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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXV)

Évora, 18 de junho de 2041

Numa escola brasileira dos idos de vinte, escutei a repetição da ladainha: 

“O Dadá comeu xuxu e o vovô viu a uva”. 

Frases a roçar a imbecilidade desanimavam o mais animado dos alunos. Filhas diletas do chamado “método fônico”, condenavam muitas crianças ao ódio por tudo o que fosse livro. Como escapar á praga do analfabetismo, se as escolas iniciavam as crianças na aventura de ler, forçando-as a um coro de melopeias sem sentido? 

Num congresso, escutara o educador João, afirmando, peremptório:

“Os países desenvolvidos já perceberam que o fónico é mais eficiente do que todos os outros. Principalmente, no caso de crianças que têm dificuldades de leitura”. Isso não é especulação ou diletantismo académico. Está provado cientificamente”. 

O educador não informava quais eram as provas científicas. E eu poderia dizer-lhe que dispunha de dados empíricos, que demonstravam o contrário, apenas porque trabalhava no chão da escola. E o João talvez nunca tivesse posto lá os pés, talvez nunca tivesse sido alfabetizador… na prática. 

A educadora Magda, por seu turno, argumentava:

“A alfabetização é um processo muito complexo e a criança aprende de várias maneiras. Uma dessas maneiras é a relação entre fonemas e letras, mas não é a única”

O contraste entre os dois educadores era evidente. Não era uma mera questão de diferença de género, mas de mentalidade. Não poderei deixar de realçar a posição de bom senso e de moderação assumida por defensores da linha construtivista. Os construtivistas afirmavam “haver uma polaridade falsa entre os dois métodos, no Brasil”, que os dois poderiam ser combinados e que, em alguns casos, o fónico poderia até ser o mais indicado para um determinado aluno, mesmo que ele estudasse numa escola construtivista. 

Essa posição diferia do discurso fundamentalista de adeptos do método fónico. A argumentação era pobre, num registo do senso comum. Eu não pretendia tomar partido nessa discussão, mas, eis que chega a “gota de água”! 

Para caucionar o extremismo, um articulista adepto do método fónico referia que “os governos da França, Inglaterra e Estados Unidos desaconselharam ou proibiram o uso do método global e os EUA não financiam programas que descartem o método fónico”. Sibilinamente, concluía, dizendo que essas eram evidências de que o Brasil estava remando contra a maré dos países desenvolvidos. 

Que se desenganasse o articulista, pois a maré era a mesma. Não se trataria de concluir se um ministério deveria introduzir novos métodos, ou ressuscitar métodos velhos. O que estava em jogo era algo mais subtil. Não acreditava que algum governo de algum país “desenvolvido” tivesse logrado concretizar qualquer reforma nesse domínio. 

Escrevia o mesmo articulista:

“Não se deve transformar a alfabetização num problema ideológico”. 

Nem seria preciso! As opções dos governos já eram, por si, ideológicas. Ou, ingenuamente, pensaria o articulista que o não seriam? 

O que estava em causa não era a adopção do método A, ou do método B. Era a necessidade de as escolas atenderem à diversidade, de repensarem o espaço e o tempo escolar à medida de cada criança. Era preciso que cada um pudesse ser cada qual. Seria indispensável considerar o ritmo de cada criança, o estilo de inteligência de cada criança, a cultura de origem de cada criança, o capital linguístico de cada criança, o repertório de linguagens de cada criança. 

Se os professores deixassem de ensinar a todos como se fossem um só, quase todas as causas do insucesso no aprender a ler e a escrever estariam erradicadas. Com fónico, ou sem fónico.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXIV)

Crato, 19 de junho de 2041

Apresentei o alvará e logo escutei um comentário: 

“De um homem é que nós estávamos a precisar!” 

De imediato, não compreendi a razão da masculina preferência. Mas logo me foi explicado que seria bem-vindo um pedagogo musculado que pusesse na ordem umas pestes de uns alunos, que por aquelas paragens perturbavam a placidez dos dias. 

Trinta repetentes crónicos, armazenados numa só turma, a chamada “turma do lixo”

Era assim que, na distante década de setenta, apelidavam seres humanos a quem era negado o direito de aprender. E que se vingavam, transformando a vida das professoras num inferno. 

“Olhe, colega, à professora eu você veio substituir partiram-lhe um braço!”

A professora que por lá tinha passado no ano anterior jurara para nunca mais… Tinha sido insultada e apedrejada. O material didático que, na melhor das intenções, ela confeccionava, voava janela fora. E lá se foi, um dia, de atestado médico. 

