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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDX

Fátima, 15 de fevereiro de 2044

Eis-me na terra dos milagres. Em tempos idos, havia quem dissesse, talvez jocosamente, que, quando um professor brasileiro ia a Portugal, visitava Fátima e… a Escola da Ponte.

Certo é que, quando aportei ao Brasil, me apercebi de que a Ponte se tinha transformado num mito. O amigo Rubem havia publicado “A Escola com que sempre sonhei”. E o “sonho” de todo o bom educador era rumar a Portugal e à Escola da Ponte.

Quando me emancipei do etnocentrismo europeu de que padecia, fui viver entre povos originários, em quilombos e favelas, enveredando por um processo de descolonização mental, que me permitiu ajudar a desenvolver projetos como o da Escola do Projeto Âncora. A melhor Educação estava no Sul. E pelo Sul me deixei ficar, para aprender.

No Brasil, a ausência de autonomia precipitara o sucateamento da escola pública e provocara a sua desintegração. Nas palavras de Anísio Teixeira:

Essa desintegração se completa com a supressão da autonomia quanto ao ensino, sua seriação, métodos e exames. Levada a ordenação externa da escola até esse ponto, é evidente que nada restará senão o automatismo de diretores e mestres, a executar o que não planejaram, nem pensaram, nem estudaram, como se estivessem no mais mecânico dos serviços. 

Ora, mais não será preciso dizer para explicar a pobreza, a estagnação, a total ausência de pedagogia, que vai pelas nossas escolas. De todas as instituições, nenhuma precisa de maior autonomia e liberdade de ação do que a escola. Cumpre dar a cada estabelecimento o máximo de autonomia possível e essa regra é a grande regra de ouro da educação. 

As escolas só voltarão a ser vivas, progressivas, conscientes e humanas, quando se libertarem, assumindo todas as responsabilidades.” 

Eis o que Anísio pensava da administração e gestão das escolas. Sábias e atuais considerações, escritas há quase um século. 

Desde então, o discurso sobre autonomia apenas logrou enfeitar normativos. Abundava no texto dos projetos, mas estava arredada das práticas efetivas das escolas. Isso mesmo: muitas escolas não cumpriam os seus projetos escritos, por não serem autônomas. 

O “sistema” mantinha-se cativo de funcionários legalistas que, à tralha normativa herdada das ditaduras, foram acrescentando despachos, resoluções e outros documentos caraterísticos de uma gestão burocratizada. Se muitas dessas normas fossem analisadas à luz das ciências da educação, concluir-se-ia serem ilegais. 

Mas, como é característico do terceiro tempo da modernidade, emergiam nesse contexto de “renúncia á interpretação”, movimentos de resistência. Professores assumiam o seu compromisso ético com a Educação, reivindicavam a dignidade do exercício de autonomia profissional, propondo a celebração de verdadeiros contratos e termos de autonomia. 

Talvez os critérios de natureza científica e pedagógica passassem, finalmente, a prevalecer nas decisões de política educacional. Talvez os projetos escritos pudessem ser postos em prática. Refiro-me a uma autonomia de duplo significado: a do indivíduo e a do indivíduo em grupo – nunca separadas! De outro modo, o exercício de autonomia conduzir-nos-ia ao absurdo do ideal de autossuficiência caraterístico das sociedades modernas, numa arrogância autónoma que seria a negação da aprendizagem da autonomia e da aprendizagem com os outros.

O vosso avô estivera em Fátima, nos idos de setenta, colaborando na elaboração de um currículo para a escola da democracia. Mas, o milagre de uma nova Educação não aconteceu. Dessa vez, não esperaríamos por milagres.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDIX

Vila Nova de Foz Coa, 14 de fevereiro de 2044

Quase ninguém se perguntava por que razão, regra geral, a criança era incluída num grupo rígido de crianças-alunos a quem o professor ensinava como um todo, no mesmo tempo, fazendo-se ouvir no mesmo código, exigindo o atingir dos mesmos objetivos… por todos. 

Era tão comum este procedimento que dificilmente se avaliava os seus efeitos no tratamento de um ser singular como objeto de ensino estandardizado. Seria forçoso concluir que as diferenças individuais reconhecidas pela psicologia exigiriam um planejamento adequado, individualizado, adaptado a cada ser humano em processo de formação. E esse planejamento só assumiria identidade, quando o sujeito da formação nela participasse. A ordem interna nasceria e se alimentaria de ocupações livremente aceites, com propósitos bem definidos e executados em função do interesse e necessidades sentidas. Obrigar cada um a ser o outro-igual-a-todos correspondia a negar-lhe a possibilidade de existir como pessoa livre e consciente. 

