Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXLII)

Caçapava do Sul, 14 de fevereiro de 2042

No final da segunda década deste século, o incansável José e mais alguns colegas publicaram um estudo, que tinha por título “Os pais no Conselho Geral das escolas: Entre a retórica da ação estratégica e a subordinação múltipla”.

Ressalvadas as preocupações metodológicas, acolhi o estudo com algumas reservas, dado que fora conduzido por professores universitários. Como era apanágio desses colegas de ofício, o documento primava pelo rigor do enquadramento teórico. Mas, os estudos não iam além disso. 

Os burocratas ministeriais tinham manhas de sete raposas. Findados os estudos, contas eram prestadas ao patrocinador, dados eram compilados, conclusões eram armazenados. O estudo seguinte começaria, quando alguma agência de financiamento liberasse verba. E terminaria de modo idêntico aos anteriores, quando a verba acabasse. E aí por diante, sem que benefício expresso resultasse dos ditos estudos. 

Nos idos de setenta, o primeiro estudo (sem patrocínio) realizados na Escola da Ponte dava pelo nome de “Participação e Democraticidade”. Precisávamos saber qual a percepção dos pais dos nossos alunos, relativamente às mudanças operadas nos órgãos de direção e gestão. Por essa razão, me interessei por um estudo realizado cinquenta anos depois. 

O estudo em causa visava saber como os pais percepcionavam o papel de uma aberração legislativa – o Conselho Geral das Escolas –, que valor lhe atribuíam, como se inscreviam na ação que aí desenvolviam. 

Para tal, foi enviado um questionário aos pais que exerciam funções nesse órgão. Posteriormente, os itens foram categorizados em seis dimensões: participação, deliberação, focalização, divulgação, relevância e relação entre pais e diretor. O questionário foi administrado on-line, entre finais de 2017 e o início de 2018. Transcrevo as principais conclusões:

“Expressiva dispersão de resultados, evidenciando uma visão heterogénea sobre as funções e relevância estratégica do CGE, o reconhecimento do condicionamento dos poderes externos (sediados no Ministério da Educação) e internos adstritos ao poder cognoscitivo dos professores e do diretor, uma sobrevalorização simbólica do órgão que não correspondia à ação concreta, e uma visão restrita de comunidade educativa, onde não cabem a autarquia e os alunos”.

A base normativa fora instituída por um decreto-Lei que a si próprio se justificava com a necessidade de perseguir três objetivos: “reforçar a participação das famílias e comunidades na direção estratégica dos estabelecimentos de ensino; reforçar as lideranças das escolas; reforçar a autonomia das escolas”. 

A hipocrisia do legislador não teve limites. Na prática, a revisão do regime jurídico da autonomia, administração e gestão das escolas em nada concorria para uma maior participação da comunidade. E instalava nas escolas mais um faz-de-conta de autonomia.

Afirmava-se pretender instituir normas que garantissem e promovessem o reforço progressivo da autonomia, e a maior flexibilização organizacional e pedagógica das escolas. Mas, retrocedíamos a uma situação anterior ao ordenamento jurídico de 1989. 

O contrato de autonomia celebrado entre a Ponte e o ministério, em 2004, foi descaracterizado. Unilateralmente, a má-fé ministerial o rasgou. Em 2012, reduzida a autonomia, desrespeitada a vontade dos pais, foi imposto à Escola da Ponte o degredo em solo hostil. Em 2022, voltei ao lugar onde o projeto criara raízes.

“Para quê, avô?” – estareis a pensar. Para ajudar a Ponte a retomar caminhos de autonomia. 

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXLI)

Parobé, 13 de fevereiro de 2042

Há exatos vinte anos, num boletim de ocorrência, constava que o operador de rádio ouviu, durante a ligação, os disparos efetuados por Nilson Santos. Esse sargento ligou para Batalhão, antes de matar a mulher e dois filhos e se suicidar. Raro era o dia em que os órgãos de comunicação social não dessem notícia de assassinatos e de outras banalizadas violências. 

No Portugal de fevereiro de vinte e dois, um jovem de 18 anos planejou um ataque terrorista. Se o FBI não o tivesse detectado e a polícia não o tivesse detido, esse estudante universitário, decerto, cumpriria o seu plano “de matar o máximo número de colegas possível, com recurso a armas brancas, que tinha armazenado.