“Um colega é que nos estava mesmo a fazer falta. Do que estes trogloditas precisam é de um pulso firme! Infelizmente, no primário não podemos pô-los na rua, nem os mandar para casa! Não é?” 

“Ainda bem!” – respondi, na mais pura ingenuidade dos “verdes anos” de profissão. 

Foi como entrar com o pé esquerdo naquela escola. As colegas passaram a olhar-me de esguelha, como quem pensa: 

“Lá vem em este armado em bonzinho!”

Para abreviar, dir-vos-ei apenas que tudo acabou bem. Só não houve castigos para os maus (como acontece nas telenovelas), porque, afinal… eram todos bons rapazes. 

A prática de segregação, da exclusão, serviu para legitimar a banalização de um iníquo sistema de sanções. Os processos disciplinares funcionaram como amortecedores de tensões, não lograram eliminar as causas dos conflitos. Sob a eufemística designação de “medidas educativas disciplinares”, recorria-se à panaceia das repreensões, suspensões, expulsões e quejandos, reflexos de uma racionalidade arcaica, infectada por sentimentos negativos de desconfiança e insegurança. 

A indisciplina era a filha dileta do autoritarismo e da permissividade. A disciplina era a liberdade que, conscientemente exercida, conduzia à ordem. Não era uma ordem imposta, que restringia ou negava o exercício de uma liberdade responsável. Enquanto não se compreendeu isso, não se compreendeu nada. 

A disciplina não poderia ser alcançada e mantida com recurso a mais castigos, normas, multas, punições. Talvez dependesse da criação de condições para o exercício de uma cidadania plena, dentro e fora do prédio da escola, algo que viabilizasse a formação pessoal e social de pessoas responsáveis pelos seus atos, individuais e coletivos, algo que dispensasse quaisquer imposições normativas de códigos de conduta. Talvez bastasse elaborar acordos de convivência.

Mas, como conseguir tal desiderato, se as escolas raramente se constituíam em espaços democraticamente organizados? Quem instituía as regras, os direitos, os deveres? Quem estabelecia e geria horários e calendários? Onde encontrar uma pedagogia – ou uma antropogogia – da participação e da democraticidade? 

Era o aluno que estava doente, ou estaria doente a escola e a sociedade, que a engendrou? Seria com mais represálias que se eliminaria as causas do desconforto de múltiplas violências? O respeito, que muitos diziam estar em défice, não seria uma réplica do medo que sentiam da sua “escola do antigamente”? 

Qual o significado da expressão “comportamento desviante”? Como poderíamos pensar em controlar as águas revoltas de um rio, se nos esquecíamos das margens que as comprimiam?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXIII)

Sesimbra,17 de junho de 2041

Quando já temos alunos que são professores, apercebemo-nos de que estamos mesmo muito velhos. O Filipe foi meu aluno e, depois, um excelente professor. Sempre que tropeçava nos absurdos das escolas que ainda tínhamos, nos idos de vinte, partilhava comigo as experiências. Partilharei convosco uma das histórias que o Filipe me contou. 

“Um aluno perguntou-me: “Professor, o sumário é para escrever a azul ou a vermelho? Professor, deixo uma, ou duas linhas?” 

“Decide tu meu rapaz, a escolha é tua”. 

“Nas outras disciplinas, eu escrevo o sumário a vermelho e o resto a azul” – replicou o moço. 

Eis o comentário do Filipe:

“Em cinco anos de escolaridade, não conseguiram ensinar a este rapaz se deverá escrever a azul ou a vermelho. A escola fez um trabalho notável neste aluno. Ele tem boas notas, é bem-comportado, não perturba a aula, nem faz perguntas sobre as matérias. Mas, se a escola não lhe ensinou a decidir entre o azul ou o vermelho, o que irá ele fazer, quando tiver que tomar decisões? Telefonará ao professor?” 

O Filipe possuía um apurado senso crítico. E refletia:

“O pior de tudo, professor, foi que eu me revi naquela criança. Também me ensinaram que tudo estava pré-determinado. Nunca escolhi caminhos, porque a escola sempre me conduziu. Durante dezesseis anos, foi como se entrasse numa escada rolante de um shopping e, sem me mexer, conseguisse subir e descer andares”.

Durante a visita a uma escola, escutei as lamúrias de um novo velho professor, da mesma idade do Filipe: 

“Nesta turma, tenho um aluno que faz muitas perguntas e que me quebra o ritmo da aula. Ainda se as perguntas tivessem relação com o meu plano de aula, ainda vá!… Mas nem isso! E ele até faz perguntas, que eu não sei responder!” 