Para Olivier Reboul, ensinar não consistia em inculcar, nem transmitir – seria fazer aprender. E o professor não deveria ser aquele que impunha respostas-padrão, mas aquele que colocava questões. Nesse contexto, ele seria insubstituível, pois, “aprender realmente, é sempre desaprender, para vencer o que nos paralisa, nos encerra, nos aliena”, como Reboul afirmava. 

Existe em cada pessoa uma vontade de autocontrolo das ações e de ficar liberta do controle coercivo do seu comportamento. Se a liberdade se concretiza no desenvolvimento identitário, é obvio que um clima autoritário não promove tal desenvolvimento. Ausubel afirmava que “em comparação com grupos de crianças de grupos dirigidos democraticamente, os alunos que são submetidos a controles autocráticos são mais agressivos, adotam, ao relacionar-se com o líder, atitudes mais submissas, são menos capazes em trabalhos e comportamentos autodisciplinadores, quando é retirada a supervisão direta”.

Mas, rejeitar práticas autoritárias não seria suficiente. Já nos idos de vinte, seria preciso afirmar que a liberdade se aprende com os outros, era evidente a necessidade de refundar o “sistema”.

O Mestre Bartolomeis assim o expressava:

“As crianças beneficiam de influências ambientais e pessoais intencionalmente organizadas. Há que compreender quais os novos moldes em que as relações dos alunos entre si e com os professores se devem organizar, para que possam dar vida a uma comunidade onde o duplo processo de individualização e de socialização encontre o seu ambiente mais favorável. 

Se o autogoverno dos alunos houvesse de excluir a orientação do professor, teríamos de renunciar a vê-lo realizado na escola”.

A educação continuava ainda a ser justificada mais como meio de controlo social do que como instrumento de aperfeiçoamento pessoal. E um dos maiores óbices à mudança residia no permanente julgamento do aprendiz e no dever de obediência hierárquica do professor, o que invalidava qualquer esforço no sentido da autorresponsabilização. 

Seria possível o professor se assumir na dignidade do exercício de autonomia?

Era com os pais e os professores que a criança encontrava os limites do controlo, que lhe permitisse progredir em autonomia. Essa autonomia era liberdade de experiência e de expressão, dentro de um sistema de relações e de trocas sociais, que compreendia ações de ajuda do professor. Sem socialização não seria possível praticar uma didática de autogoverno, de trabalho autónomo. 

Em que consistia tal “didática”?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDVII

Leiria, 12 de fevereiro de 2044

Assisti ao desaparecimento de centenas de notáveis projetos. Todos estavam devidamente fundamentados na lei e numa ciência prudente. Também todos soçobraram por falta de sustentabilidade financeira. Duraram enquanto durou o voluntariado, a boa-vontade, a filantropia, até mesmo o assistencialismo. 

Enquanto a mercantilização da “escola pública” prosperava, projetos com potencial de mudança definhavam por falta de apoio. 

Ao cabo de trinta anos, a sobrevivente Escola da Ponte viu reconhecida a sua autonomia. Ela tinha raízes num movimento comunitário dos anos setenta, nas famílias que confiaram a educação dos seus filhos à Escola Pública da Ponte. Passou pela publicação de uma Lei de Bases e de um Enquadramento Jurídico da Autonomia das Escolas (Lei 43/89 de 1 de fevereiro), pela publicação da Lei da Autonomia, já em 1997, e a celebração de um contrato, já no século XXI (em 2004). Tinham passado trinta anos de resiliência.

Foi árduo o processo. E só conseguimos alcançar o estatuto de autonomia, porque, a par de uma prática reconhecida como de excelente qualidade, criamos sustentabilidade pedagógica, científica. Aqui vos deixo mais um pouco do textinho redigido nos anos oitenta. Que vos faça bom proveito, apesar de já ser bem antigo.

O meu artesanal textinho começava por afirmar que em toda a aprendizagem havia dependência. Os programas eram “impostos” e era preciso compreender a dimensão da dependência, para poder aprender. 

“Se o modelo (dito) tradicional estabelece um mundo de experiências totalmente subordinado a um controlo gerador de múltiplas dependências, que dizer de modelos (ditos) alternativos ao modelo tradicional? 

Gagné, por exemplo, considera o aluno como inapto para agir por si próprio: “Manter o aluno interessado no que está fazendo e nas habilidades que vai adquirindo é tarefa que requer grande perícia e capacidade de persuasão de uma pessoa, geralmente do professor, que representa o mundo da experiência e da sabedoria do adulto”.