Não seria a primeira vez, nem a última, que um tresloucado semeasse o terror e a morte. A detenção do estudante português trouxe à memória ataques ocorridos em escolas de outros países. Ataques mortíferos ocorreram em escolas dos Estados Unidos da América, da Ucrânia, da Escócia, do Brasil… 

A 16 de abril de 2007, um estudante de 23 anos matou 32 pessoas e feriu 17. Ainda no dormitório, Seung-Hui Cho matou dois estudantes. Duas horas depois, entrou num edifício da Universidade de Virgínia, barricou a porta e disparou indiscriminadamente sobre estudantes, professores e funcionários. Acabaria por se suicidar.

A 14 de dezembro de 2012, depois de assassinar a sua mãe, Adam Lanza, de 20 anos, pegou em quatro armas de fogo e foi até à sua antiga escola primária em Newton, Connecticut. Matou 21 crianças de seis e sete anos e seis adultos. Suicidou-se, quando a polícia chegou ao local.

A 17 de outubro de 2018, um estudante de 18 anos matou 20 pessoas e feriu 70 outras com uma caçadeira. Suicidou-se 15 minutos após ter entrado no Politécnico da cidade de Kerch, na Crimeia.

No primeiro dia de agosto de 1966, um estudante de engenharia e antigo fuzileiro subiu à torre do relógio da Universidade do Texas, em Austin. Matou três pessoas no interior do edifício e depois desatou a disparar sobre pessoas que se encontravam nos terrenos da universidade. Ao longo de 96 minutos matou mais 12 pessoas e feriu 31 até ser morto pela polícia. Descobrir-se-ia depois que, antes, tinha matado a própria mulher e a mãe.

Munido de quatro pistolas e revólveres, a 12 de março de 1996, um homem de 43 anos entrou pela escola primária de Dunblane e matou 16 crianças e um professor antes de se suicidar. 

A 14 de fevereiro de 2018, Nikolas Cruz, que havia sido expulso por mau comportamento, regressou ao seu liceu em Parkland Florida e ativou o alarme de incêndio. Quando os alunos saíram as salas de aula, começou a disparar indiscriminadamente. Matou 17 pessoas e feriu outras tantas. Depois, misturou-se com a multidão e fugiu. Acabaria por ser detido poucas horas depois.

A 20 de abril de 1999, dois jovens de 18 e 17 anos entraram armados na sua escola secundária (Liceu de Columbine, Colorado) e atacaram os colegas. Mataram quinze pessoas e feriram várias. Quando ficaram sem munições suicidaram-se.

Numa trágica quinta-feira, a Escola Municipal Tasso da Silveira, comemorando os seus 40 anos, acolhia ex-alunos, para falar sobre suas vidas fora do ambiente escolar. 

Wellington, jovem ex-aluno de 23 anos, parou diante do portão da escola, se apresentou como palestrante e entrou. Na mochila, levava dois revólveres. Cumprimentou uma antiga professora com um beijo na testa, invadiu uma sala de aula e lá deixou 12 corpos sem vida. 

Por que elaborei esta trágica lista? Ao longo de seis meses, a Cléo cuidou das crianças sobreviventes e dos familiares das vítimas do massacre. Ela sabe por que a fiz.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXL)

Capão da Canoa, 12 de fevereiro de 2042

Professora, engenheira, atleta olímpica, atriz, jogador de futebol, modelo, veterinária, técnico de Informática, eram alguns dos sonhos das doze crianças vítimas do Massacre do Realengo.

Quanto vale uma vida? No “mercado de trabalho” era medida em “horas úteis”. Na Educação, pelo tempo passado na humanização da Escola. Mas, nesses tempos sombrios, a violência se projetava, atravessava o tempo escolar. Quando “crianças-soldados” diziam que a guerra roubara a sua infância, políticos incentivavam a compra de armas e as grandes potências – Estados Unidos, Rússia e China – preparavam o que poderia vir a ser a última das guerras.

Em 2019, dois jovens invadiram a Escola Estadual Professor Raul Brasil, mataram cinco estudantes e duas funcionárias da escola. Após cometerem o crime, suicidaram-se. Pouco tempo depois, a polícia descobriu que um dos atiradores havia matado o próprio tio.

O Sigmund, que explicava tudo, considerava que a vida psíquica estava dependente de uma energia vital chamada “pulsão de vida”. Mas, considerou a existência de outro tipo de pulsão, contrária à primeira, que explicava uma parte da psique humana que Eros não comportava: a pulsão de morte, ou Thanatos.

No fevereiro de há vinte anos, andei visitando escolas de Mogi das Cruzes. Ali, mesmo ao lado de Suzano, a Prefeitura, a Secretaria de Educação, diretores e professores tinham aprendido a lição dada pelo município vizinho. Juntos, lançaram um projeto de “Educação Humanizada”. 