No tempo do Filipe, nos anos vinte, ainda havia professores que insistiam na prática de um modelo escolar falido, assente na sacrossanta aula, na cinzenta organização em turmas. Havia professores em tudo idênticos aos do tempo em que eu tinha a idade do Filipe. As aulas do tempo em que eu tinha a idade que o Filipe tinha eram da cor do quadro preto, o monocromático modelo se repetia. 

Há quase um século, Freinet dizia que o único papel que o aluno desempenhava, no seu tempo, era o de uma fita magnética que gravava as palavras para as reproduzir, sem que existisse o menor processo de integração. E citava Montaigne:

“Saber de memória, não é saber”. 

Montaigne reagia ao “costume escolástico de impor os conhecimentos como quem os despeja por um funil”. 

Escutei o Filipe, com solidária atenção. Fiz-lhe ver que já era assim, no tempo em que eu era um jovem professor como ele era. Evoquei episódios semelhantes, para que compreendesse que nada mudara, desde há séculos. Por que razão os alunos faziam perguntas a preto e branco? Por que razão, nos idos de vinte, os professores elaboravam planejamentos de aula para um cinzento “aluno médio”, se cada aluno era um ser único e irrepetível, se uma turma era uma paleta de cores e era imensa a gama de tons?” 

Eduardo Galeano colheu uma frase, escrita numa parede de Quito e divulgou-a no seu livro “Palavras Andantes”: 

“Quando tínhamos todas as respostas, mudaram as perguntas”. 

No tempo do saudoso Galeano, tinham decorrido dois séculos sobre a criação da escola das respostas, de uma velha escola, que não se interrogava, que dava respostas, sem que se apercebesse de que as perguntas tinham mudado. Mas é grato recordar que, no périplo português de junho de 2021, encontrei professores que davam cor a escolas onde ainda reinava o preto e branco. Curados do daltonismo pedagógico, buscavam uma escola arco-íris.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXII)

Quinta do Conde, 16 de junho de 2041

Vai para quarenta anos, no site de um sindicato, li mensagens enviadas por “professores”, com acusações de “fraude” num concurso para recrutamento de professores. Netos queridos, as mensagens eram acompanhadas de expressões que, por serem tão sórdidas, me inibo de as transcrever. 

Considero que o sindicato cumpriu o seu dever de dar voz a todos, porque, felizmente, o tempo da censura já longe ia. Mas, em democracia, não valia tudo!

Conhecia melhor do que ninguém a escola a quem eram imputadas as supostas “ilegalidades”. Sabia que o concurso decorrera dentro da legalidade. Não poderia ficar indiferente a calúnias lançadas por quem, provavelmente, se via ao espelho e fazia juízos de valor sobre os outros, a partir da sua escala de valores. 

Das duas, uma: ou se instaurava um inquérito à escola, ou a quem a caluniava. A escola optou por não proceder judicialmente contra os “anónimos” autores das mensagens. Mas, deveria ser tempo de não ficarem impunes criaturas de determinada estirpe. 

Remeter-me-ei à questão essencial: as escolas deveriam, ou não, escolher os seus professores? 

Ao cabo de trinta aos, a Escola da Ponte conquistara o direito de os escolher, em concurso universal e segundo critérios claros. Recordo-me de, por essa altura, ter sido interpelado por um dirigente sindical, durante uma palestra: 

“Zé Pacheco, tu não achas que a Ponte criou um grave precedente?” 

Eu entendi a intenção, mas fiz-me desentendido: 

“Qual precedente?” 

Estimulado por numerosa claque, o sindicalista insistiu: 

“Isso de escolher os professores vai dar azo a compadrios e amiguismos! A favoritismo! A desonestidade!” 

Visivelmente tomado por intensa sindical emoção, o porta-voz da claque gritou as últimas frases, e foi ovacionado. Esperei que a turba se acalmasse. E perguntei: 

“Disseste desonestidade? Consideras que há professores desonestos?” 

O líder da claque titubeou: 

“Não era isso que eu queria dizer….” 

“Mas disseste”.

E mais o Mário não disse. A claque emudeceu e se retirou, rezando imprecações, em surdina. 

Em nome do “direito ao emprego”, os professores da Ponte foram obrigados a aturar auleiros acomodados que, à sombra de um “contrato administrativo”, prejudicaram o desenvolvimento do projeto. 

“Ó colega, faz-se concurso, para se ficar mais perto de casa, não é?” 

Eu emitia um lacónico comentário e ficava atento às práticas, verificando que, dentro da racionalidade dos concursos, se negava aos professores a escolha de um projeto, no qual se sentissem realizados como pessoas e como profissionais.

Muitos dos concurseiros apenas buscavam um emprego, ficar mais perto de casa (o que era legítimo) ser funcionário público. 

