiu dos relatos de Caminha e achou no sul a sua “Ilha dos Amores” – suliou o canto IX, ainda que o norteasse no estilo. O épico antecipou em quatro séculos a utopia de Agostinho da Silva, também ele navegante do sul. “Utopia” deixou de ser somente um vocábulo criado a partir do grego “lugar inexistente”. O mestre Agostinho, cultor de Vieira, demonstrou ser viável no Brasil a profecia de Tomás Morus. Aliás, tratar-se-ia apenas de recuperar o viver fraterno, igualitário, que caracterizava este território, antes da chegada dos europeus.

Embora, no século XXI, fosse discutível o modelo jesuítico de educação e questionáveis as observações do Padre Vieira sobre a escravatura, será preciso não esquecer que foram os jesuítas os fundadores da comunidade dos Sete Povos das Missões. Com heróis, como Sepé Tiaraju, organizaram as comunidades indígenas, protegendo-as da escravatura e da extinção.

A sanha assassina que se abateu sobre as Missões repetir-se-ia na destruição de Canudos. Estes exemplos, tão maltratados pelos historiadores que fizeram a história dos vencedores, constituíram dramáticos prenúncios do retorno da utopia às terras do sul, cujos povos inspiraram os falanstérios, os albigenses e cátaros, a Icária e a Nova Harmonia.

Na segunda metade do século XX, bem acompanhado por Anísio, Cecília, Eurípedes, Nilde, Darcy e outros educadores do sul, o português imigrado Agostinho da Silva traduziu obras de “utópicos”, para lançar sementes de renovação na educação. E eis a talvez otimista conclusão desta cartinha…

Nos anos vinte, havia escolas “utópicas” nos brasis da educação, lugares de ousadas transformações. No canto das almas sensíveis, que as habitavam, não cabiam trinados de medo, mas havia prudência. Porque, a par do canto das almas sensíveis e do seu amoroso fazer, o borogóvio – pássaro lastimável, por ser aparência de pássaro sério – insistia na imposição da regra do “sempre foi assim”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXLIX)

Albufeira, 3 de julho de 2040

Queridos netos,

Confesso que gostaria de ter nascido nesta década, neste vosso tempo, mas já se aproxima a hora de partir para junto da Mãe Luiza e sinto urgência de vos falar de uma época de transição entre a velha e a nova escola.

Há quarenta anos, em personificações de pássaros, o vosso avô tentava evitar a morte da memória de tempos de infâmia. Falava de gaivotas inventoras de outros modos de viver e de voar, que contrariavam os porquenãos (já te falei neles). Em todas as escolas as havia, ainda que discretas, aferrolhadas numa sala – não fosse o diabo tecê-las e algum pássaro porquenim espreitasse e fosse contar pecadilhos a um porquenão. Ano após ano, estas clandestinas gaivotas reinventavam a aprendizagem, num equilíbrio precário, quase a soçobrar, pois os porquenãos mantinham-se obstinados no impedir do fazer necessário, ou insistindo num fazer absurdo, sem saber explicar por que o faziam. Era assim, porque era assim… e pronto!

Foi Agostinho da Silva quem disse que a escola dos anos vinte deste século era um lugar para onde menino era levado e onde o entregavam a um especializado em dar aula, que não sabia fazer mais nada. Nesse tempo, quem sabia fazer uma nova educação fazia-a. Quem não sabia fazer ensinava. E quem não sabia ensinar fazia formação de professores.

Ressalvadas as raras excepções, a formação inicial dos professores acontecia em cursos de pedagogia bolorenta. A formação continuada era assegurada por escolas (ditas) de “aperfeiçoamento dos profissionais da educação”. Na universidade como nos “centros de formação”, o curso era modalidade hegemônica. Por vezes, tomavam a designação de círculos de estudo, oficina, ou outra qualquer modalidade, mas continuavam sendo cursos, exercícios de instrucionismo fóssil.