Porém, também em Mogi, a baixa política, uma política conduzida por bonsais humanos possuídos pela pulsão da morte, conspirava. A par da Covid, outra doença se espalhava. Thanatos, o “impulso da morte” rondava, comprometendo a humanização do ato de ensinar e aprender. Como dizia o povo, “para grandes males, grandes remédios”. Urgia um “tratamento de choque”.

Num mundo feito de cruel insanidade, uma escola doente reproduzia um modelo educacional obsoleto. A lista das enfermidades que, há uns quarenta anos, afetavam as escolas, era extensa. Refiro algumas. 

O “modismo” caracterizava-se pela adopção acéfala de modas pedagógicas, quase sempre importadas. Associado ao “aventureirismo pedagógico” e ao “praticismo”, o “modismo” foi responsável por transtornos vários. 

A “síndrome do pensamento único” consistia num conjunto de afecções patológicas muito comuns em “opinion makers”. Para esses doentes existia um só modo de pensar, um só modo de agir, um só modelo de escola. Padecendo de corrupção intelectual e moral, conspiravam nas catacumbas pedagógicas de ministérios, secretarias e diretorias, atacado e destruindo o pensamento divergente.

Toda a prática dissonante os impelia a reações violentas. Áulicos ao seu serviço espalhavam boatos, calúnias, comentários persecutórios. Quem ousasse interpelar o modelo único, sugerir alternativas, ou instituir outras práticas, sofreria perseguição feroz de hordas de “paus mandados”, porque os achacados do “pensamento único” não permitiam veleidades. 

O “teoricismo” (doença antípoda do “praticismo”) afetava parte significativa de uma universidade ancilosada. Os enfermos produziam inúteis teorizações de teorias inúteis, produzidas sobre teorias de teóricos, que não faziam a mínima ideia das práticas sobre as quais teorizavam. No aconchego dos seus gabinetes, os afetados pelo “teoricismo” desenvolviam sofisticadas propostas teóricas, que não logravam fertilizar as práticas, dado que a “impotência prática” era um dos sintomas associados a essa maleita.

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXXIX)

Taquara, 11 de fevereiro de 2042

Num dia de fevereiro de há vinte anos, li num site da Internet a seguinte notícia:

“Uma professora sofreu perseguição, por atuar de forma crítica”. 

A denúncia chamou, de novo, a minha atenção para um fenômeno recorrente. A participação do cidadão comum na vida democrática limitava-se ao depositar um boletim de voto numa urna, ou ao apertar um botão. Raramente, acompanhava a condução das políticas públicas. Quando não concordava com alguma medida ou atitude tomada por um governo, o cidadão comum “naturalizava-a”. Para ele, os políticos “eram todos iguais”. O poder tinha campo aberto para a prevaricação e a impunidade.

A notícia dizia assim:

Quem já participou de algum conselho municipal sabe do grande desafio que é incentivar a participação. É comum que as posições defendidas no interior desses órgãos colegiados não sejam amplamente debatidas. Em alguns casos, conselheiros e o público em geral, são constrangidos nesses espaços, por usarem palavras consideradas “desconfortantes” para os representantes do governo, que ficam incomodados diante de questionamentos.

Há um desafio grande para que os conselhos sejam mais críticos e dinâmicos e não simples “chanceladores da política do governo”. A garantia do direito à crítica é fundamental”.

A professora em causa sofreu desconto nos seus salários referentes aos dias em que participou das reuniões (o que contrariava legislação municipal) e a “Abertura de Processo Administrativo Disciplinar”. 

Alegadamente, a professora apresentara “fala e comportamento agressivo no cotidiano de trabalho e nas reuniões pedagógicas; deixara de “preencher folha-ponto”, atrasara “a entrega de atividades de recuperação para as suas turmas” e apresentara “comportamento constrangedor contra os pares”.

Como eu nunca preenchera folha-ponto, nem fizera inúteis “atividades de recuperação”, não procurei confirmar se o evento constituiria mais uma manifestação de autoritarismo de uma secretaria. Mas, não me admiraria se o fosse.

No dia seguinte ao da “Revolução dos Cravos”, conversando com um operacional orgulhoso do feito, lhe disse que aquele momento da “revolução” deveria ser o primeiro momento de um processo de “renovação”. Se o povo português adormecera numa ditadura, no dia 24, acordaria democrata, no dia 25? 

Volvidos muitos anos, a administração educacional pouco se renovara. O vosso avô foi perseguido, prejudicado, só por querer melhorar a vida das crianças. Talvez um dia vos conte estórias, que não gostaria de contar. Por agora, ficai com mais uma peça de um participativo e democrático diálogo.

