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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXCVIII)

Bom Retiro, 25 de outubro de 2043

Suspendi um improvável diálogo, para não alimentar animosidade. Nenhuma amizade deveria ser abalada por diferentes (ainda que estranhas) atitudes. E a atitude da professora de Chase era admirável, embora em quase nada contribuísse para operar mudança. O “exemplo” dessa professora, como o de milhares de professores, iria morrer com elas. 

A professora de Chase descrevera uma prática. Uma virtude pouco comum. A dos docentes não escrevia, não registrava prodigiosos exercícios didáticos.. Um vasto património era ignorado, porque não saía do emparedamento em sala de aula. 

Aqueles que tinham conhecimento de “novidades” visitavam-nas e usavam-nas para enfeitar teses de doutoramento. Teses que dormitavam nos armários das universidades, até que mais um candidato a doutor as “acordasse” e as citasse, talvez na intenção de fazer a “quadratura do círculo” da educação.

Distraídos andariam aqueles que, nos idos de vinte e três, tomaram como “novidade” aquilo que em Chase se fazia. Ficai sabendo que, muito perto do local da tragédia de que vos falei nas cartinhas anteriores, em 1905 (lestes bem: mais de cem anos antes da “novidade”), Alessandro Cerchiai questionara a existência de sala de aula.

Mais de um século não fora tempo suficiente para dar corpo aos seus ideais, que eram os de Zola, de Louise Michel e os princípios de Francisco Ferrer. O Mestre catalão seria vilmente executado no morro de Montjuic, os seus desígnios frustrados por sutis modos de impedir que a humanização da escola acontecesse. 

A Escola Germinal, que, em 1902, fundou no bairro do Bom Retiro, pouco mais durou do que a de Tolstói8, que o czar da Rússia mandou fechar. O sonho de uma escola elementar racionalista, para ambos os sexos, ingloriamente foi encerrada em 1904. 

Apesar de veres malogrado o seu intento, foi precursor dos precursores da Escola Nova. Hoje, apenas empresta o seu nome a uma rua de São Paulo. Os seus moradores (e a maioria dos professores) nem sequer sabem quem foi e o que fez esse Alessandro. Depois de um breve inquérito de rua, apenas um transeunte ensaiou resposta: “Alessandro? Isso é nome de jogador de futebol, não é?”. 

Na Germinal de 1902, os pais não apenas participavam com uma pequena mensalidade como intervinham na arrecadação de fundos e, de algum modo, na gestão do projeto. Decorrido mais de um século, os teóricos continuam a produzir teses sobre a relação escola-família, mas as famílias continuam marginais à vida nas escolas e são frágeis as estruturas de participação. 

Em novembro de 1904, lançava um derradeiro apelo nas páginas dos jornais:

“Pensai no futuro de vossos filhos!”. 

Reafirmava as virtudes dos métodos aplicados na sua escola. Mas, ao que parece, a população do Bom Retiro não se preocupava com a educação dos seus filhos. Nem parecia que se importasse, quando, no século XXI, os submetiam à nefasta influência de práticas sociais denunciadas ao longo de um século pródigo em práticas alternativas. 

Existia um pacto de silêncio em torno de iniciativas como o Círculo Educativo Libertário Germinal, de São Paulo, a Universidade Popular de Ensino Livre, do Rio de Janeiro, as Escolas Modernas de São Paulo e de Bauru, todas da primeira década do século XX. As faculdades de educação não informavam os futuros professores de Porto Alegre que, em 1906, havia por lá uma escola com o nome de Elisée Reclus. E quem ouviu falar da Escola Germinal, do Ceará, da Escola Social, de Campinas, da Escola Operária, de Vila? 

Triste realidade a da ignorância de um passado feito de extraordinárias (e perecíveis) iniciativas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXCVII)

Morro do Estado, 24 de outubro de 2043

Por alguns dias do outubro de há vinte anos, mantive contato epistolar com alguém que eu muito estimava, comentando e formulando perguntas jamais respondidas. 

Dizia ao meu querido amigo, que com ele concordava – o depoimento de Chase era extraordinário –, mas discordando do seu entusiasmo. 

Parece que a velhice nos devolve alguma serenidade. Serenamente, pedia que me fossem dadas razões para a manutenção de um sistema obsoleto e iníquo, aquele que tinha por dispositivo central a sala de aula de… Chase. Já estava saturado de paliativos assimilados pelo “sistema”, digeridos e servidos como se de inovação se tratasse. 