Para este teórico, não restava qualquer dúvida de que ao aluno competia adquirir habilidades e ao professor a ciclópica tarefa de o manter interessado, a capacidade de persuadir, de o motivar… de o seduzir. 

Gagné admitia ser mais fácil ao professor levar a cabo a sua dura missão, se comunicasse com um único estudante de cada vez. E fazia apelo à “instrução programada”, como se tudo fosse programável em função do binómio estímulo-resposta. 

Vai ao ponto de afirmar que “o resultado é também, no sentido verdadeiro, exterior à pessoa que aprende” E ainda esclarece que ensinar implica agir sobre o aluno “com o propósito de: dirigir-lhe a atenção e as ações e guiar o seu pensamento para determinadas áreas”. 

No âmbito das teorias associacionistas, Skinner criara uma versão muito particular de “individualização”, que Gagné reproduzia. Era uma individualização que fazia apelo a uma atividade mecânica e proscrevia a autonomia. 

É Skinner que afirma ser necessário manipular as condutas dos outros para o bem geral. Vai mais longe na defesa da utilização do “reforço positivo”, ao dizer que os indivíduos controlados se sentem livres. 

Considero que Gagné estava certo ao afirmar que um sistema educacional se destinava a “provocar modificações nas capacidades e atitudes”. Resta saber a que “modificações” se referia. Não o disse. 

Nos idos de vinte, o textinho que escrevera, há meio século, mantinha-se atual, apenas desgastado por ação de uma das sete pragas, que afetavam a Educação: o teoricismo. 

Os teoricistas teriam noção do dano que causavam?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDVI

Campo de Ourique, 11 de fevereiro de 2044

Falemos, então, de… autonomia.

Num dos “encontros de sábado”, conversamos sobre condições sine qua non de sustentabilidade: o exercício de autonomia pedagógica a par da autonomia financeira, no pressuposto de que a autonomia do sujeito de aprendizagem seria da mesma natureza da autonomia do professor e da escola. Mas, como assegurar autonomia a projetos de mudança e inovação? 

Não presumia ter encontrado resposta, uma solução, mas já tinha ajudado a criar grupos de trabalho, dispositivos como os círculos de aprendizagem e a base teórica de uma autonomia comunitária, no quadro de uma nova construção social. 

Netos queridos, há cerca de meio século, redigi um textinho, que aqui transcrevo, esperando que não seja para vós maçador.

Posicionemo-nos eticamente face à pedagogia. Pode considerar-se uma pedagogia que busque apenas uma liberdade racional, uma pedagogia que vise apenas a liberdade pulsional, ou uma outra que promova a integração de ambas, na realização equilibrada do homem como indivíduo. 

Acresce (claro!) a necessidade de se considerar a dimensão social. Se a näo-directividade ingénua descura a influência da sociedade sobre o indivíduo, a pedagogia autoritária descura a possibilidade de autonomia no educando. 

Estes extremos não realizam a tarefa fundamental de dotar os aprendentes com uma adaptação crítica às condições sociais, porque o conceito de liberdade está embotado de equívocos. E, à semelhança de qualquer nova pedagogia, a näo-directividade foi assimilada na sua exterioridade e a escolástica destituiu-a de qualquer significado transformador.

O que é, concretamente, a liberdade de uma criança? Diz-nos Reboul que “a psicologia não pode responder-nos porque não existe uma ciência da liberdade, dado que esta está para além de todos os determinismos, a psicologia pode dar-nos preciosas indicações sobre as condições e os obstáculos de uma educação para a liberdade”. As práticas alheias ao educar para a liberdade e pela liberdade são anacronismos anteriores a Carl Rogers que somente refere a necessidade da realização de equilíbrios psicológicos como a “prática simultânea da afirmação de si e da adaptação ao próximo”. 

A liberdade pode ser ensinada, não no recurso à didática, mas a uma gramática de ensino da liberdade. Esse ensino não passará tanto por uma didática específica, quanto por uma gramática que explique as transformações. Neste sentido, os modelos de näo-directividade ingénua são tão falíveis quanto aqueles que pressupõem controlo externo, porque nem tudo se passa, exclusivamente, entre professor e aluno. É o Mestre Morin quem o diz: “o sujeito emerge ao mesmo tempo que o mundo, a partir da auto-organização, onde a autonomia, individualidade, complexidade, incerteza, ambiguidade se tornam quase caracteres existenciais”. 