“Percebo que existem professores motivados, mas que não encontram apoio em suas propostas, ficando numa sensação de “estranho no ninho”. Que orientações vocês dariam a um professor que tem vontade de modificar e melhorar, mas não encontra apoio – nem moral como também material – em sua Direção, ou Coordenação?” 

“Dar-lhe-ei a minha opinião, baseada na minha experiência e no contato com outros colegas, que estão a tentar alterar a sua prática. Remar sozinho e conseguir que, dentro da escola, alguns colegas apoiem é muito difícil. Mas Roma e Pavia não foram feitas num só dia. Tudo tem o seu tempo: Lentamente, começando a existir resultados, esclarecendo todos os intervenientes, é possível mudar algo.” 

A administração educacional e a Escola da Ponte sempre seguiram vias paralelas. A primeira, a do autoritarismo; a segunda, a da democraticidade. Embora houvesse um tempo em que, contrariando as leis da geometria, as paralelas se encontrassem. 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXXVIII)

Paraíba do Sul, 10 de fevereiro de 2042

Por volta de fevereiro de vinte e dois, uma administração educacional esclarecida apoiava e avaliava iniciativas inovadoras. Mas, ainda havia quem as tentasse destruir. Rebusquei o baú digital de um velho computador e nele encontrei alguns documentos, que foram úteis nesses conturbados tempos. Nesta cartinha vos darei a conhecer um dos diálogos percursores dos estatutos e termos de autonomia.

“No caso brasileiro, a LDB prevê autonomia progressiva. Você jogou a batata quente no colo dos professores e de sua apatia. Isto é complicado, pois, ao contrário de Portugal, a legislação brasileira não prevê instrumentos de autonomia.” 

A resposta a esta questão foi dada por uma professora brasileira:

“Muito boa sua questão, pois ela nos permite pensar um pouco sobre a dimensão macro da nossa escola brasileira a partir do caso português. A lei portuguesa, mais especificamente o Decreto-Lei nº 115-A/98, de 04 de maio “Aprova o regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário, bem como dos respectivos agrupamentos.” Trata-se de uma lei ampla, que envolve muitos outros aspectos, para além da abertura para que a escola contrate e dispense os seus profissionais.

Sou professora concursada da rede estadual de ensino do Rio Grande do Norte, há 16 anos. Durante esse tempo, jamais soube de nenhum caso de o professor ter sido dispensado, porque não atende aos objetivos do projeto da escola, ou mesmo porque, ano após ano, os seus alunos seguem em frente com enormes fraturas nas aprendizagens. 

Pois bem, em Portugal o Decreto-Lei estabelece que o “projeto educativo, o regulamento interno e o plano anual de atividades constituem instrumentos do processo de autonomia das escolas”. Neste sentido, a comunidade da Escola da Ponte estruturou e defendeu os seus documentos, conforme a sua realidade, a sua práxis, os seus princípios e concepções. 

Quanto à lei brasileira, considero que há muitos clarões que ainda não soubemos aproveitar. E aí a batata está mesmo no colo dos profissionais de educação. Acredito que as mudanças realmente acontecem de baixo para cima. Tanto é que, em Portugal, por enquanto, só existe a Ponte com um contrato de autonomia assinado. E o Decreto-Lei é de 1998! 

A Ponte conseguiu, porque já era autônoma, independentemente de papel, pois se fez transgredindo, o que não é comum se fazer. Somos medrosos, às vezes nada ousados. 

Quando tudo começou, o iniciador aprendeu e ensinou que, para ser autônomo numa sociedade nada democrática, é preciso transgredir as normas estabelecidas, é preciso se expor, enfrentar, estudar, para saber explicar o porquê das coisas. Foi trabalhando aos pouquinhos, inicialmente de forma solitária, depois outros se juntaram. 

Penso que, nem nos tempos mais difíceis, o iniciador do projeto duvidou de que fosse possível. E deve ter feito da esperança o antídoto para o medo. Deu no que deu… Agora, é a nossa vez. Fico feliz, porque sei que em muitos recantos do nosso país há coisas acontecendo.” 

Efetivamente, “estava acontecendo”. Porém, nos idos de vinte, ministérios e muitas secretarias de educação eram lugares onde escasseava competência e abundava corrupção intelectual e moral. Educadores que ousavam inovar sofriam pressões, eram alvos de ameaças impunes. Alguns resistiram. Outros acataram “ordens superiores” e desistiram. 

O assédio moral sofrido pela Fabi foi a “gota de água”. Não mais poderia conter a indignação. Decidi intervir, para ajudar a abolir a impunidade.