À distância de duas décadas, já consigo comentar sem quase deixar transparecer a irritação, apenas com resquícios de indignação. Naquele tempo, eu manifestava perplexidade perante o obsceno silêncio dos meus companheiros das ciências da educação. Não conseguia digerir omissões, discurso de acariciamento do ego dos professores, nem processos de naturalização – a educação familiar, a educação social e a escolar eram corresponsáveis pelo caos. 

Por inverosímil que vos possa parecer, queridos netos, as instâncias de poder eram surdas a argumentos de natureza científica. E a escola da aula reproduzia um modelo social gerador de exclusão, “naturais” solidões, o aumento dos casos de automutilação e o crescimento exponencial do suicídio de jovens. 

Pela sua natureza, a escola da sala de aula contribuía para agudizar os efeitos de uma globalização neoliberal, que remetia o ser humano para bolhas sociais feitas de ostentação, miséria e solidão. E eu não conseguia entender a exaltação do meu amigo e o porquê dos encómios. 

Meu Deus! Esta mulher brilhante assistiu Columbine sabendo que TODA VIOLÊNCIA COMEÇA COM DESCONEXÃO. Toda a violência exterior começa como solidão interior. Ela viu aquela tragédia SABENDO que as crianças que não estão a ser notadas acabarão por recorrer a serem notadas por qualquer meio necessário.

E o que esta matemática aprendeu, ao utilizar este sistema, é algo que ela realmente já sabia que tudo – até o amor, até mesmo o pertencimento – tem um padrão. E ela encontra esses padrões através dessas listas – ela quebra os códigos de desconexão. E, então, ela sente crianças solitárias e a ajuda que eles precisam. É matemática para ela. Tudo é amor – até matemática. Incrível!

O professor de Chase aposenta-se este ano – depois de décadas a salvar vidas. Que maneira de passar uma vida: procurando padrões de amor e solidão. A intervir todos os dias e a alterar a trajetória do nosso mundo. Vocês são os detetives de desconexão e a ÚNICA esperança que temos para um mundo melhor. 

O que fazes nessas salas de aula, quando ninguém está a ver, é a nossa melhor esperança (…) a esperança de salvar mais crianças. O que a professora de Chase está a fazer, quando se senta na sua sala vazia a estudar aquelas listas escritas com mãos tremidas, é SALVAR VIDAS. Estou convencido disso. Ela está salvando vidas.”

Pura ilusão! Talvez essa professora conseguisse salvar vidas ao seu alcance. Porém, ao não questionar a origem das violências, contrariava aquilo que, nos idos de vinte, a minha amiga Helena dissera:

“Precisamos de uma estrutura que garanta a interação pessoal educador-estudante, a experiência coletiva da construção do bem comum, do diálogo, da convivência, do cuidado com o outro, da diversidade. 

Se os prédios e a velha estrutura chamada enturmação não servem para isso, utilizemos todos os recursos disponíveis, inclusive os tecnológicos, que, agora, os professores conhecem”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXCVI)

Ipê, 23 de outubro de 2043

Pela grande amizade que nutria por um bom amigo, eu hesitava entre agir como “Advogado do Diabo” (a Vovó Ludi não permitia que o fosse), ou ser o Grilinho do Pinóquio. Fosse como fosse, não me omitia, não me quedava neutral face ao teor daquilo que suscitou um “Uau!” desse amigo:

“A professora de Chase está à procura de crianças solitárias. Ela está à procura de crianças que têm dificuldades para se conectar com outras crianças. Ela está a identificar os pequenos que estão a cair nas fendas da vida social da turma. Ela está descobrindo que dons estão passando despercebidos pelos seus pares. E ela está a identificar quem está a sofrer bullying e quem está a fazer o bullying.”

Cadê a novidade? Porquê um “Uau!”, se todas as escolas deveriam ser espaços produtores de culturas singulares, mas também espaços de múltiplas interações, cooperação, partilha, comunicação, algo impossível em sala de aula. 

Nos idos de vinte as escolas eram, quase sempre, espaços de solidão. E a solidão dos professores era da mesma natureza da solidão dos alunos. Só os “utópicos” ousavam criar solidários laços. Já o dissera nas “Cartas para a Alice”:

“Nos idos de vinte, a solidão era, muitas vezes, o destino de pássaros a quem calhava por sina o conhecimento e a bondade. E poder-se-ia chamar instintivo ao ato paciente e fraterno de juntar um galho a outro galho, até se completar um ninho. Eu diria ser mais um ato religioso – Que mania a dos humanos seres a de considerar não ser da natureza dos pássaros o re-ligare!” Continuemos a leitura do adorado textinho:

“É como tirar um raio-X de uma sala de aula para ver debaixo da superfície das coisas e dentro dos corações dos alunos. É como minerar por ouro – sendo o ouro aqueles pequenos que precisam de uma pequena ajuda – que precisam de adultos para intervir (…) como participar de um grupo ou como partilhar os seus dons com outros. E é um dissuasor do bullying porque todos os professores sabem que o bullying geralmente acontece fora do seu olho – e que muitas vezes as crianças que sofrem bullying são demasiado intimidadas para partilhar.”