Instalados em contratos definitivos, se deixavam “funcionarizar”. E não foram raras as vezes em o carácter vitalício das colocações agiu como óbice à mudança. Vi professores “vitalícios” destruindo trabalho construído ao longo de muitos anos. 

A centralização dos concursos nas estruturas ministeriais pressupunha desconfiança em relação à capacidade de escolha de escolas e professores. A “funcionarização” dos docentes “com nomeação definitiva” era causa de desqualificação profissional, origem da extinção de projetos, contributo para a manutenção de um sistema iníquo.

A experiência da “contratação sem intermediários” demonstrou vantagens. A autonomia que a Ponte assumiu, em 2004, dispensou a intervenção da burocracia ministerial. Somente aderia ao “Fazer a Ponte” quem se comprometesse cumpri-lo. Ali, não havia livro de ponto, nem horários de “funcionário”. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXI)

Seixal, 15 de junho de 2041

Em 2021, arrisquei fazer um último périplo por Portugal, ao encontro de educadores não-desistentes. O Manuel, a Paula e o João amorosamente cuidaram da logística. A Carina, o André, o David e tantos outros amigos me acolheram nas suas casas. Grata surpresa me esperava. Pela primeira vez, deparava com gestores predispostos à mudança: o Pedro, a Clara, o Nuno e alguns mais. Também havia um João… no ministério.

Nos encontros desse périplo, arrisquei abordar assuntos como o dos concursos e colocações de professores. Algumas conversas o suscitaram.

“Eu acho que as escolas deveriam ser como dizes, mas, com as condições que eu tenho, eu não posso…” 

Interrompi o discurso do meu amigo professor: 

“A que condições te referes?” 

Balbuciou qualquer coisa acerca do número de alunos por turma, falta de espaço, falta de tempo e de material. Depois de uma fraterna desconstrução de ideias feitas, o professor admitiu que o que faltava era outra coisa. Mas, fugiu para a frente: 

“Mesmo que os teóricos falem de ensino diversificado, com trinta ou mais alunos em cada turma, nunca poderemos fazer esse ensino. E não se pode pedir a um aluno de sétimo ano o que se pode exigir a um que está no oitavo. Não se pode voltar atrás, porque temos de cumprir o currículo” 

Interrompi-o, mais uma vez: 

“Explica de modo que eu entenda!” 

“Por exemplo, na minha escola havia alunos que estavam no terceiro ano e ainda não sabiam ler nem escrever. Pusemos tudo de lado e aproveitámos bem o tempo. Trabalhámos só a Língua Portuguesa”. 

Mais uma interrupção: 

“E a Educação Física? E a Musical? Não fazem parte do currículo?” 

Não respondeu. Nem precisaria, porque os professores não detêm o monopólio das “ideias feitas”. Frequentemente, os absurdos são instituídos por determinação ministerial. Esse meu amigo jurou ter lido em legislação recente e num artigo de jornal. “Planos de recuperação” poderão ser aplicados em alunos, para que “recuperem do atraso”; “aulas de recuperação para alunos mais fracos”, ou que não tenham tido um “desempenho aceitável”. Não definiu conceitos como o de “aluno mais fraco” ou de “desempenho aceitável”, ou se foi pedida às escolas a explicação dos “atrasos”. Dele escutei sugestões naif: 

“Prolongar o ano letivo em mais alguns dias. Reunir os mais fracos para trabalharem matéria que não compreenderam tão bem”. 

Não pude deixar de rir perante o modo solene como o meu amigo descreveu estas e outras óbvias sugestões de “flexibilização curricular” e me falou em “passar de ano para semestre”, prevenir situações de “retenção repetida”. Legitimava-se processos de exclusão escolar e social, quando se sugeria que se constituíssem turmas com “currículos próprios” constituídas por “alunos sem sucesso escolar” ou com “problemas de adaptação” (sic). 

Nos idos de sessenta, eu havia passado pela primeira tentativa ministerial de “flexibilizar o currículo”. Com todo o respeito e solidariedade, lhe perguntei:

“Em que século estamos, meu amigo?”

Inspiradas na lógica fabril, com os seus cronogramas de produção e relacionamentos de trabalho hierárquicos, muitas escolas agiam como freios ao desenvolvimento, mantinham-se cativas de abstrações como: “turma”, “carga horária”, “aula”, ano letivo”. 

