Inoá, 2 de outubro de 2042
Quando procurava explicar-vos certos fenômenos, eu recorria a metáforas (nem sempre felizes), que permitiam descrever, por exemplo, as idas e vindas de “pássaros”, personificações de gente a quem um desumano sistema de “colocação de professores” negava a realização pessoal e profissional:
“Foram muitas as lágrimas da partida e muitas foram as vertidas nos reencontros (não acrediteis naqueles que dizem que os pássaros não choram). Foram muitos os voos das aves aprendizes de retorno ao ninho original. Foram tempos de tensa expectativa os primeiros tempos, tempos de ambiguidade, de apreensão, mas também de teimosa confiança.
Um desses recados de pássaro aprendiz (a que poderíamos chamar Cláudia, ou Vanessa) dizia:
“É um sentimento forte e, ao mesmo tempo, leve e doce. Medo não sinto, porque não parto sozinho.”
Numa outra mensagem (nas palavras puras de uma Joana, ou de um André) lia-se:
“Quero agradecer terem acreditado em mim, fazendo-me sentir como é bom aprender ensinando.”
E, para não ser fastidioso, apenas mais um excerto do canto dessas almas sensíveis (a que poderíamos chamar Tiago ou Constança):
“Como era bom ver os professores a começar cada dia com um sorriso, o sorriso que levo comigo para a nova escola, e cuja recordação faz coceguinhas no meu coração.
A lei era clara: O funcionamento dos estabelecimentos de educação e ensino, nos diferentes níveis, orientava-se por “uma perspectiva de integração comunitária, sendo, nesse sentido, favorecida a fixação local dos respectivos docentes” (sic). Mas, se a lei estabelecia que os professores deveriam trabalhar na comunidade onde residiam, por que os mandavam para longe?
Pela celebração de um contrato de autonomia com o ministério da educação, a Escola da Ponte conquistou o direito de “selecionar e recrutar o pessoal docente e não docente, nos termos do presente contrato e do perfil do educador do projeto”. Assim rezava o contrato e, a partir de 2004, assim se fez. Até que um ministério de má fé, à revelia do contratualizado, privou a Ponte desse direito.
No contexto de um sistema de ensino autoritário e moral e intelectualmente corrupto, a autonomia era aparente. Dizia a sabedoria popular que à mulher de César não bastava ser honesta, teria que parecer honesta. Esta expressão era usada em política, para dizer que os governantes, além de serem honestos, precisariam agir como tal.
A frase original surgiu após um escândalo na Roma do ano 60 a.C., envolvendo o imperador e a sua mulher. Júlio César andava na guerra, e Pompéia vivia muito sozinha. Um admirador da moça aproveitou a ausência do marido, entrou no palácio imperial, perdeu-se nos corredores, foi descoberto e preso. Levado a tribunal, foi absolvido da acusação, pois César ignorou o que se dizia sobre sua mulher, apesar de ter afirmado:
“Não basta que a mulher de César seja honrada, é preciso que sequer seja suspeita.”
Roma vivia um tempo de intriga e corrupção, por se ter constituído numa sociedade servida por uma multidão de escravos e dominada por uma casta de ociosos senadores.
Supostamente adúltera, a mulher do César não viveu o mesmo calvário da Capitu. Mas, de algum modo, a degradação dos costumes terá contribuído para acelerar a queda do império – à mulher de César, para ser honesta, não bastaria parecê-lo, seria preciso sê-lo. Não seria suficiente expulsar a mulher do palácio. Outro golpe palaciano também deveria (não só psicanaliticamente) “matar o pai”, dar um “fora” no César.
Foi o que fez o seu filho Brutus, à semelhança do que fizeram os traidores de todos os tempos.