Que adiantava “tirar um raio-X de uma sala de aula”, se a professora insistia em, solitariamente, permanecer em sala de aula, espaço e tempo de produção de “bournout”? 

Em 1994, um jovem de 17 anos se matou dentro de seu Ford Mustang amarelo. Esse adolescente cometeu suicídio por não saber pedir ajuda. Durante o enterro, os pais distribuíram cartões com fitas amarelas para todos os presentes, onde estava escrita a frase “Se você está pensando em suicídio, entregue este cartão a alguém e peça ajuda!”. 

O jovem suicida estava sozinho, tal como a criança, de que vos falei em outra cartinha e que se suicidou com veneno de escaravelho. Face a essa tragédia, na Ponte, muito antes da redação do textinho, que venho citando, procuramos identificar os motivos pelos quais uma criança pudesse pôr fim à vida. Descobrimos que as escolas eram arquipélagos de solidões.

Urgia eliminar insularidades, para salvar vidas. Criamos dispositivos como o “Tutor”, a “Caixa dos Segredos” e o “Preciso de Ajuda”, que abreviaram e extinguiram situações de discreto sofrimento. Como vos disse, ao instituirmos canais de comunicação, alteramos o grito do Pedro, às margens do Ipiranga, para… “Interdependência, ou Morte”.

Aquela adorável professora dissera que cumpria o ritual de “toda sexta-feira à tarde, desde Columbine”. Desde Columbine, foram inúmeras as invasões de escolas, assassinatos de professores e alunos. A carnificina continuava, nos idos de vinte e três – vinte e quatro anos após Columbine!

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXCV)

Sapopemba, 22 de outubro de 2043

Nos jornais, na televisão, na Internet, repercutia a infausta notícia: 

“Ataque em escola de Sapopemba deixa aluna morta. Outras duas estudantes foram baleadas.”

O jovem agressor só feriu meninas. Por acaso? O seu advogado disse que “o adolescente abriu fogo, porque sofria homofobia. Investigações indicam que o adolescente era alvo de agressões de outros alunos e que se usou arma do pai, para se vingar

“Uma câmera de segurança registrou o momento em que ele entra em uma sala cheia de alunos e atira. Giovanna Bezerra, de 17 morreu com um tiro na cabeça. O agressor se entregou à polícia.

Jéssica Mattos, mãe de uma estudante da escola, contou que adolescente era constantemente alvo de humilhações e agressões: “Ele era alvo de bullying.”. Um vídeo gravado dentro de uma sala de aula mostra o adolescente sendo agredido por duas meninas. Ele leva vários tapas no rosto e puxões de cabelo e revida as agressões, puxando as meninas pelos cabelos e as empurrando. 

O secretário da Educação disse que o atirador não era identificado pela escola como agressor e não foi atendido por psicólogas. A escola começou a ser atendida em agosto por uma psicóloga, mas o aluno atirador não chegou a ser encaminhado para atendimento.

O aluno contou ainda que não tinha intenção de atirar na aluna que morreu, já que ela não participava das agressões contra ele. O advogado informou também que em abril a mãe do atirador registrou boletim de ocorrência sobre as agressões sofridas. Mas, a única coisa que a escola fez foi dizer para a mãe trocar [o filho] de escola”, disse o advogado.

O atirador estava em um grupo do Discord, plataforma de mensagens popular entre jovens e jogadores de videogames que está envolvida em várias denúncias contra grupos que promovem conteúdo de ódio e incitação a assassinatos.

O governador de São Paulo ressaltou que a unidade em Sapopemba contava com ronda escolar. “É um momento de a gente fazer uma profunda reflexão sobre a efetividade daquilo que a gente tem colocado em prática desde a ocorrência em março, na Vila Sônia”. 

Ele e o secretário de Educação disseram que pretendem contratar mais psicólogos para atendimentos na rede de ensino. Também disse que 175 tentativas de ataques foram evitadas com sucesso pela polícia desde março.”

“Cruzei” a trágica notícia com excertos do textinho recebido do amigo Celso:

“Todas as sextas-feiras à tarde, a professora de Chase pede aos seus alunos que tirem um pedaço de papel e escrevam os nomes de quatro crianças com as quais gostariam de se sentar na semana seguinte (…) também pede aos estudantes que nomeiem um estudante, que acreditem ter sido um cidadão excecional de sala de aula naquela semana.”