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXXVII)

Relíquias de Gandu, 8 de fevereiro de 2042

Ramalho Eanes foi Presidente da República de Portugal. Na década de 1980, inspirou a criação de um partido. Esse partido acabou igual aos restantes e se extinguiu. Nos idos de vinte, um “meme” com a sua imagem e uma citação foi difundido nas redes sociais. Nele estavam inscritas as seguintes frases:

“A desobediência civil não é o nosso problema. O nosso problema é a obediência civil. 

O nosso problema é que pessoas por todo o mundo têm obedecido às ordens de líderes e milhões têm morrido por causa dessa obediência. 

O nosso problema é que as pessoas são obedientes por todo o mundo face à pobreza, fome, estupidez, guerra e crueldade. 

O nosso problema é que as pessoas são obedientes enquanto as cadeias se enchem de pequenos ladrões e os grandes ladrões governam o país. É esse o nosso problema”.

Não havia qualquer registo de que Eanes tivesse proferido essa declaração, ou escrito algo similar. Essa citação teria sido retirada de um livro intitulado “Disobedience and Democracy: Nine Falacies on Law and Order”, publicado em 1968, da autoria do historiador norte-americano Howard Zinn.

O meme circulou nas redes sociais em sucessivas vagas de desinformação. Estávamos num tempo de fakenews, que ganhavam eleições. 

No dia 7 de fevereiro de há vinte anos, a China fechava uma cidade com três milhões e meio de pessoas, para conter o avanço da pandemia. No Distrito Federal, a Média Móvel da Covid-19 chegava a 763 mortes, o maior número desde agosto de 2021. Apenas um quarto das crianças em idade escolar estava vacinada. A variante Ômicron espalhava-se sem controle. Mas falava-se de… “abertura do ano letivo”. 

No Brasil um jovem congolês era barbaramente assassinado, engordando estatísticas de violência gratuita. Mensagens racistas e xenófobas surgiam em escolas e universidades da cidade de Lisboa. “Fora com os pretos”, “Europa aos europeus. Viva a Europa branca”, “Zucas voltem para as favelas”, “Por uma Católica sem escarumbas” foram algumas das frases que se podiam ler nas paredes de instituições de ensino, entre as quais a Universidade Católica, e​​​​​​ escolas secundárias vandalizadas​​​​. 

Nas redes sociais, eram partilhadas fotografias que mostravam frases escritas contra a comunidade cigana, negra e contra cidadãos brasileiros. Além das mensagens racistas e xenófobas inscritas dos estabelecimentos de ensino, os seus autores deixaram nas paredes o símbolo comum, associado a um movimento de extrema-direita​. 

Numa movimentada rua de Paris, sem que ninguém o tenha socorrido, permaneceu nove horas caído e morreu por hipotermia um homem de 85 anos, porque os algoritmos que comandavam as câmeras de vigilância das ruas não estavam programados para detectar aqueles que tombavam. 

De acordo com o Mapa da Violência, entre doze e treze mulheres eram mortas, todos os dias. Segundo dados divulgados pela ONU, o Brasil era considerado o quinto país do mundo com maior número de feminicídios. 

O que teria tudo isso a ver com a Educação? Giroux, na obra “Teoria Crítica e Resistência em Educação”, avisava que, com os seus cronogramas e relacionamentos hierárquicos, a rotina da maior parte das salas de aula atuava como um freio à participação e aos processos democráticos.

Um “sistema” nascido da espúria aliança firmada entre políticos corruptos e pedagogos corruptos era a causa de atrocidades dessa natureza. Talvez o dito do Zinn fizesse sentido. O nosso problema era a “obediência civil”. O “sistema” deveria ser erradicado. Insanidades deveriam ser desobedecidas. 

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXXVI)

Bertioga, 7 de fevereiro de 2042

No janeiro de 2022, a OCDE divulgou o estudo “Back to the Future of Education”. Nele se previa que, vinte anos depois (há dois anos, portanto) a escola estaria possuída pela inteligência artificial, a realidade virtual. Admitia-se no documento o eventual desaparecimento dos professores, ou a sua sobrevivência limitada a conceber conteúdos para serem administrados por robôs. 

O relatório da OCDE previa o desaparecimento dos sistemas de ensino existentes nos idos de vinte e a mistura de aprendizagem no domicílio e aprendizagem online.

Embora o estudo refira “ensino”, ousei substitui-lo por aprendizagem, porque, quando demolimos um perverso “sistema”, uma nova construção social de educação evitou o descalabro previsto no documento da OCDE.

Em 2022, milhões de alunos ainda experimentavam os efeitos do fecho dos prédios das suas escolas. As tecnologias digitais facilitavam invasões da vida privada, condicionavam a saúde mental das comunidades, comprometiam o exercício democrático. A Escola continuava a formar autómatos.