O ministério era costumeiro em emitir disparates. Em 2021, exagerou. E eu não conseguia entender como, ministerialmente instalado, um João das ciências da educação permitia que as escolas não reconfigurassem as suas práticas, que adoptassem “planos de recuperação” e outros “remendos pedagógicos” ministerialmente decretados.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLX)

Sesimbra, 14 de junho de 2041

A todo o instante, os professores se confrontam com situações de desgaste, que interpelam o seu centro de gravidade profissional e afetam a sua autoestima. Os mais frágeis protegem-se. Os mais resistentes preservam o essencial da sua pessoa (o que é mais do que legítimo). Estes não correm risco de depressão, mas o Freud explicaria os processos de transferência que
são desencadeados.

Continuo desfiando o rosário de desabafos, que me chegavam sob a forma de e-mail:

“Escrevo-lhe para compartilhar um pouco das minhas angústias. Contar um pouco sobre a minha experiência na escola. Não tem sido nada fácil. Eles pensam a educação de forma fria, sem sentimento. Eu e mais duas companheiras estamos cada vez mais indignadas com a situação. Temos que ouvir dos nossos colegas de turma que a escola em que acreditamos não passa de um sonho, uma utopia. Dizem que não chegaremos a lugar algum com essas ideias românticas sobre educação. Dizem-me: Não podes ser lírica. Atende à realidade! Mas de que realidade me falam? Estou preocupada com conversas que ouço entre professoras: Então, em que letra vais? Olha, eu já vou no q de quá quá! Mas tenho que me despachar, porque a colega Mariana já vai nos grupos consonânticos. Que tristeza!”

Eu vou respondendo aos professores que me enviam estas mensagens, dizendo que compreendia o drama das professoras, das que iriam ter e das que não iriam ter tempo de “dar o livro todo”.

Se elas soubessem o que o programa requeria, o drama seria bem maior. Felizmente, desconheciam, não trabalham o currículo, apenas “davam aula” pelo que constava do livro didático.

Um relato semelhante chegou até mim vindo de uma jovem professora de ensino secundário português:

“Com o mesmo aperto no peito lhe escrevo. O sonho comanda a vida, mas o sonho dos homens de hoje já não é o do poeta. Os sumários das minhas colegas são mais ou menos isto: dia 10, pág. 15″. Não vai acreditar, mas ouvi o seguinte diálogo, na sala dos professores: “Ainda só vais na página quarenta? Eu já dei a lição da página sessenta. Ai, tu também dás os textos em verso? Eu não perco tempo com isso. Eu cá dou o programa do décimo primeiro ano. Se eles não sabem o programa do décimo, o que é que eu tenho com isso?” Dizem-me achar estranho o modo como trabalho. Explico-lhes o como e por quê. Pergunto-lhes pelo como e o porquê do modo que fazem. Não me sabem explicar. Então, eu digo que acho estranho o modo (sem explicação) como trabalham. Riem-se de mim”.

Lia os apelos, solidarizava-me, recomendava que a professora que ainda o era não perdesse tempo com aqueles que ainda o não eram, ou que deixaram de ser. Não se deveria perder tempo com os que se riam da própria ignorância. Se os dadores de aulas acreditavam que bastava “dar os textos em prosa”, lá teriam a sua razão.

Conservador é o partidário de um sistema, no qual se procura assegurar a continuidade. Na Itália do regime fascista do Duce, as corporações modernas, herdeiras das análogas da Idade Média, estavam submetidas às ordens do Grande Conselho Fascista. Era ele quem ditava o que fazer em sala de aula. O mesmo acontecia na ditadura de Salazar.

A democracia não lograra alterar hábitos escolares. Não custava nada “dar aula”. O “livro do professor”, que acompanhava o manual do aluno, já trazia os exercícios feitos e corrigidos. Se já tudo estava pronto a consumir, os modelos prontos, as respostas preparadas, poucos seriam os interessados em pensar nos porquês do “fazer”. Seria preciso explicar o “como fazer”?

Se fossemos radicais, até poderíamos perguntar: Será preciso passar por um curso de professor?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLIX)

Lisboa, 13 de junho de 2041

Há vinte anos, o “Dia de Santo António” foi comemorado num domingo soalheiro, mas, a Fabiana, a Janaína e a Luciene não puderam ir para a rua, nem com máscara protetora da covid. Estavam em Portugal, mas em quarentena.

No Brasil, seu país de origem, a tragédia parecia não ter fim. Quando, no mundo, já se pensava em retirar as máscaras, cidades brasileiras se fechavam e criavam até barreiras de terra para evitar turistas. A ocupação de UTI para Covid-19 chegava a cem por cento, em várias capitais. O número de mortos aproximava-se de meio milhão. 