Perguntei e esperei respostas: 

Porquê só à sexta-feira e só para “quatro crianças”?

Para “se sentar”?

O que é um “cidadão excecional de sala de aula”?

Queridos netos, talvez não saibais, mas toda a prática tinha por retaguarda uma teoria (ou várias). Aquela professora agia amorosamente e por intuição, talvez sem saber que praticava arremedos de sociometria, uma ferramenta analítica para estudo de interações entre grupos – foram os estudos de Moreno sobre a relação entre estruturas sociais e bem-estar psicológico a origem remota das ciências das redes sociais. 

Sem se libertar do gueto sala de aula, essa maravilhosa professora, procurava alunos solitários, quem “nunca era notado o suficiente para ser nomeado”. Solitária, contribuía para prolongar obsoletas práticas. Ingenuamente, praticava técnicas paliativas de um sistema de ensino, origem próxima de muitas tragédias.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXCIV)

São Paulo, 21 de outubro de 2043

Um vídeo “viralizava” nas redes sociais de outubro de há vinte anos. Nele, um jovenzinho armado de pistola disparava contra a cabeça de uma menina, matando-a. Outros jovens corriam, buscando refúgio. A trágica situação já se tornara rotina de voyeurs. E, por que estarei eu, queridos netos, a evocar tão infausto acontecimento?

A resposta é simples. Há vinte anos, atribuía-se aos autores dos atentados a origem de tresloucados hábitos. Tinham sido objeto de bullying e se vingavam. Sofriam de perturbações mentais. Padeciam de “psicoticismo”. Revoltavam-se por terem reprovado…

Um senhor chamado Eysenck (norte-americano, como é bom de ver) concebeu uma teoria baseada na fisiologia e na genética. Embora fosse behaviorista, afirmava que as diferenças de personalidade resultavam de uma herança genética. Eysenck acreditava que altos níveis de “psicoticismo” – padrão de personalidade tipificado por agressividade e hostilidade interpessoal – estavam ligados ao aumento de psicose e esquizofrenia. 

Outras teorias “explicavam“ o insucesso escolar: falta de acompanhamento da família, problemas cognitivos do aluno, falta de livros e de condições de estudo em casa, pobreza extrema, parentes analfabetos… E nada se dizia de razões ligadas ao socioinstitucional. 

Isso mesmo: talvez a origem do insucesso escolar e de múltiplas tragédias estivesse nas práticas impostas pelo sistema de ensino. Talvez encontrássemos no trabalho de sala de aula prussiana a causa última. Infelizmente, havia professores cujas “boas práticas” contribuíam para criar uma “cortina de fumaça”, que não deixava ver quanta violência simbólica cabia nos prédios feitos de salas de aula e a que, indevidamente, chamavam “escola”.

Há setenta anos, eu lera Bordieu, Passeron, Giroux e outros sociólogos críticos do sistema. E, já há mais de quarenta anos, eu já escutava o Perrenoud dizer que o fracasso escolar se devia a práticas de professores que não reconheciam as suas dificuldades de ensinagem, encarando o insucesso dos alunos “como a simples consequência de dificuldades de aprendizagem e como a expressão de uma falta ‘objetiva’ de conhecimentos e de competências” (sic). 

Para além de vovô babado, o meu bom amigo Celso prendava-nos com uma generosidade sem limites. Nas redes sociais, oferecia-nos reflexões, estórias exemplares, como aquela que nos reencaminhou, no outubro de há vinte anos, acompanhado de um “Uau! Incrível!”. Lede.  

“Este é um artigo que precisa de ser repetido: Todas as sextas-feiras à tarde, a professora de Chase pede aos seus alunos que tirem um pedaço de papel e escrevam os nomes de quatro crianças com as quais gostariam de se sentar na semana seguinte. 

As crianças sabem que esses pedidos podem ou não ser honrados. Ela também pede aos estudantes que nomeiem um estudante, que acreditem ter sido um cidadão excecional de sala de aula naquela semana. Todos os boletins de voto são submetidos a ela em particular.

E todas as sextas-feiras à tarde, depois de os alunos irem para casa, a professora de Chase tira aqueles pedaços de papel, coloca-os à frente dela e estuda-os. Ela procura padrões.”

Comentei o “post” do meu amigo – os brasileiros amavam anglicanismos; não por acaso, Chase era um termo estadunidense e um nome de mochila escolar… –, esperançoso de que o meu amigo acolhesse o comentário como respeitoso exercício dialético. 