O meu amigo Luís era um dos raros diretores de agrupamento de escolas, que assumira um compromisso ético com a educação. Com perspicácia e bondade, ia tentando contornar burocráticas armadilhas. Eu compreendia a intenção do meu amigo, mas já vira tentativas semelhantes se saldarem por insucessos. 

Um decreto tinha aberto caminhas de autonomização. Mas, no quadro de uma regulamentação instrucionista, a assunção de autonomia era “missão impossível”. 

Lancei avisos, aconselhei-o, mas respeitei as suas decisões. Só não conseguia entender a falta de ética de outros diretores.

Se a autonomia estava a ser, gradual e responsavelmente, assumida na “Manuel da Maia”, o que impedia que o fosse em outras escolas?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDV

Paranhos, 10 de fevereiro de 2044

E foi, então, que a minha amiga e irmã Maria me presenteou com o que dissera uma cartomante, que tomar decisões era a melhor forma de prever o futuro. Aproveitei a “deixa”, para tomar decisões e agir praxeologicamente. E para pedir que, acaso discordassem daquilo que eu escrevesse ou fizesse, me dessem conhecimento das dissidências e do modo como, dialogando. as poderíamos sanar.

Certamente, estareis recordados de vos ter falado que uma profunda crise ética se instalou, quando concluí que, ensinando a ler do único modo que eu sabia ensinar, os meus alunos continuariam analfabetos. Só conhecia um “método”, aquele com que me tinham ensinado, porque o modo como o professor aprendia é o modo como o professor ensinava. O modo! 

Os alunos que me foram confiados já tinham reprovado várias vezes, por permaneceram analfabetos, porque os professores anteriores os tinham tentado ensinar pelo mesmo “método”. 

Inscrevi-me em cursos de preparação de alfabetizadores, onde, supostamente, eu encontraria solução para a minha “dificuldade de ensinagem”. Ledo engano! Aqueles formadores não faziam a mínima ideia de como se ensinava a ler. 

Nada daquilo que palravam tinha a ver com a sua prática. Eram professores universitários, meros replicadores de teoria, de algo que poderíamos ler num livro, sem necessidade de pagar para os ouvir. 

Há mais de cinquenta anos, os escutava repetir as mesmas ladainhas. Percorria as salas de aula das universidades, os salões onde decorriam palestras, auditórios lotados de professores que, como eu, procuravam contribuições para a melhoria do exercício da profissão. No final das palestras e formações, os meus colegas de chão de escola concluíam: “É tudo teoria”. E era mesmo!

Hesitei entre aprender outros “métodos”, ou sair da profissão. Optei por aprender a ser alfabetizador. Fiz-me autodidata e me refiz. Estudei Psicologia da Aprendizagem, Psicologia da Cognição, Psicologia da Memória, dez psicologias.

Aprendi a elaborar repertórios linguísticos, quando me apercebi que, por volta dos quatro ou cinco anos, as crianças já sabiam ler. Por exemplo, “Big Brother” e “McDonalds” em inglês, “Coca-Cola” em português e até palavras japoneses sabiam ler: “Toyota”.

Aprendi a determinar a lateralidade predominante, tendo identificado cerca de duas dezenas de alunos esquerdinos, que tentavam escrever com a mão dextra, bem como “estilos de inteligência”, num tempo em que o Howard Gardner ainda não tinha iniciado os seus estudos. 

E no mesmo ano em que a Emília Ferreiro iniciou os seus estudos sobre alfabetização, eu aprendi mais uma dúzia de “métodos”: global de palavras, global de frases, global de contos, o “Tu já lê” do Paulo Freire, o das “28 palavras”, o Jean Qui Rit” e outras abordagens fonomímicas, metodologias fonossintéticas, silábicas…

“Especializado” com alfabetizador, em pouco tempo, consegui criar leitores. A prática do “Método Natural de Leitura” de Freinet, me levou a aderir ao Movimento da Escola Moderna. Instalei ficheiros autocorretivos, a Imprensa Freinet, a classe cooperativa, a Assembleia, mas tudo… em sala de aula.

 

Uma profunda crise ética me possuiu, quando compreendi que, em sala de aula, não conseguiria garantir a todos os meus alunos o direito à educação. Fui ajudar a fazer uma escola sem sala de aula.