Nas terras do sul dos idos de vinte, a moda pedagógica era o ensino doméstico. Começara a discussão no parlamento. Mas, no Rio Grande do Sul, um projeto já fora aprovado. Políticos populistas faziam valer pseudoargumentos. Nesse tempo, os gestores de política educacional, não eram especialistas em educação, mas eram eles que tomavam decisões. Desconheciam rudimentos das ciências da educação, aliavam-se a fundações e institutos empresariais, reproduzindo na educação as lógicas de mercado e da economia. E contavam com atitudes afins por parte de gestores tão ignorantes da pedagogia quanto eles. 

Por essa altura, recebi um e-mail, que terminava assim:

“Minha última notícia, agora definitiva na escola em que trabalho, foi de que não sou mais autorizada a trabalhar com a turma piloto pois as gestoras consideraram que “não é viável para as crianças”. Depois de algumas reuniões, fiquei um pouco desanimada, mas não desistirei”. 

Nos idos de sessenta, Agostinho da Silva escreveu que: 

“A maior parte dos professores que combatem métodos novos fazem-no porque os desconhecem, ou porque todos à volta se conservam na rotina, num próspero analfabetismo em que uma boa parte não sabe ler e outra boa parte não entende o que lê”. 

São tão transparentes as citações a que recorro, que apenas lhes acrescentei alguns alinhavos. São relatos feitos de angústia e alguma esperança. São pedaços de vida vivida nas escolas que ainda tínhamos. Falavam do desperdício do melhor que as escolas tinham: os seres humanos. Falavam de marginalização de excelentes profissionais, que por elas passavam e aos quais eu dava voz, por muito que isso incomodasse certas boas consciências. 

Esses professores tinham rosto, tinham nome. A Cátia escreveu: 

“O melhor de tudo foi, sem dúvida, as crianças, que se mostraram abertas, afáveis. A minha escola está cheia de professores insensíveis, resignados. Foram frios comigo. Mas eu já esperava. Já não me decepcionaram. Estou esgotada e quase sem motivação, para recomeçar o meu trabalho. Eram muitas pessoas, ao mesmo tempo, a dizerem-me que não acreditavam no que eu estava a fazer. O que mais me assustou foi o facto de serem fundamentalistas, de só aceitarem as práticas delas. Tudo o resto é lixo. 

Sabe qual é o meu maior medo? É o de não conseguir ser a professora que eu quero tanto ser. Como posso mostrar aos outros o que os meus olhos conseguem ver? Como lhes posso dizer que a sua “realidade” nem sempre é a verdade? Estou de rastos. E tenho medo de ser eu quem está errada e não eles. O debate não existe, porque a verdade deles é a realidade. Está a custar. E dói só de saber que apenas estou no princípio”. 

Nos idos de vinte, mensagens como essa me chegavam, o conservantismo ainda fazia estragos. Erigia-se como regra suprema a adesão à ordem estabelecida, sem resquícios de exercício de senso crítico, recusando qualquer possibilidade de ocorrer mudança, ou inovação. Prevalecia a desconfiança perante tudo o que mudasse, ou estabelecesse conflito com convicções de antanho.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLVIII)

Maia, 12 de junho de 2041

A palavra crise designa uma situação em que é produzida ruptura com algo instituído, sucedendo desequilíbrios e tensões. Recebi uma mensagem de uma coautora de um projeto em crise: 

“Corremos o risco de fechar, porque professores de outras escolas inventam as maiores mentiras, para que os pais dos nossos alunos os levem embora daqui. E até o prefeito está contra nós. Quer um exemplo? Mandou arranjar a estrada, mas a obra parou a dois quilómetros da nossa escola. Nos dias de chuva, o ônibus que traz as nossas crianças não consegue cá chegar. O resto do caminho é feito em poças de água e lama”. 

A Ponte viveu os mesmos dramas de outras escolas. Na década de oitenta, um dos maiores jornais diários portugueses dedicou uma página inteira a “uma escola pública notabilizada, aquém e além-fronteiras, como projeto educativo inovador”

Não reproduzirei aqui todo o texto, por ser extenso. Somente citarei a parte final:

“Este é, seguramente, um dos caminhos para fazer aumentar o grau de escolaridade da região, até ao nível das licenciaturas e dos doutoramentos, no tecido empresarial de todo o vale, como preconizam os modelos de desenvolvimento já traçados. Os modelos que apostam no futuro”. 

Eram frequentes as notícias que apontavam a Ponte como exemplo de escola de boa qualidade. Porém, as elogiosas referências à Escola da Ponte, feitas pela comunicação social nacional e estrangeira, contrastavam com o tratamento dado à escola pela comunicação social da região onde estava sediada. 