Na cartinha de amanhã, vos contarei o sucedido. Mais do que uma proposta de debate, o vosso avô pretendia que acontecesse diálogo fundamentado e fraterno entre dois “avôs babados”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXCIII)

Ouro Preto, 20 de outubro de 2043

Mais uma vez por terras de Minas, ao encontro de educadores com quem vale a pena dialogar. Naquele outubro, conheceria uma secretária de educação que se preocupava, não só com o que os seus professores detinham como conhecimento técnico, mas, sobretudo, com a pessoa do professor.

Naquele tempo, o modismo era a formação dos professores no âmbito sócio emocional. Parecia haver grande preocupação com o sócio emocional dos alunos. Mas, quem se preocupava com o sócio emocional dos professores?

“Ele entrou e logo começou a atirar. Era um menino que tinha sofrido bullying (a gente corria pelo corredor e atá pisava uma menina que já estava morta…” – neste dia de há vinte anos, num áudio recebido pelo WhatsApp , numa voz trémula, chorando, uma professora descrevia o modo como se salvara. Já se tornara rotina a  dramática situação por que passara.

A Jaqueline partilhou uma frase do amigo Ailton. E o Valentim comentou:

“Cada vez mais, o espaço da Educação nos processos educativos é restringido de “experiências mágicas de Existir”, que são ações humanas, relações humanas, afetivas e amorosas. Cada vez mais, os conteúdos curriculares não param de chegar nas universidades. Cada vez de forma mais intensa chega um conteúdo “novo” batendo a porta das universidades e todos esses “novos” conteúdos são títulos de Doutores, que carregam na moldura uma identidade de um Sapiens domesticado. 

Precisamos dar um basta nos conteúdos, precisamos urgentemente compreender que educar é um ato humanizador. Conteúdos essenciais são aqueles que nos auxiliam a desfrutar dessa incrível e única experiência chamada vida.”

Quando, nos idos de vinte e três, eu dizia estar cansado e pretender descansar de tantas lutas travadas, apenas havia desistido de tentar melhorar um sistema que não tinha remédio. Permaneci na faina de cuidar do ser humano professor, para que ele, devidamente, cuidasse dos seus alunos. Pretendia contribuir (em equipe), para a humanização de seres humanos.

Já entre o final do século XIX e o início do século XX, houve quem quisesse fazer da Pedagogia, para além de Arte, uma ciência. Mas, tentativas de humanização se saldaram por “adaptações” mais ou menos conformistas aos ditames do “sistema”.

Os montessorianos permaneceram cativos da sala de aula, juntando aos materiais concebidos pela Maria, o seu agudo olhar: “segue a criança”. Mais de cem anos após se terem instalado numa fábrica de tabaco, os steinerianos tentavam a seu modo, humanizar o ato de educar. Freinetianos organizaram-se e criaram o “Movimento da Escola Moderna”. Porém, as promessas de uma “Escola Nova” definhavam. 

No dealbar do século XXI, embora a Imprensa Freinet, os Materiais Montessori e a Euritmia de Steiner tivessem operado transformações, os seguidores de Steiner, Montessori e Freinet permaneciam solitários em salas de aulas. E, à semelhança daqueles que nem sequer haviam adotado preceitos escolanovistas, a maioria dos professores continuava dando aula, inconscientemente (quero crer!), desumanizando.

Já vos confessei a minha angústia de dador de aula. Quando eu as dava, não era eu quem ali estava. Era um clown, que cumpria um guião (o chamado “planejamento”), que eu havia escrito no dia anterior. Não me sentia autêntico, mas um ator. Não estava presente, eu atuava perante um frontal anônimo separado por um vazio constitutivo. Tentava transmitir informação do melhor modo que o sabia fazer, tal como qualquer dador de aula. Mas, não havia comunicação. Não chegava a cada um dos seres humanos a quem me dirigia. Não comunicava.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXCII)

Fortaleza, 19 de outubro de 2043

E lá voltei a Fortaleza, para conversar com educadores e rever amigos. Também voltei para deixar um convite, pois senti que a secretária Dalila partilhava as mesmas preocupações da minha amiga Regina e de outros educadores com quem eu havia trabalhado, dez anos antes.

Isso mesmo! Passara uma década sobre o meu voluntariado no Kerigma. Também, sobre uma intensa participação nas conferências preparatórias do PNE e sobre a elaboração do “Terceiro Manifesto da Educação”. 

Esse documento fora aprovado na primeira C.O.N.A.N.E. – Conferência Nacional de Alternativas para uma Nova Educação – e acolhido pelo Ministro da Educação, na pessoa da minha amiga Jaqueline Moll.