Ao longo de cinquenta anos, questionei:

Se a Ponte, sem sala de aula, provou a possibilidade de a todos ser assegurado o direito à educação, porque seria que os ministérios continuavam a construir salas de aula e a ensinar os professores a “dar aula”? 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDIV

Arapiraca, 9 de fevereiro de 2044

Atravessando o rio São Francisco, de Sergipe para Penedo, segui para Arapiraca, colhendo pelo caminho suaves recordações. Estávamos no fevereiro de vinte e quatro. As palavras de Mia Couto me impeliam ao agir imediato 

“”A infância não é um tempo, não é uma idade, uma coleção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde.”

A urgência se me impunha. Acatava o conselho do amigo Nóvoa de abrir o olhar à necessidade de “abandonar uma atitude defensiva, excessivamente prudente e auto-justificativa”. Três situações justificavam intervenção imediata. A corrupção moral impedira a continuidade do projeto de Mirantão. A Fabi continuava exposta ao assédio moral de uma diretoria e uma comunidade nascente corria risco de acabar.

Num dos “encontros de sábado”, decidi partilhar com educadores éticos situações que apenas careciam de ajuda, de solidariedade ativa. Essa era a hora de não nos acomodarmos ao mundo como ele era, nem à vida como no-la impunham. Essa era a hora inadiável de exigir a justiça possível e de realizar um ideal transformador. Não poderíamos “deixar para depois do Carnaval” o exercício de solidariedade.

Em breve vos contarei a estória de uma comunidade de aprendizagem. Hoje, apenas a refiro como exemplo acabado de potencial vítima do “projeto” a que Darcy se referia, quando perguntava a que se devia a crise da educação. 

Nesse tempo, a administração educacional era (propositadamente?) ineficiente e moralmente corrupta. Impunha um modelo educacional obsoleto e que jamais garantiria a todos o direito à educação, colando-lhe paliativos “maker”, “híbridos”, organizando inúteis e dispendiosas conferências, congressos, seminários. 

Era por demais evidente a falência do “sistema de ensino”. O erário público era saqueado por abútricas empresas, por (de)formadores, por eufemísticos “centros de estudo” (de “explicações”, de “reforço”) e por palestrantes de PowerPoint. 

Os projetos com potencial de mudança definhavam por falta de apoio. Alheios ao drama, os meus companheiros das ciências da educação (teoricamente) se debruçavam sobre a questão. Entre eles o Zé Alves, que, por essa altura, publicava no antigo Facebook um artigo com o título “A autonomia (relativa) e as possibilidades de desenvolvimento profissional e organizacional”:

“No seu sentido etimológico e que continua a ser pertinente, a autonomia é a capacidade e a possibilidade das pessoas e das organizações se darem as próprias normas de ação. Ter a capacidade e a possibilidade de optar, decidir, construir os regulamentos em função das situações, dos problemas, das especificidades da ação concreta. 

Como refere Weber, “a autonomia significa, ao contrário da heteronomia, que a ordem do agrupamento não é imposta por alguém de fora do mesmo e exterior a ele, mas pelos seus próprios membros e em virtude dessa qualidade”.

Como se vê, este poder assenta no pressuposto de que as pessoas e as organizações são capazes de assumirem a liberdade e o risco da tomada de decisão, podem ser coautores das regras de conduta; e, igualmente se compreenderá, que este saber poder é limitado e relativo. Porque ninguém sabe tudo, ninguém é inteiramente livre de agir, está condicionado pelos saberes e liberdades dos outros e pelas normas legais e sociais em que se movimenta e de que é coautor. Daí que se aceite que a autonomia assuma uma natureza pluridimensional, relacional, relativa, processual.”

Olha a novidade!

Porque seria que se continuava a sofisticar o discurso e a aceitar a continuidade da miséria das práticas?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDIII

Piranhas, 8 de fevereiro de 2044

Ainda andava por terras onde o São Francisco se espraiava, antes de chegar ao mar, à conversa com educadores, que me levaram a fazer referência a um estranho fenómeno. Sendo a profissão de professor eminentemente feminina, porque seria que, no elenco dos mais importantes pedagogos, divulgado em teses, artigos e livros, apenas surgiam os femininos nomes de Ferrero e de Montessori? Como se não houvesse matéria para reduzir a quantidade de referências a homens (para três ou quatro, por exemplo), para integrar no “quadro de honra” mais uma dúzia de educadoras. 

Não faltavam exemplos, na história da educação do século XX: Armanda Alberto, Irene Lisboa, Maria Nilde, Cecília Meireles, Magda Soares, Nise da Silveira… só referindo aquelas que já tinham deixado a nossa companhia. Propositadamente, não referirei as do século XX, mas uma ilustre desconhecida, que viveu no século XIX. 