Os cursos eram ministrados por “deformadores” encartados, que reproduziam o modelo educacional do século XIX, acrescentando-lhe ensinos híbridos e outros paliativos. Até que, há uns vinte anos, alguns formadores tomaram consciência da situação e assumiram um compromisso ético com a formação. Isomorficamente, o formando deixou de ser considerado objeto de capacitação, para ser sujeito de aprendizagem em auto-formação. A teoria não antecedia a prática, era a dificuldade de ensinagem que impelia o educador para a pesquisa, para a busca da teoria que, juntando à sua competência prática (de dar aula, para acabar com as aulas), produzia práxis inovadoras. Mas, deixemos estas lucubrações mais ou menos teóricas e voltemos às metáforas das cartinhas do tempo em que viestes ao mundo…

Nesse novo cenário, os porquenãos perderam espaço e se remeteram à sua insignificância. O amor, sempre presente no canto das almas sensíveis, começava a comover as almas empedernidas dos abutres, dos papagaios, dos porquenãos e borogóvios, e os viria a redimir do pecado da ignorância e da maldade. Uma doce paciência ajudou os pássaros doentes a não terem medo da luz diurna, a não fechar os olhos à claridade, a amar os “inimigos”. Ajudou-os a convencer os porquenãos da inutilidade da sua azáfama de pássaros rotineiros.

Como já referi, a rotineira aula havia sido banida, quer a presencial, quer a virtual. Em fraternos encontros, no chão de prédio de escola e na Internet, na coexistência e complementaridade do presencial e do virtual, todas as comunidades eram “alcançadas”. No seio dos “círculos de vizinhança”, a todos se garantia o direito de aprender. Pacientemente, as “gaivotas” da estória gestavam uma nova educação.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXLVIII)

Fuzeta, 2 de julho de 2040

Quando iniciava as minhas conversas (a que chamavam “palestras”), eu perguntava:

O que quereis saber?

Quer houvesse cem, quer houvesse mil educadores no auditório, seguia-se um pesado silencio. Apenas uma vez, alguém ergueu o braço, para intervir.

Não é bem uma pergunta. É mais um comentário! – disse a professora.

Faça o favor! – convidei-a a fazer o comentário. O meu livro “Caminhos para a Inclusão” acabava de ser publicado. E o congresso era sobre… inclusão. Eis o comentário:

Eu acho que o senhor é a pessoa indicada para abrir um congresso sobre inclusão.

Confesso que senti alguma vaidade. Agradeci:

Muito obrigado, colega!

Ainda não concluí o comentário! – replicou – Eu acho que o senhor é a pessoa indicada para abrir um congresso sobre inclusão, porque o senhor é deficiente.

Gargalhada geral! E o resto do inusitado diálogo:

Por que acha que eu sou deficiente?

Porque eu já vi que o senhor é estrábico.

E por quê… deficiente? Deficientes são as mentalidades e os contextos. Quando tentei ensinar algo a um surdo, compreendi que, se houvesse ali um deficiente, seria eu, que não sabia a linguagem de sinais. Quando uma aluna com paralisia cerebral chegou à Ponte, compreendemos que a Ponte estava deficiente de uma rampa de acesso. Por que diz que eu sou deficiente?

Porque o senhor vê menos do que eu.

Então, a colega considera que o deficiente é aquele que vê de um só modo, que “vê menos” do que um “normal”?  

Exatamente! E eu até tenho um deficiente na minha sala de aula – respondeu.

Face à peremptória afirmação, contei-lhe um episódio. Eu estava num aeroporto, olhando um televisor, enquanto esperava para embarcar. Um daqueles seres humanos, que vivem sozinhos, que não veem outros seres, para quem os outros são paisagem, objetos transparentes, foi colocar-se entre mim e o aparelho de televisão. Perguntei à minha interlocutora:

O que faria a colega, nessa situação?

Eu mandaria a pessoa sair da minha frente, que tivesse respeito por mim.

A colega iria criar uma situação de conflito, certamente.

Claro! Mas a pessoa deveria entender que eu estava no meu direito…

Eu não precisei de chamar a atenção da pessoa.

Não? E… então?

