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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXXV)

Ubatuba, 09 de junho de 2040

A minha amiga Teca era uma maravilhosa contadora de estórias. Do livro por ela escrito, há quase três décadas, extraí o seguinte episódio.

“A professora apareceu na minha sala com os cabelos em pé, boquiaberta, com um caderno na mão e me disse: “Teca olhe este caderno…!”

Peguei o caderno e olhei – estavam escritos alguns palavrões. Falei para a professora: “Pode deixar, vou conversar com o aluno e com a mãe, também”.

Chamei o aluno e perguntei por que escreveu tantos palavrões. Ele disse que era o que ouvia o irmão dizer e escrevia. Ainda assim chamei a mãe, mostrei o caderno e falei: “Mãe, olha o que seu filho escreveu aqui!”

Ela respondeu: “Não sei ler, não, senhora! Mas, diretora, posso lhe perguntar uma coisa?”

“Claro, mãe!” – respondi, desconfiada.

E ela: “Todas essas letras aí foi meu filho que escreveu?”

Respondi: “Sim, foi.”

Ela perguntou: “E ele leu tudo isso que escreveu?”

Respondi: “Sim, leu.”

Então, ela começou a pular e bater palmas, dizendo: “Graças a Deus, alguém sabe ler na nossa casa! Oh, glória a Deus!!!”

Fiquei olhando aquela mulher e pensando onde é que eu estava com a cabeça. Por que não tentei descobrir algumas coisas antes? O que eu ia falar para ela, diante de uma situação dessas?”

A Teca, a Cecília e outras maravilhosas educadoras detinham um conhecimento profundo da arte e ciência de ajudar a aprender a ler. Mas, o Brasil defrontava-se com elevados índices de analfabetismo literal e funcional.

Quando ingressavam na escola, as crianças eram metidas numa sala, frente a uma professora, que os “ensinava” de um só modo (pelo “método fônico”, ou pelo “construtivista”), por não saber que havia muitas metodologias disponíveis.

Os professores alfabetizadores prescindiam do repertório linguístico de cada criança (qualquer criança com seis anos lia mais de cem palavras, em português e em outras línguas, como: “Internet”, Coca-Cola…) e desrespeitavam, quer o estilo de inteligência predominante, quer o ritmo de aprendizagem de cada aluno. Por via de uma formação deformadora, as salas de aula eram antecâmaras do analfabetismo.

As autoridades estavam convictas de havia uma “idade certa” para alfabetizar. Mas, no dia em que deparei com uma turma de alunos analfabetos, sete vezes reprovados na primeira classe, decidi aprender como se alfabetizava. Compreendi que a raiz do problema não era idade, quando um velhinho de 92 anos, me pediu que o ensinasse a ler. Porque a aprendizagem só acontece quando faz sentido, quando é “significativa”, perguntei-lhe por que queria aprender.

Olhe, professor Zé, eu já andei na educação de adultos. Mas, lá, só me ensinavam o a, e, i, o, u, o pá, pé, pi. E não me sentia bem, velho que sou, junto com jovens de quinze ou vinte anos. De maneira que… não aprendi.

Insisti na pergunta, ao que ele respondeu:

Sinceramente, professor Zé… eu quero saber ler, porque sou Testemunha de Jeová. O pastor, lá no culto, lê o livro sagrado, mas eu quero saber se ele lê mesmo o que lá está escrito.

Gravei uma “cassete” com o primeiro capítulo da Bíblia. Ele foi escutando e tentando identificar as palavras no livro sagrado. Aprendeu a ler.

Uma senhora de 32 anos disse-me que queria aprender a ler, porque o marido chegava muito tarde a casa:

Olhe. professor Zé. estou desconfiada. Ele diz que trabalha até tarde, mas se eu soubesse ler os papéis, que ele tem no bolso do paletó, eu tirava tudo a limpo.

Dias depois, apareceu-me com um desses papéis. Aprendeu a ler em dois meses. Separou-se no mês seguinte.

A leitura é emancipatória. É leitura de mundo…

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXXIV)

Paracatú, 08 de junho de 2040

Nos primeiros dias de junho desse distante 2020, sucederam-se manifestações contra o racismo, que o Galeano definiu deste modo: ”para dizer cegos, diz-se não visuais, um negro é um homem de cor”. O racismo se aprendia na família, na sociedade, na escola, numa escola que, nesse tempo, ainda reproduzia um modelo educacional obsoleto. Mas, também na escola se poderia desaprender o racismo e outros humanos defeitos. Crente dessa possibilidade, tentei ajudar o amigo Apolinário a interpelar algumas verdades, a questionar certezas “absolutas”.