Louise Michel nasceu em 1830 e faleceu em 1905. Foi professorapoetisaenfermeiraescritora

Preocupada com a educação infantil, lecionou em Paris, até 1856. Aos 26 anos, já era autora de uma extensa obra literária, política e educacional, com foco nos movimentos sociais. Participou na Comuna de Paris, tendo sido presa e deportada para a Nova Caledônia. Em 1880, retornou à França, participou de inúmeras iniciativas libertárias, sendo vigiada e sofrendo prisão, frequentemente.

Após seu falecimento, foram muitas as homenagens, sendo considerada uma das mais notáveis feministas, sindicalistas e educadoras libertárias do século XIX, preservando tal reconhecimento até à atualidade.

Na adolescência, Louise lia Rousseau e Voltaire, precocemente desenvolvendo um temperamento altruísta. Em 1850 fez um curso de magistério, mas foi impedida de lecionar nas escolas estatais por se recusar a jurar lealdade para Napoleão III e seu império. Essa recusa é idêntica àquela que Agostinho da Silva assumiu, nos anos quarenta do século passado e que lhe valeu o exílio no Brasil (felizmente para o Brasil!)

Em 1852, Louise fundou uma escola livre, onde lecionava, ensinando princípios republicanos — inclusive com aulas de canto onde os alunos aprendiam a cantar a Marselhesa. A escola foi obrigada a fechar, por pressão das autoridades. No fim de 1854, abriu outra escola. Por ensinar princípios libertários, continuou a ser perseguida pelo governo. 

Mudou-se para Paris, para lecionar num colégio interno para moças, e se dedicar a atos de solidariedade. Em 1865, fundou uma escola (a que hoje daríamos a designação de escola de tempo integral, pois funcionava doze horas por dia), ao mesmo tempo que apoiava a criação de escolas e orfanatos laicos.

A educação assumia grande importância no pensamento libertário do século XIX. A sua proposta de pedagogia diferenciada influenciou muitos pedagogos do Movimento da Escola Nova.

Nessa época, Louise Michel conheceu Victor Hugo, um dos mais famosos e respeitados escritores da época, que a retratou como personagem em obras sobre mulheres excecionais com destinos trágicos.

Durante a Guerra franco-prussiana, quando a fome se abatia sobre Paris, Louise Michel criou um refeitório comunitário para as crianças. Condenada, presa, degredada, onde quer que a vida a levasse, Louise foi fonte de inspiração de uma pedagogia libertária, que chegou ao Brasil com imigrantes europeus. A primeira escola libertária foi fundada em 1905, em São Paulo, por imigrantes italianos, o ano do falecimento de Louise Michel. 

Nos idos de vinte, quantos professores teriam ouvido falar de Louise Michel?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDII

Vitória da Conquista, 7 de fevereiro de 2044

Queridos netos, hoje e com a devida vénia, preencherei esta cartinha com palavras escritas pelo meu amigo Antônio. Espero que vos façam um bom proveito, que possais sobre elas refletir. A mim, fez-me pensar. E muito!

“O amanhã está à venda? Podemos por aqui iniciar uma boa reflexão. É tempo de profundas mudanças no mundo, na educação e nas escolas vivenciamos um cenário de grandes dúvidas e incertezas, que ao contrário de nos arrastar para o desânimo, nos mobilize coletivamente para a abertura de novos caminhos.

A educação sempre foi e continua sendo um dos lugares de transformação do mundo, mas, para isso, tem ela própria de se transformar. Não se trata de alimentar visões mirabolantes de um futuro sem escolas e sem professores, substituídos por aparatos tecnológicos ou pelo admirável mundo novo da inteligência artificial. Usar sempre qualquer maré a favor de uma boa causa, nos parece justo, mas não cabe exageros, afinal, o processo de aprendizagem nesse caminho de transformação por compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo solicita segurança, competência profissional, apreensão da realidade, aceitação do novo, bom senso e generosidade (Paulo Freire).

O que será o amanhã? É a pergunta que nos inquieta hoje mais do que em qualquer outro momento de nossa história. O filósofo francês Edgar Morin, num dos seus últimos livros, convida-nos a mudar de via e de vida nas escolas, com a adoção de um novo contrato social, proposta feita pela UNESCO no seu último relatório sobre os futuros da educação.

Evitemos o pathos da novidade, a ideia futurista de um começo a partir do zero. Devemos honrar e prolongar o patrimônio comum da educação, construindo os processos de transformação a partir de milhares de experiências e de projetos que já existem nas nossas escolas, em todo o mundo”.