Foi fácil. Fechei o olho direito e a TV “deslocou-se para a esquerda”, permitindo-me continuar a ver a tela. A senhora colega seria capaz de fazer isso?

Não!

Então, quem é o “deficiente”? Eu, que vejo de três maneiras, ou a senhora, que vê de um só modo? Quem “vê menos”?

Moral da estória: um ponto de vista é a vista a partir de um ponto… somos todos diferentes. O ser humano é único e irrepetível e deverá ser “incluído”, escolar e socialmente, algo impossível de concretização numa aula. Se, na sala de aula da minha interlocutora, havia algo “deficiente”, talvez fosse a prática deficiente da professora.

Mas, há professoras e… professoras. Por essa altura, recebi um e-mail, que dizia:

Se somos todos diferentes, por que tratá-los da mesma maneira? Com 25 dentro da sala, como posso chegar a todos, em 50min? E há quem diga, mais vale isso do que não ter trabalho. E que não devemos refilar.

Nos idos de vinte, acoitados em esconsos gabinetes, “superiores hierárquicos”, enfermos de corrupção intelectual e moral, impunham às escolas e aos professores práticas deficientes. E, impunemente, cometiam assédio moral. Essa professora fora ameaçada pelos seus “superiores”. Pensava desistir de ser a professora que sonhara ser:

Eu penso, que se calhar é melhor eu ter outro trabalho, pois estou a sentir que não faço o meu trabalho como o meu coração manda e não consigo viver com essa dor.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXLVII)

Cova da Piedade, 1 de julho de 2040

Foi um início de julho triste, de notícias desanimadoras. O Brasil perdera sessenta mil almas para a covid-19 e era epicentro da pandemia. Irresponsáveis declarações de políticos davam origem a uma flexibilização precoce do isolamento social, contribuindo para acelerar a contaminação. Irresponsáveis comunicados da administração educacional anunciavam o regresso à sala de aula.

Na contramão desses desvarios, educadores cônscios preparavam o regresso ao futuro da educação, trocando a ensinagem remota pela aprendizagem na proximidade física e virtual.

Vinte anos antes, o Rubem publicara “A Escola Com Que Sempre Sonhei”, um apelo à humanização do ato de educar: Quero uma escola que compreenda como os saberes são gerados e nascem. Em julho de 2020, houve quem colocasse essa intenção em ato, conspirando. Farei a memória desses dias.

Quinze anos antes, preparando o regresso ao futuro da educação anunciado pelo Rubem, pela Nise, pelo Anísio e outros mestres ilustres, os Românticos Conspiradores aprovaram uma “declaração de princípios”: Somos pessoas conscientes de que os modelos educacionais e as práticas educativas possuem decisivas condicionantes socioculturais. Este fato exige que, para a transformação da Educação, tenhamos de ultrapassar seu âmbito restrito, englobando as dimensões sociais, políticas e culturais.

Temos a convicção de que a educação atualmente praticada não contribui para que as gerações futuras tenham condição de superar os cruciais desafios postos para e pela humanidade. Mais do que isso, essa educação acaba por incentivar a formação de pessoas que tendem a reproduzir o modo de pensar, sentir, agir e viver, que produziram tais desafios. Para que os atuais paradigmas educacionais possam ser superados, é necessário estabelecer novas concepções, que apontem formas alternativas de pensar, estruturar e praticar a educação.

A carta de princípios dos RC fundamentaria a vital transformação da Educação, para que ela pudesse corresponder às necessidades das pessoas e da sociedade contemporânea. O primeiro dos princípios – “Educar-se para a Integralidade” – assim era definido: A educação deve contemplar a humanidade dos educadores e educandos em sua totalidade, sendo coerente com a indivisibilidade das dimensões biológica, mental e espiritual de cada pessoa. Como cada ser humano possui diferentes limites, possui também potencialidades que poderão ser desenvolvidas e expressas a partir das formações e transformações, que ocorrem durante toda a vida. Para isso a educação deve ser um processo intencional, contínuo e transformador, integral, e que repercuta durante toda a vida.