A Jaqueline fora subscritora do “Manifesto para uma Educação Democrática e Humanizadora”, de 2021. Eu acompanhara o excelente trabalho que ela havia desenvolvido no “Mais Educação”. E me orgulhava por estar ao lado dela e de outros admiráveis mestres, na assinatura desse manifesto, que era um convite à participação:

“Nós, professores e pesquisadores envolvidos em projetos e ações para uma educação democrática e humanizadora, queremos expressar aqui nossas preocupações em relação ao trabalho dos educadores em face do que vem acontecendo, neste momento, em nosso país, na política, na economia e, principalmente, na saúde e na educação.”

A elaboração do documento fora, também, um freiriano gesto de denúncia e anúncio, um ato de coragem:

“Em nome dos valores que compartilhamos em relação à vida, à saúde, à educação, ao ambiente, queremos expressar neste Manifesto nosso profundo desacordo com o que vem acontecendo em nosso país no campo político, econômico, cultural, sanitário e educacional e, ao mesmo tempo, chamar a atenção dos educadores brasileiros sobre os retrocessos atuais, principalmente nas áreas da educação e da escola.”

O manifesto denunciava “o desconhecimento por parte das autoridades do governo e dos políticos do Congresso Nacional do Plano Nacional de Educação 2014-2024”. Uma avaliação realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais revelara uma realidade preocupante. O Brasil apenas cumprira uma das vinte metas previstas para serem atingidas, entre 2014 e 2024. As restantes estavam longe de serem alcançadas ou apenas parcialmente tinham sido cumpridas.

A única meta integralmente atingida no PNE era aquela que se referia à formação de professores do ensino superior. E dessa formação nem é bom falar! O vosso avô teria muito que dizer sobre a deformação que, no “superior” se fazia. Se quiserdes, talvez o faça, mas em outra cartinha.

Ao cabo de vinte anos, o artigo 15º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional continuava sem efeitos práticos, situação agravada pelo fato de a administração educacional não ter cumprido a meta 19 no prazo estabelecido pelo Plano Nacional de Educação. 

Isso mesmo: o poder público não cumpria leis que promulgava. Gestores escolares continuavam a assumir cargos por indicação de políticos e o “dever de obediência hierárquica” negava às escolas o direito à autonomia pedagógica, administrativa e financeira. Só quem não conhecesse a realidade do chão das escolas poderia crer que nelas fossem cumpridos os artigos 12º e 13º da LDBEN.

Um plano decenal havia fracassado. O próximo PNE poderia vir a ter o mesmo inglório destino. A corrupção, os conluios políticos, as práticas populistas dos candidatos do pleito eleitoral de 2024, poderiam deitar a perder mais uma oportunidade de mudança.

Até que o senhor ministro da educação decidiu deitar faladura.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXCI)

Cabrália, 18 de outubro de 2043

Nos idos de vinte, era frequente o anúncio de “novidades” requentadas e de velhas propostas embrulhadas em discursos novos. Eram publicadas sibilinas “recomendações” extraídas de compêndios de meados do século XX, descrevendo inexistentes práticas. Por exemplo:

“Adotar a conceção de desenvolvimento integral no Ensino Médio implica estimular e fortalecer a autonomia do(a) estudante (…) para que possa se engajar nos estudos a partir dos seus interesses e necessidades, para construir e atuar pelo seu projeto de vida e agir coletivamente no desenvolvimento de sua comunidade. A escola deve adotar diferentes estratégias, considerando que as pessoas aprendem de formas e em ritmos diferentes, sendo diversos seus conhecimentos prévios, habilidades e inclinações.”

Cadê o “desenvolvimento da comunidade” e as “diferentes estratégias”?

O farisaísmo pedagógico não interrogava a existência de um “ensino médio”, não sabia explicar a sua existência, mas acrescentava a esses pedaços de senso comum misturados com pedagogia bolorenta, expressões na moda, como “projeto de vida”. 

Como se fosse possível desenvolver um currículo da subjetividade, contemplar “ritmos diferentes”, “interesses e necessidades” de cada aluno, em sala de aula! Como se fosse possível o “fortalecimento da autonomia”, em sala de aula!  Com desfaçatez, se repetia à exaustão a cantilena do “estudante como o ator ou a atriz principal do processo pedagógico, estimulando o seu protagonismo”.

Em finais de 2023, era por demais evidente a necessidade de transitar de um obsoleto sistema de ensino para um novo sistema de aprendizagem, do autoritarismo prussiano passar à democratização, substituir um modelo imoral e corrupto por uma construção social de aprendizagem humanizada, ética. Há muito tempo já, o Mestre Pedro denunciava as péssimas condições da escola instrucionista. Dizia não existir um projeto de mudança satisfatório, parecendo que a escola que tínhamos era um modelo intocável. 