No mesmo dia em que esse artigo era dado a conhecer aos leitores de todo o país, eu abri um jornal local, em cuja capa estava escrito “Especial Educação”. Pude ler entrevistas aos diretores de todas as escolas de Vila das Aves. Todas as escolas, exceto a da… Ponte. “Alguém influente” proibiu o jornalista de contatar a Escola da Ponte. 

No mesmo número desse jornal local, na divulgação de um concerto, o “ostracismo” voltou a manifestar-se. A referência aos alunos da Ponte, que iriam atuar nesse concerto, foi substituída pela expressão “um grupo de crianças de Vila das Aves”. 

Como outras boas escolas, de que o Brasil e o mundo dispunham, a Ponte era ostracizada na sua vizinhança. A fúria persecutória de políticos sem escrúpulos não se fazia sentir somente nela. Exercia-se sobre qualquer professor ou escola, que ousasse ser diferente. Algo que escapasse à mediocridade reinante se constituía em “pecado mortal”, em “inimigo a abater”.

A dignidade de uma autonomia, que a Ponte sempre reivindicou, estigmatizou-a. Deu origem a maus-tratos por parte a prefeitura, que tudo fez ao seu alcance para a prejudicar o projeto. Inclusive, ao adiar a construção de instalações, a que a escola tinha direito, e ao impor a saída da escola do seu lugar de origem: o bairro da Ponte, em Vila das Aves.

Na reportagem que referi, a diretora de uma escola vizinha tentava justificar a sua recusa de albergar alunos da Ponte. Manifestou o receio de que “o projeto mais mediático [o da Ponte] viesse ofuscar o da sua escola”. A restante prosa era rasa, ridícula, prova de que o maior aliado de um professor era outro professor e que o maior inimigo do professor “diferente” era outro professor. 

A Escola da Ponte nunca pediu para aparecer na TV, ou nos jornais. Outras escolas (menos “mediáticas”) não poderiam dizer o mesmo. Se, dentro e fora do país, a Ponte era a instituição educativa mais conhecida e prestigiada, seria lógico que se convertesse em objeto de notícia. Mas, quem dera à Ponte que o não fosse! De cada vez que a escola surgia na mídia, logo os efeitos da inveja se faziam sentir. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLVII)

Vila Nova de Poiares, 11 de junho de 2041

O étimo latino “cultura“ foi inventado para designar cuidados com vegetais. Só mais tarde derivou para outras significações. Para alguns autores, poderia subdividir-se em duas dimensões: enquanto realidade objetiva (produções culturais, trabalhos concretos) e enquanto realidade vivida (participação humana em função de modelos culturais). 

A chamada “cultura de massa”, de modelo industrial, acompanhou a “massificação” da Escola da Modernidade e culturalmente a condicionou, até por volta dos idos de vinte. E, quando os professores da Ponte ousaram reelaborar a sua cultura, começaram os questionamentos: 

“Qual foi o maior obstáculo que a Ponte enfrentou? Foi o ministério da educação? Os pais dos alunos?” 

Respondia que o maior obstáculo fora eu. Fui obstáculo, quando me assumi autossuficiente e me mostrei incapaz de identificar na tibieza de alguns professores as minhas próprias fraquezas. Fui obstáculo, quando não ousei divulgar confidências de professores, que me pediam para destapar a “caixa negra” da sala de aula. 

Muitas escolas eram como caixas negras. As salas de aula continuavam sendo cenário de mistérios por desvendar. Pouco ou nada transpirava dos redutos seguros das inseguranças. Pouco ou nada do que lá dentro acontecia extravasava para o domínio público. 

Havia nessas escolas professores conscientes do drama, que, ao longo de mais de trinta anos, me confidenciaram denúncias e me pediram que as divulgasse. Por que não o fariam eles próprios? Fácil era a explicação: se o maior aliado do professor era outro professor, o maior inimigo do professor era outro professor.

Por que não o fiz? Fácil é a resposta: cedo compreendi que, também nesse capítulo, a Ponte não estava sozinha. Os professores da Ponte eram feitos da mesma massa, dotados das mesmas virtudes e dos mesmos defeitos de quaisquer outros professores. Qualquer denúncia de humanas fraquezas em escolas alheias recairia sobre nós. Quem cospe para o ar… 

No tempo em que a Ponte acolhia professores “concursados”, o primeiro dia de aulas era uma “animação”. Os noviços saíam das salas e perguntavam: 

“Quando toca a campainha?”

“Não há campainha” – respondia eu. 

“Não há?… Mas… e pode? Então… e os horários?” 

“Também não há horários”. 

“Não há? E onde está o livro de ponto? Não consegui encontrá-lo”. 

“Não há livro de ponto”. 