Os investigadores da OCDE viam o futuro da Escola como cada vez mais desumanizado. Era posto em causa o conceito de humanidade, pois éramos máquinas sujeitas a manipulações tecnológicas. A ciência e a tecnologia se aliavam ao mundo empresarial global. O capitalismo digital fundia máquinas com humanos dominados por algoritmos. 

O ser humano virava produto comercializável. O período pandêmico foi balão de ensaio de burocratas, tecnocratas e mercadores. Triliões de metadados eram usados em marketing, para dominar comportamentos e obter lucro. Nos velhos Instagram e Facebook, poderíamos ler anúncios deste tipo: 

“Quer economizar tempo e aumentar a sua renda?

A BNCC te enlouquece? Cansou de tanto tentar e não conseguir? Temos a solução! 

Você irá receber planejamentos para-o berçário, pré-escola e educação infantil.

Aulas prontas para professores. É só adquirir abrir e utilizar. 

Garanta o preço promocional. Planos de aula prontos de 167 reais por 67,90”.

Numa sugestiva imagem internética, uma jovem falava ao ouvido de outra jovem:

“Amiga, eu encontrei planejamentos anuais de aulas prontos. Faça a diferença na vida dos seus alunos!”. 

Havia quem comprasse tais produtos, pois secretários, diretores e supervisores aprovavam a compra. Abutres fossando na carcaça de um velho modelo educacional tentavam disfarçar a sua obsolescência, recorrendo a propaganda enganosa: 

Escolher uma escola de qualidade para os filhos é importante. A metodologia, a grade curricular, a aprendizagem mediada por tecnologia, o espaço de aprendizagem, o corpo docente preparado para os desafios contemporâneos são alguns dos pontos mais importantes na hora de definir onde o seu filho irá estudar.

A nossa escola é reconhecida por unir aprendizagem e conscientização com o meio ambiente. Imersão bilíngue, turmas integrais, Ensino Fundamental inovador e contato com a natureza são alguns dos diferenciais oferecidos na metodologia”.

Desarmados de bom senso, desprovidos de senso crítico, muitas famílias se deixavam seduzir por esse arrazoado delicodoce.

Epstein dizia que a escola servia para “educar humanos por humanos, para o bem da humanidade”. Chamava a atenção para a importância da relação humana na educação e, também, para o fim último da educação: o bem da humanidade. mas, os investigadores da OCDE pensavam à luz do tempo imediato. Os educadores com quem eu convivia encaravam o futuro com preocupação, mas não se dispensavam das suas responsabilidades no presente.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXXV)

Sítio da Ana, 6 de fevereiro de 2042

Decorria o mês de janeiro de 2007. Cheguei ao local do congresso a tempo de escutar a palestra de uma amiga. Deixei-me ficar pelas últimas filas do auditório, para evitar que me vissem. 

Contrariamente ao que me habituara a assistir em idênticas situações, a palestrante não usou power point. E começou por dizer:

“Há alguns anos, visitei a Escola da Ponte. Portão aberto, crianças brincando, fui entrando. Uma criança veio ao meu encontro.

“A senhora vem conhecer a nossa escola? A senhora quer que lhe mostre a nossa escola?”

Perguntei-lhe:

“Sabes dizer-me onde é o gabinete do diretor?”

“Diretor? – perguntou a menina – “Aqui, não tem nada disso.”

“Não tem? Não há diretor?”

A menina deu mostra de entender:

“A senhora procura o Professor Zé?” 

“Sim. Onde está o Professor Pacheco, o diretor da vossa escola?”.   

“Onde havia de estar, minha senhora? Está com as crianças.”

E lá se foi a menina.

Não tardei a encontrar o “Professor Zé”, junto de um grupo de crianças, tocando violão, ensaiando “reisadas”. Não quis interromper. Fui observando tudo à minha volta. Algumas crianças em trabalho de grupo, outras em pesquisa no computador, educadores circulando, música de fundo, serenidade…”

Ignorando a minha presença, a palestrante iniciou uma conversa amena com o auditório, explicando o que vivenciou na Ponte, sublinhando a surpresa de ter visto um diretor… com crianças.

Na Ponte, todos os educadores eram “diretores”, seres humanos autônomos em equipe, profissionais de trabalhar com crianças, gente longe de outros “papeis”. Nos transformáramos. A gestão era pedagógica, trabalho com alunos. E a “direção” dispensava “papelada”, coisa de ocupar burocrata.

Numa das minhas andanças brasileiras, mais uma escola visitei. Fui muito bem recebido pela diretora, no seu gabinete. Conversa amena, até que ela se queixou de ter recusado matrícula por “falta de professores”.