Num célebre texto com o título “EDUCAÇÃO À DERIVA: instrucionismo como patrimônio nacional”, escreveu:

“O sistema educacional mostra aberrações inomináveis em termos de qualidade da aprendizagem, que persistem arraigadas, não comparecendo, contudo, gesto minimamente adequado de mudança. Em especial no ensino médio, o aprendizado de matemática é insignificante: foi de 9.1% em 2017. No Enem, apenas 53 estudantes obtiveram nota máxima em redação, dentre 4 milhões de participantes; quase ninguém.”

Alheia aos trágicos indicadores e à avisada voz do Mestre Pedro, a administração educacional tentava colmatar defeitos, injetando nas escolas “ensinos híbridos” e outras inutilidades, desperdiçando recursos e vidas. 

Mas as ideias arejadas são peregrinas, permitem que a humanidade refunda o seu complexo percurso. Houve professores que ousaram interrogar-se e interrogar: 

“Por que há ensino médio? Por que há salas de aula? Por que há…?” 

No “Reino do Sem Sentido”, a intenção válida não era a tentar melhorar práticas instrucionistas, nem de tentar melhorar o IDEB. A mudança ia muito além de dados fornecidos por uma desumana escala de classificação. 

A partir do que éramos, do que sabíamos fazer e do que fazíamos, urgia afirmar a possibilidade de conceber uma construção social a partir das pessoas que habitavam um mesmo território físico e/ou virtual, que partilhavam valores e uma mesma visão de sociedade, produzindo e partilhando e conhecimento, operando transformação social, melhorando a qualidade da vida em comum.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXC)

Eunápolis, 17 de outubro de 2043

Notícias de guerra chegavam em catadupa, notícias de sofrimento e morte, lá para os lados do Oriente. Sofrimento e morte, cá dentro. Enquanto caminhávamos, fomos escutando queixas e súplicas:

“Ó dotor, me dá sete reais para mim comprar arroz, p’ra mim comer.”

“Tio, a polícia matou o meu pai! Tio, a polícia matou…!”

Debaixo de um velho e carcomido toldo, saiu uma criança portando mochila. Caminhando sob um sol abrasador, diz-nos que “vai p’ra escola”. 

Irá passar algumas horas a copiar o que a professora escrever no quadro negro. Nada aprenderá, mas terá direito a uma refeição. Ao fim de semana, nem isso. 

“É fome de cachorro vadio” – diz uma transeunte – “A gente, aqui, num tem que comer”. 

“A Janete é que tem sorte! É faxineira. Faz oito horas em duas casas. Leva quatro horas para ir e vir, mas tem com que dar de comer aos filhos.”

Uma assistente social segreda:

“Só ali, são sete filhos carregados de piolhos, com feridas por todo o corpo. A mais velha foi mãe aos treze. Alguns nem vão à escola. Se dermos conhecimento da situação ao Conselho Tutelar, não tarda aí a polícia. E as crianças correm o risco de acabar num asilo de menores.

De um “manifesto” publicado em 2021 extraí este excerto:

“Nós, professores envolvidos em projetos e ações para uma educação democrática e humanizadora, queremos expressar aqui nossas preocupações em relação ao trabalho dos educadores em face do que vem acontecendo, neste momento, em nosso país, na política, na economia e, principalmente, na saúde e na educação.”

Como explicar que os autores desse “manifesto” se mantivessem ancorados em práticas instrucionistas? Já dissera o amigo Nóvoa que a sofisticação do discurso se mantinha alheia a miséria das práticas. Quando esperava que os acadêmicos, se manifestassem, teoricistas apresentavam “recomendações”, há muito tempo, consensuais, mas de inviável concretização em sala de aula:

Criar espaços e estratégias para estimular que estudantes se ajudem mutuamente no aprendizado bem como aprendam a aprender também sem ajuda; valorizar as diferenças étnicas, sociais e culturais e os conhecimentos próprios, planejando os saberes a tratar, orientados pelas necessidades dos educandos; incluir no tempo e currículo escolar práticas que possam apoiar estudantes a “aprender a aprender” e a estudar individual e coletivamente sem mediação de docentes; promover a reorganização do tempo e do espaço escolar tradicional em função de uma proposta pedagógica com foco nas demandas das juventudes, buscando estratégias que fortaleçam o trabalho coletivo e a aprendizagem prática, conectando as propostas curriculares às necessidades de aprendizagem e projetos de interesse dos estudantes; garantir e promover opções variadas de percursos formativos, ao contrário das convencionais ofertas homogêneas.”