A partir dessas novas perspetivas, podemos imaginar um outro futuro, viajando até o infinito das possibilidades de agir em conjunto. Temos de assumir, com coragem, as nossas dúvidas e, até, o risco de nos enganarmos. O risco é uma necessidade essencial da alma, diz-nos Simone Weil: “A ausência de risco suscita uma espécie de aborrecimento que paralisa de maneira diferente, mas quase tanto como o medo” (1949, P. 49). Sim, a vulnerabilidade tem muito a nos ensinar.

O mundo e a escola futura serão feitos de cooperação, assim imaginamos. Pois ninguém se educa sozinho. Precisamos dos outros para nos educarmos. Precisamos de professores. Precisamos do poder da relação, do encontro entre mestres e discípulos. Precisamos, como escreve Bernard Charlot, de ocupar o mundo com humanidade e ocuparmo-nos dele, com todas as formas de solidariedade que este termo implica: “Deve ser este o princípio de base de uma educação contemporânea. É da educação, e da educação humana, que se trata”.

O mais importante é sermos capazes de libertar o futuro, como bem defende o educador Antônio Nóvoa inspirado por Ivan Illich. Ninguém sabe como será o futuro e nem sequer vale a pena tentar adivinhá-lo. Mas temos a obrigação de tudo fazer para não fechar as possibilidades de futuro, para garantir a liberdade das gerações futuras.

Como bem lembrou o poeta e artista visual brasileiro Wlademir Dias-Pino, a liberdade é sempre experimental.

E mais uma vez nos perguntamos: o que será O AMANHÃ?

Precisamos com força, LIBERTAR O FUTURO!”

Nos idos de vinte e três, o Antônio nos questionava, com pertinência. Quem o terá escutado? Quem terá libertado o futuro, humanizado o ato de aprender? Quais foram os artífices de um amanhã desejado?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDI

Penedo, 6 de fevereiro de 2044

No fevereiro de dois mil e vinte e quatro, o vosso avô andava por terras alagoanas, conversando com professores e gestores, falando-lhes da necessidade de romper com distopias. 

Convivi com professores gestores de elevada qualificação profissional, que diziam pretender concretizar uma gestão democrática. Fiz-lhes ver que essa seria uma utopia realizável, se as escolas se assumissem em autonomia. O exercício de autonomia era condição sine qua non de gestão democrática. 

E em que consistia esse exercício?

Diretor, ainda que sujeito a concurso, ou eleito pelos seus colegas, sempre deveria sujeitar-se ao indigno “dever de obediência hierárquica”. Mesmo que não concordasse com a ordem recebida, deveria cumpri-la e fazê-la cumprir pelos “subordinados”.  Só através de uma gestão comunitária se poderia aspirar a uma gestão democrática.

Senti ter quebrado um pouco o entusiasmo da festa de tomada de posse dos novos gestores, quando lhes dirigi essa e outras perturbadoras perguntas. Em breve vos direi o que sucedeu. Nesta cartinha, prefiro falar da apresentação de um livro sobre Penedo, que antecedeu a minha “palestra”. 

Foi um momento de “criação de comunidade”, base de afirmação de uma autonomia, ainda que relativa. E, quando os autores do livro referiram a origem do termo “Penedo”, assomou à memória o dia em que uma criança me perguntou: 

“Porque é que a nossa terra se chama Vila das Aves?”

“Por que será?” – eu respondia sempre com perguntas…

A curiosidade se consumou numa pesquisa. Elaboramos um roteiro de estudo, através do qual, os alunos “passearam” pela história local, descobrindo que o primeiro rei tinha nascido nas “Bouças do Rex” e não em Guimarães. Estudaram Geografia, Hidrografia… até à conclusão de que a sua terra não era Vila das Aves, mas Vila dos Aves.

A sua terra não era uma vila dos pássaros, de aves. O nome “Aves” nada tinha a ver com pássaros, mas com água, conforme sugeria o sema “av”, possivelmente celta. 

 

Enlaçadas pelo abraço mesopotâmico de Entre Ambos-os-Rios (Ave e Vizela), as pequenas paróquias de Santo André de Sobrado e de São Lourenço de Romão se lhe untaram. A etimologia celta descrevia uma ecúmena rodeada por três rios – era a “Terra de Entre-Ambolos-Aves”, de Entre-Águas, ou apenas “Aves”, como o mapa de Portugal mostrou.