“Não temos mais vaga. As turmas estão completas. Temos mais de cinquenta crianças à espera. Eu acho que a secretaria vai arranjar transporte para elas irem para outra escola”.

Vim a saber, mais tarde, que a secretaria de educação, todos os meses, desperdiçava cerca de milhão e meio de reais, para assegurar o transporte de alunos desse bairro para escolas situadas a mais de dez quilômetros de distância. Questionei a diretora:

“Se a Lei estabelece que a educação é direito de todos e se o Anísio recomendava que as crianças fossem “caminhando para a escola, então, o que é uma “vaga”? Por que há “turmas”? Por que é preciso transportar alunos?”

“Que quer que lhe diga, colega? É o sistema!” – respondeu.

E mais não pode dizer. A conversa foi interrompida, quando uma coordenadora veio dizer que chegara a hora da “reunião de planejamento”. E lá se foi a diretora, com pedido de desculpa pelo caminho.

Antes de partir para outra escola, pude conversar alguns professores. E escutar uma confidência:

“A nossa diretora só raramente sai do gabinete. E só para ir às reuniões. A vice-diretora, também. As coordenadoras passam a maior parte do tempo na sala das coordenadoras. E há mais gente que não tem turma atribuída”.

Com a pressa, a senhora diretora não chegou a dar resposta às minhas perguntas, porque… “era o sistema”.

No Portugal de há mais de meio século, concebemos uma nova construção social de educação. Em avaliações externas, ficou provada a boa qualidade de um projeto, que não tinha “diretor”. O projeto assentava no valor solidariedade. Se, no Brasil, ainda vigorava o “sistema”, solidariamente, ajudei os educadores brasileiros a demolir o… “sistema”.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXXIV)

Mendes, 5 de fevereiro de 2042

Faz, hoje, vinte anos, partimos de Mendes para Mogi. Acompanhava e ajudava a incansável brasileira Cléo na busca de diálogo, entendimento e mudança. Fomos ajudar o André, amigo merecedor da nossa solidariedade, a braços com dificuldades causadas por um obsoleto modelo de administração educacional. 

Para trás deixávamos a promessa de voltar ao lugar do “Encontro de Mendes”. No fevereiro de vinte e dois, o sonho de Darcy começava a tomar forma. Começava a demolição do aparato instrucionista. E a Maria Paula preparou o melhor de encerrar o ciclo de visitas às escolas, que iriam participar do projeto: a inauguração de um “Observatório da Aprendizagem”. 

Sala cheia de cidadãos de Mendes, de educadores, de amigos. A prefeitura fez-se representar pelo subprefeito Jiló. Esteve presente o Presidente do Conselho Municipal de Educação, vereadores e convidados. O breve discurso do jovem nonagenário Célio foi comovente. Observei a reação da Aline, as lágrimas de emoção verdadeira, que lhe caíram pelo rosto. Senti a presença de Freire, estava na companhia de educadores sensíveis, amorosos, corajosos. Estava bem acompanhado. 

Ali, havia verdade. Senti que valera a pena ter ido até lá. E prometi voltar. A Maria Paula tinha reunido uma equipe capaz de colocar a educação de Mendes no século XXI. Ali, se construía comunidade. Ali, se tentava unir o que um sistema obsoleto de ensino havia desagregado. E veio à memória o que a minha amiga Tina me fez recordar, nas palavras de um jovem centenário de nome Edgar:

“Como nossa educação nos ensinou a separar, compartimentar, isolar e, não, a unir os conhecimentos, o conjunto deles constitui um quebra-cabeças ininteligível. As interações, as retroações, os contextos e as complexidades que se encontram na man’s land entre as disciplinas se tornam invisíveis. 

Os grandes problemas humanos desaparecem em benefício dos problemas técnicos particulares. A incapacidade de organizar o saber disperso e compartimentado conduz à atrofia da disposição mental natural de contextualizar e de globalizar.

A inteligência parcelada, compartimentada, mecanicista, disjuntiva e reducionista rompe o complexo do mundo em fragmentos disjuntos, fraciona os problemas, separa o que está unido, torna unidimensional o multidimensional. É uma inteligência míope que acaba por ser normalmente cega. Destrói no embrião as possibilidades de compreensão e de reflexão, reduz as possibilidades de julgamento corretivo ou da visão a longo prazo”

Na França dos “sete saberes necessários à educação do futuro”, o Mestre Morin apontava caminhos que um visionário de nome Darcy tentou percorrer. No novembro de 1983, Mendes o acolheu. Montes Claros o vira nascer. Em Brasília partiu para junto dos companheiros Florestan e Anísio, sem ter concretizado os seus desígnios – “Meus fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.