Entre 2005 e 2020, os RC se encontravam nos denominados “Encontros Nacionais de Românticos Conspiradores” (ENARC). Coerentes com o princípio enunciado, partilhavam práticas de chão de escola, anunciadoras de educação integral. Aprendiam a conviver na multidimensionalidade do ser. Na prática e conspirando, anteciparam em mais de dez anos o debate em torno da Base Nacional Curricular Comum. E, depois da aprovação desse espúrio documento, a conspiração virou projeto.

Nos dias 11 e 12 de julho do distante 2020, mais um ENARC aconteceria. Pela primeira vez, com um fraterno abraçar apenas virtual. Outros se seguiriam e sobre eles vos falarei. À distância de duas décadas, é com desprendimento que o faço, reverenciando, honrando a memória daqueles educadores que, num presente sombrio, construíram um luminoso futuro.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXLVI)

Amadora, 30 de junho de 2040

Não se creia que o dilema vivido pelo Filipe era um caso isolado, ou de origem recente. Já na antiguidade clássica, sábios se manifestavam a propósito: “Aquele a quem a palavra não educar, também o pau não educará” (Sócrates); “Não eduques as crianças nas várias disciplinas recorrendo à força, mas como se fosse um jogo, para que também possas observar melhor qual a disposição natural de cada um” (Platão). Mas, um jornal do século XIX, quase contemporâneo do nascimento da escola da aula, assim rezava:

“A câmara decretou a proibição absoluta dos castigos corporais, quando o regulamento do Governo os permite. O regulamento autoriza os mestres a aplicarem um pequeno castigo, paternalmente dado e sem rancor. O Governo com o seu regulamento dá os meios para se conseguirem os fins, pugna pelo bom carácter civil, moral, religioso e literário do ensino. A câmara, autorizando a anarquia com as suas teorias regulamentares, destrui o carácter do ensino. Ora o que sucede? O professor esfalfa-se para restabelecer a ordem e não o consegue, porque a onda de insubordinação cresce.

Era assim, no tempo em que as câmaras mandavam. E era assim, em 2020. Os desgovernantes da educação acreditavam que o adestramento definia a educação. Não sabiam que a educação é incompatível com uma organização autoritária da vida.

Nos anos vinte deste século, a escola da ensinagem mantinha rituais disciplinares dos anos vinte do século XIX. A indisciplina era naturalizada, jovens eram expulsos de uma escolas, que era concebida como formalidade social. Poucos a viam como incubadora de uma nova ordem social. As escolas erguiam e reforçavam muros, defendendo-se da comunidade. Promovia-se o reforço policial, escolas eram entregues à guarda de militares.

A obsessão uniformizadora e seletiva da escola vinha sendo questionada por “especialistas”. Porém, esses”especialistas” não faziam ideia alguma de como contribuir para a saída do caos. E induziam os políticos a acrescentar camadas de tinta nova em velhos palimpsestos disciplinares.

No final do mês de junho dese fatídico 2020, a sociedade brasileira sofria efeitos colaterais da escola da ensinagem. E reagia com vigilância e punição. Quase sessenta mil brasileiros haviam sucumbido à covi-19. Os europeus abriam as suas portas ao turismo, mas decidiam se manter fechados para turistas brasileiros. Mais de vinte mil soldados ajudavam no combate à pandemia. Além da descontaminação de rodoviárias, metrôs e hospitais, atuavam na distribuição de medicamentos, no deslocamento de pacientes e na montagem de hospitais de campanha. Mas outros militares também se preparavam para “atuar em outra frente, para indisciplina social”, acaso a propagação da doença descambasse para situações extremadas, impulsionadas pelo desemprego e pelo crescimento da pobreza.

Como vedes, queridos netos, a escola da aula continuava a reproduzir um modelo escolar e social de há dois séculos. E, há milénios, Pitágoras já nos havia dito que, educando as crianças, não seria preciso castigar os homens. A escola da ensinagem estava ancorada em propostas teóricas da filosofia do século XVII. Insistia em ensinar todos como se fossem um só, forçando ao isolamento social as crianças com idade superior a cinco anos.  Vigiava, punia e, em 2020, induzia à evasão escolar cerca de cinco milhões de alunos. Muitos se transformaram em “marginais” quando lhes foram negadas oportunidades por uma sociedade desigual, injusta.