Em 1983, compus um roteiro, publicado pela Junta de Freguesia. Nele se explicava a origem da toponímia de um aglomerado de aldeias conhecidas por “lugares” dispersos, sem uma ágora congregadora: Fontaínhas, Bom Nome, Paradela, Santo Honorato, Ponte Nova… 

Mas, uma escola havia criado profundas raízes numa terra dispersa. Três décadas bastaram para agregar bairrismos, onde os rios Ave e Vizela se abraçavam. Dediquei mais de metade de meio século do exercício da profissão de professor a uma comunidade, a um projeto. 

Em 1976, quando cheguei à Ponte, encontrei um povoado em crise, afetado pelo desemprego, pela poluição, pela corrupção. Muitos avenses haviam emigrado. A um cenário desolador se juntou a impressão que me ficou, ao deparar com um edifício construído no século XIX, arruinado, a que davam o nome de “escola”. 

No terreno em torno da “escola”, quando a chuva e o vento não o fustigavam, o transformávamos em “sala de aula reinventada”, no seio de uma comunidade.   

Até que chegou um tempo em que, traindo a decisão soberana de um Conselho de Escola, de uma comunidade que queria manter a escola em Vila das Aves, gestores hierarquicamente obedeceram, permitindo que o projeto fosse arrancado das suas raízes.

De que servia o contrato de autonomia de 2004?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MD

Maceió 5 de fevereiro de 2044

“Finalmente, a viagem conduz à cidade de Tamara. Penetra-se por ruas cheias de placas que pendem das paredes. Os olhos não veem coisas, mas figuras de coisas que significam outras coisas. O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso, e, enquanto você acredita estar visitando Tamara, não faz nada além de registar os nomes com os quais ela define a si própria.”

Queridos netos, vos recomendo a leitura do livro do Ítalo Calvino. É um sem-fim de imagens, ou como alguém disse, uma “espécie de atlas do sonho geométrico humano, um relato metanarrativo”, uma reflexão de Ítalo sobre a noção de Utopia.

Há cinquenta ou trinta anos atrás, não faltaram educadores éticos, pretendendo dar forma a utopias educacionais, e que se defrontavam com um conjunto de interditos e não-ditos da profissão. Em noventa e cinco, num texto intitulado “Dez palavras não ditas, ou o rosto oculto da profissão docente”, Perrenoud isto escreveu:

O que é importante, para formar professores, para controlar o desenvolvimento dos sistemas educativos, as reformas das estruturas e dos currículos, o combate ao insucesso escolar, não são julgamentos globalmente equilibrados dos professores, enviando de volta para trás detratores e defensores incondicionais.

Para construir um plano e sistemas de formação, seria melhor fazer uma análise paciente da complexidade da profissão, ter em conta o que é dito publicamente, e que contém alguma verdade, mas também, e talvez antes de tudo, identificar o que está no cerne das práticas pedagógicas, mas não pode ser dito publicamente.

A pergunta pode parecer trivial: toda organização não tem cadáveres no armário, toda corporação profissional sua ovelha negra?

Há, em cada corpo constituído, à margem, uma fração de pessoas estritamente indefensáveis, que usurpam seu título e a confiança depositada neles. A corporação não pode reconhecer isso publicamente, exceto quando é a única maneira de se proteger do risco ainda mais grave de parecer encobrir o inaceitável. A imagem pública do profissional “médio” proposta por uma corporação profissional é, portanto, sempre mais otimista do que a diversidade real de práticas e profissionais.

Os praticantes mais admiráveis são destacados por suas habilidades, dedicação, trabalho árduo, retidão e espírito inovador. Minimiza-se a proporção daqueles que não possuem as qualificações exigidas, fazem o mínimo possível, não cumprem as regras éticas ou não renovam sua formação.

Por que os professores deveriam ter mais interesse do que outros em reconhecer abertamente a imperfeição?

Seria muito interessante comparar a maneira como tentam esconder, ou minimizar, sua parcela de falhas ou “erros”. Não me interessam as margens, mas a página, o que constitui o núcleo da profissão exercida por professores comuns, normalmente competentes e respeitáveis.

Não se trata, portanto, de exceções, por mais numerosas que sejam, mas de regra: a docência parece-me ser uma profissão em que alguns componentes principais são ignorados ou largamente diluídos nas imagens públicas da profissão e mesmo nas imagens internas.”

O Philippe analisava aspetos não ditos da profissão docente: o medo; a sedução negada; o poder vergonhoso; a avaliação todo-poderosa; o dilema da ordem; a parte ineficiente; a solidão ambígua; o tédio e rotina; a discrepância indescritível; a liberdade sem responsabilidade.

Por que seria que o Philippe chamava a esses não-ditos “comédia de maestria e racionalidade”?

 

Por: José Pacheco

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