Atormentado pelo torpor das metástases, Darcy ainda conseguiu traduzir “tudo o que o Brasil poderia ser e ainda não era”. A escrita de “O povo brasileiro” é reflexo do convívio com as comunidades do Xingu, uma mistura de experiências colhidas na espiritualidade africana, na sabedoria e tecnologias sociais de portugueses, italianos, alemães, japoneses, judeus, árabes e outros povos, que constituem um criativo caldo cultural. Esse enorme e sincrético potencial foi historicamente “entravado pela classe dominante medíocre que impede o desenvolvimento da civilização brasileira”.

Em Mendes, chegara o tempo de o “desentravar”.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXXXIII)

Itakamozi, 4 de fevereiro de 2042

Netos queridos, para o vosso avô-coruja, o latino “ad-mirare” vai além do olhar com espanto, de contemplar com deleite, maravilhar-se. É sentir respeito, profunda admiração. Sois interlocutores do fim de um tempo anunciado pelos futurólogos do século XX. Vos admiro, por vos interessardes, em 2042, pelas deambulações da memória de um velho, que vos fala de assuntos considerados maçadores nos idos de vinte.

Já entrado nos setenta, a andarilhagem não tinha fim à vista. De Portugal para o Brasil, do Brasil para Portugal, enfrentando dolorosos PCR e correndo risco de contágio em aviões superlotados, ia ao encontro de novos e auspiciosos projetos. Ao cabo de dezenas de anos de dura militância, recebia pedidos de ajuda de autarquias, agrupamentos de escolas, secretarias de educação e educadores E eu não aprendera a dizer não.

De Portugal, chegava a notícia de que tínhamos um governo de maioria absoluta. Dessa vez, o ministério não teria desculpa alguma para não fazer a mudança necessária. 

Essa fora uma boa notícia. A má notícia foi a de que a Teresa desistira de cumprir o projeto do Casal do Sapo. O diretor “não autorizava” e a minha amiga se resignava. Respeitei a sua decisão, mas não deixei de lhe sugerir que procurasse outro professor, para reassumir o projeto. Ou que as mães dos seus alunos se organizassem, para que o projeto da escola fosse cumprido. Em aprendizagem à distância, eu poderia ser tutor dos seus filhos. Desistir? Nunca! Tinha chegado o tempo de “desnaturalizar” a desistência. 

Seria “natural” que se desistisse de sonhar, de amar e agir? Poder-se-ia considerar “natural” que um diretor não autorizasse um professor a ir até ao outro lado da rua com os seus alunos, para recolher um pássaro ferido? Ou que o senhor diretor exigisse de uma professora um pedido de “autorização superior”, se ela quisesse que os seus alunos convivessem com um pavão? 

Havia quem pensasse ser legítimo “naturalizar” atitudes autoritárias. Era “natural” que o governo de um estado condicionasse o pagamento da merenda escolar à subordinação dos municípios a um modelo educacional destruidor de vidas. Era “natural” que umas “antas” investidas na função de supervisoras ameaçassem a Fabi, só porque essa extraordinária educadora pretendia colocar a sua escola dentro da lei. era “natural” que o modelo educacional imposto à escola pela administração educacional a colocasse à margem da lei. 

Nesse tempo, era naturalizado o que era “contranatura”. E, para manter o status quo, ou para garantir mordomias, até se chegava ao cúmulo de achar “natural” que ilegalidades fossem cometidas. 

Na mitologia grega, Pandora, a primeira mulher criada por Zeus, foi oferecida a Prometeu, que a recusou, temendo ser um ardil. Rejeitada, Pandora se casou com o irmão do titã. Zeus a presenteou com uma caixa, recomendando que jamais a abrisse. Curiosa, Pandora abriu a caixa. De dentro dela saltaram todos os flagelos da humanidade: guerras, mortes, múltiplas violências, pobreza, pandemias e… “naturalizações”. 

Quando se apercebeu do mal causado, Pandora fechou a caixa, sem reparar que dentro dela ficara a… esperança.

Triste fiquei, quando a minha amiga Teresa sucumbiu perante as “naturalizações” sofridas. Exultei, quando outros educadores reabririam a caixa onde agonizava a esperança. Como fênix renascida, enfrentaram adversidades, duras provas. 

O grande desafio da vida de educador era o “desnaturalizar”, suportar a dor da humana condição. Já dizia o poeta que, para passar além do Bojador, se teria de passar além da dor.

 

Por: José Pacheco

Posts navigation

1 2 3 72 73 74 75 76 77 78 147 148 149
Scroll to top