O freiriano apelo à coerência era traído pelos fariseus da pedagogia, que se convertiam em obstáculos à humanização da aprendizagem e da educação. E o vosso avô tornara-se um incômodo por questionar o dever de obediência hierárquica e por afirmar que o aquilo que teoricistas chamavam “educação democrática e inovadora” jamais seria possível no contexto de escolas de sala de aula. 

Quem teria educado os combatentes palestinianos? Que educação teriam recebido os combatentes israelitas? Por que se educava bonsais humanos? Para quando a humanização da Educação? Até quando vigoraria um sistema produtor de seres (de)humanos violentos, racistas, misóginos, corruptos?

Até quando permaneceríamos sozinhos em sala de aula?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXIX)

Trancoso, 16 de outubro de 2043

No Ano da Graça de 2023, no dia de aniversário da Vovó Ludi, fomos até à periferia da cidade grande, conhecer as “Formiguinhas”. Voltaríamos no ano seguinte, para colher ensinamento junto de crianças com brilho nos olhos e educadores com ternura a rodos. 

Al, como em outros lugares onde se semeia Paz, as “formiguinhas” Ana, Bete, Fabi, Juju, Caina e um punhado de dedicadas voluntárias vão fazendo possíveis e impossíveis, para mitigar o sofrimento dessa gente brasileira, como nós, que nos faziam lembrar aquela música do Chico:

“Tem certos dias em que eu penso em minha gente / E sinto assim todo o meu peito se apertar / E aí me dá uma tristeza no meu peito / Feito um despeito de eu não ter como lutar / E eu que não creio, peço a Deus por minha gente / É gente humilde, que vontade de chorar.”

No outubro de dois mil e vinte e três, a guerra na Ucrânia continuava, mas saíra de cena. A televisão e a Internet transmitiam imagens do bombardeamento de um hospital. Centenas de seres humanos pereceram nessa tragédia. Consumava-se a montessoriana profecia: a educação que estimula uma competitividade é origem de todos os conflitos, dos familiares aos sociais, de todas as guerras.

Só nos primeiros dias de conflito entre israelitas e palestinianos, mais de mil crianças pereceram vítimas de bombardeamentos, inclusive, de um hospital. A insanidade crescia. De ambos os lados, surgiam ameaças de maior destruição. A escalada de violência era alimentada por superpotências bélicas, principais produtoras de instrumentos de morte. O presidente russo ameaçava com mísseis hipersônicos, se porta-aviões fossem enviados pelos Estados Unidos a Israel. 

Nesse dramático vinte e três, assistimos à gênese de uma educação geradora de Paz. 

Se eu sentia a preocupação da Vovó Ludi e a sua preocupação com o mundo que seria o da Analu, também pressentia que, entre a Ucrânia e a Palestina, entre Trancoso e São Luiz, se construía e reconstruia Paz, ao jeito do Mito de Sísifo. 

Anónimos construtores da Paz (vulgarmente conhecidos por “educadores”) faziam “trabalho de formiguinha”. Alguns ficariam para sempre anônimos, não fora o reconhecimento prestado pelos seus discípulos. Como a homenagem feita pelo amigo Antônio à sua professora:

“Sabe aquele professor(a) inesquecível e que marcou a sua vida? Eu tive a sorte dessa pessoa tão especial ter sido a minha primeira professora, a Cleusa Paiva. 

Na primeira vez que fui à escola, na Fazenda São José, no Mato Dentro, em São Luiz, há mais de 53 anos, fui com meu pai, na garupa do cavalo. Menino tímido da roça, acostumado a falar com borboletas e pássaros, eu estava muito envergonhado e tenso no primeiro dia de aula. 

Quando cheguei na escola eu fui acolhido com um especial sorriso pela inesquecível professora Cleusa, sempre calma, delicada, acolhedora, de coração generoso. 

A partir dali, mesmo com timidez e insegurança, eu me sentia apoiado por ela. Sempre que ficava tenso, eu sentia a sua mão imponderável passando em minha cabeça. Com aquele afago protetor, parecido com o da minha mãe, eu relaxava e me sentia acolhido, como se estivesse em casa. 

Até hoje a professora Cleusa ainda me inspira e me influencia. Ela fez, faz e fará parte toda a minha história de vida. Por isso lembro da significativa frase de Henry Adams: “O professor se liga à eternidade. Ele nunca sabe quando cessa a sua influência”.

Um professor inspirador nos ajuda a alçar voos e a conquistar caminhos que jamais imaginamos. Ele nos influencia, nós influenciamos os outros e transformamos o mundo.”

Bem hajam os educadores construtores da PAZ!

 

Por: José Pacheco

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