Numa escola, onde pontificava o valor da autonomia, não fazia qualquer sentido a existência de mecanismos de controlo. Compreendêramos que, onde houvesse diretor para se fazer obedecer, horários de padrão único para cumprir, livros de ponto para assinar, faltas para justificar, não haveria professores autónomos. E, porque eram pessoas inteligentes, os novéis professores compreendiam e adaptavam-se à nova realidade. 

Testemunhei exemplos de elevado profissionalismo. Em contraponto, professores havia que, a pretexto de não haver livro de ponto, se a hora de entrada era às oito e trinta, chegavam às nove horas. Dificilmente corrigiam vícios sedimentados nas escolas por onde antes tinham passado, chegando pontualmente atrasados. E, porque não havia necessidade de justificar faltas, ausentavam-se, dias a fio, a pretexto de um qualquer tio materno ter morrido… pela quinta vez. 

Os quase setenta anos do bem-sucedido projeto da Ponte assentaram na reelaboração da cultura pessoal e profissional dos seus professores. Toda a mudança passa por aí. Se a pessoa não muda, como poderá mudar a escola? Dito de outro modo: onde não houvesse uma pessoa, seria possível encontrar um professor?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLVI)

Foz do Arelho, 10 de junho de 2041

Falar-vos-ei, mais uma vez sobre o projeto das “escolas de área aberta”. Pelas suas características – existência do grande espaço polivalente – a escola P3 facilitava a integração no meio social, tornando possível a sua utilização pela comunidade. Era área aberta de cooperação, de comunicação, uma das finalidades da “escola P3” era concretizada. 

Outros objetivos eram anunciados. Se havia intenção de criar um ambiente encorajador de melhor comunicação entre alunos e professores, mobilizava-se professores para o trabalho em equipa. Facilitava-se a adaptação da organização escolar às diferenças individuais e à contínua aquisição de conhecimentos, permitindo reagrupamentos funcionais de alunos. Estimulava-se a multiplicação dos contatos pessoais e, por conseguinte, uma melhor sociabilização. 

Diversas organizações, transformações temporárias e, por vezes permanentes, eram possíveis. Propunha-se outro tipo de relação entre os grupos, que constituíam a equipa educativa (pais, professores, alunos, auxiliares), uma outra prática. O trabalho e vida em grupo, a exigência de escutar o outro, tornava-se tão importante quanto a mudança de relações entre professores e alunos. Da instrução se passava para objetivos amplos de educação.

A escola de área aberta da Ponte era um convite ao trabalho em equipe e à participação cidadã. Nela se gestou um projeto de autonomia, que culminou na celebração de um contrato com o Estado português, decorria o ano de 2004. Não constituiu tarefa fácil. Em setembro de 2003, segundo o jornal “O Público”, cerca de trinta personalidades públicas, na sua maioria ligadas à educação, divulgaram um documento em que se solidarizaram com a comunidade educativa da Escola da Ponte, nomeadamente, com os professores que “teimavam em ser autónomos, criativos e donos da sua profissão”. E acusavam o Ministério de “fazer o contrário do que dizia”.

Nesse mesmo mês, por decisão dos pais, se anunciava que a escola iria reabrir, mesmo sem autorização do ministério, cabendo aos alunos mais velhos (impedidos de se matricularem na escola) “orientar e apoiar” os mais jovens.

No Porto, numa sessão pública de apoio à Escola da Ponte, que decorreu no auditório “completamente cheio” da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, os presentes juntaram a sua assinatura “aos mais de 2500 nomes que, numa semana, subscreveram um abaixo-assinado de contestação à atitude do governo de não autorizar que o projeto Fazer a Ponte se expandisse para o “terceiro ciclo”. Integrada no movimento Fazer a Ponte, foi promovida pela Escola Superior de Educação do Porto uma sessão “de informação, debate, solidariedade com a Escola da Ponte e defesa da escola pública”. 

No dia 10 de junho, feriado nacional em Portugal, escutei discursos apelativos de “uma nova cidadania”. No abril de 74, os portugueses tinham adormecido embalados por uma ditadura. No dia 25, acordaram democratas. Decorridas três décadas sobre o fim da ditadura, ainda se tornava necessário defender a democracia das insídias de políticos intelectual e moralmente corruptos. 

Por ter sido berço de uma “nova cidadania”, a Ponte havia sido alvo de tais políticos. Disso vos falei nas cartas para a Alice: 

“Negrelas invadiram o espaço da escola, parasitaram saberes e imitaram o canto de outros pássaros, para lhes roubar o futuro. As gaivotas acreditaram nas negrelas, deixaram-se enganar pelo seu encantatório canto. Espantaram-se, quando as negrelas recusaram elevar a alma à altura do sonho”.

Por: José Pacheco

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