Por mais estranha que vos possa parecer, era essa a situação… no tempo da velha escola.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXLV)

Trafaria, 29 de junho de 2040

Querida Alice,

Escolheste ser psicóloga, porque desejavas estudar a mente humana e ajudar a dissipar o medo e os problemas de relacionamento sentidos pelos humanos da década de vinte. Na psicologia comportamental estudaste a famosa “caixa de Skinner”. Nesse tempo, as escolas seguiam à risca a Teoria do Reforço, na crença de que o comportamento pode ser influenciado e determinado pela gestão de recompensas e punições a ele associadas. Bem cedo, o meu amigo Filipe tomou consciência dessa skinneriana armadilha:

Recordo-me do meu maior receio, o de não conseguir controlar a turma! Na faculdade, ensinaram-me que não podia dar confiança aos alunos, porque eles abusariam. Então, tentei ser empático. Não resultou. Eram ingratos. Abusavam da confiança.

Na sala dos professores, aprendi que se mantinha os alunos quietos marcando faltas disciplinares. Os meus colegas mais velhos foram bem claros: “Tens de os ter na linha, dar-lhes rédea curta!” Comecei a colocar alunos na rua, até as aulas começarem a tomar um rumo.

E resultou? – perguntei.

Não. De fato, tenho observado que, de uma maneira ou de outra, perdemos muito tempo de aula com a indisciplina. É cada vez pior!

 

Longe ia o tempo em que o pai era a autoridade na família e o professor era a autoridade na escola, devendo os jovens obedecer a ordens e estar atentos às lições. Nos idos de vinte, a indisciplina – herdeira do autoritarismo e da permissividade – ocupava o lugar do “respeitinho” de antigamente.

Apesar de reconhecer a complexidade do assunto, eu ousava apontar pistas de reflexão. Numa escola, onde trabalhei durante trinta anos, acolhíamos jovens expulsos de outras escolas, porque haviam maltratado ou posto professores de outras escolas em estado de coma… imaginai a que ponto chegava a violência!

Compreendemos que, onde não havia diálogo, havia coação, prepotência, violência simbólica e física, e as atitudes de titulares do poder público de então eram disso reflexo.

Nessa escola não nos confrontávamos com falta de autoridade. Colocámos uma pedagogia da pergunta no lugar antes ocupado pela da resposta, escutando, levando em consideração o que o outro nos dissesse. Porque nos apercebemos que não poderíamos resolver os problemas dos jovens sem resolver os problemas dos adultos – ninguém dá aquilo que não tem, ninguém transmite aquilo que não é – e de uma educação para a cidadania passámos a uma prática de educação na cidadania, no exercício de uma liberdade responsável.

Os estatutos não se confundiam – professor era professor; aluno era aluno. Mas, para conseguir recuperar a autoridade, seria necessário que o professor se conhecesse afetivamente e se reconhecesse no outro. A segurança gerada permitia ao professor ser senhor de si, elevar a sua auto-estima e beneficiar de hetero-estima. Mas, quem cuidava da melhoria da formação pessoal e social do professor? Quando aconteceria a ruptura com a cultura do “cada qual por si”, que infestava as escolas?

A psicologia do comportamento reconheceu efeitos indesejados da punição. Na terapia comportamental, a palavra “punição” se referia a procedimentos de fazer seguir ao mau comportamento uma consequência, visando diminuir a probabilidade de nova ocorrência. Mas, não era bem assim como se dizia. Na ausência da definição conjunta de regras de convivência, as ocorrências… ocorriam. E muitos dos considerados violentos continuavam a ser… violentados. Como diria o Brecht, “diz-se das águas de um rio que são violentas, mas nada se diz das margens que as comprimem”.

Por: José Pacheco

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