A “aula dada” pelo Apolinário, cujo início descrevi na cartinha de ontem, continuou do seguinte modo: após a “chamada dos alunos”, fez-se o que ele chamou de “registro da matéria dada”. Seria lógico que um “sumário” fosse registado no final da aula, mas presumamos que o Apolinário possuía uma bola de cristal, que lhe permitia antever o futuro, e vamos ao que interessa.

Entre o registo da matéria “dada” e a distribuição de material foram-se mais 5 minutos. Nova multiplicação de 5 minutos por 35 alunos e lá se foram mais 175 minutos. A aula mal tinha começado e as conversas paralelas já se haviam instalado, complementadas com mensagens de celular (discretamente escritas por debaixo das mesas) e jogos em nada relacionados com a “matéria”. Entre admoestações, avisos e suspensões sucessivas do discurso, o professor despendeu um total de 10 minutos. Contas feitas – por “não haver condições para dar a aula” – mais 350 minutos desperdiçados.

Um longo e inútil sermão final e a recolha de materiais consumiram os últimos 5 minutos da aula. Ora… 5 vezes 35 dá mais (ou, mais precisamente, dá menos) 175 minutos desperdiçados.

Nos 25 minutos de aula restantes, o Apolinário ainda tentou ensinar o que seria suposto ensinar. Mas, nem fingiu que ensinava, nem os alunos se mostraram empenhados em fingir que aprendiam. Cerca de metade – por excesso ou defeito de pré-requisitos para a compreensão da “matéria dada”, ou por incompreensão do código linguístico usado pelo professor – “desligaram” (terminologia usada pelo Apolinário).

Arredondando os números: 25 minutos vezes vinte alunos (e estaria a ser muito generoso…) dava 500 minutos. Somando: 175 + 175 + 350 + 175 + 500 = 1375. Estes números não eram contas de merceeiro, eram realidade. Numa só aula de 50 minutos, o professor desperdiçou 1375 minutos. Convertendo a cifra em horas, concluiremos que o prejuízo foi de mais de 22 horas de ensinagem inutilizadas.

Eu já sabia que os críticos do costume iriam rezar-me na pele. Tinham legitimidade de o fazer, porque “davam aula” e não sabiam fazer mais nada. Mas eu nem sequer evoquei o tempo perdido na realização de provas, ou resultante das faltas dos professores. Muito menos referi as conclusões do relatório da Organização das Nações Unidas, que nos dava conta de outros desperdícios…

Acrescentarei que, no final de uma tão simples demonstração, ainda esbocei uma análise menos “quantitativa”. Conversei com o Apolinário sobre o conceito de “envolvimento na tarefa” e sobre práticas do paradigma da aprendizagem, nas quais o tempo desperdiçado era nulo, ou quase nulo. Foi, também, tempo desperdiçado. À semelhança de outros professáurios, o Apolinário só ouvia aquilo que queria ouvir. E, como se nada tivesse escutado, pôs fim à conversa:

Zé, repara bem! Tu não fizeste o registro do que me faz perder mais tempo.

O que te faz perder mais tempo?

São aqueles alunos que estão sempre a fazer perguntas e a quebrar-me o ritmo da aula!

Alguém sabe o que é o “ritmo da aula”? Nem eu!

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXXIII)

Patos de Minas, 07 de junho de 2040

Apelei a uma réstea de paciência e assisti a dez minutos de outra aula televisionada. O professor ia lendo palavras associadas a imagens inscritas no quadro negro digital:

“Por exemplo, Se repararem, a palavra candeeiro tem ali dois és. É uma palavra difícil. E a palavra “assobiar”. Aqui não posso assobiar, não fica bem, não é?- E escreveu no quadro:

Assobio é um nome. Assobiar é um verbo. Agora, vamos todos ler o texto. Sabes o que é um resumo? Pensa lá!”

O professor não esperou a resposta, porque ela jamais surgiria. E respondeu:

“Resumo é contar a história em poucas palavras. Vamos avançar mais um bocado. Temos aqui perguntas” – O professor foi fazendo perguntas e respondendo às perguntas que fazia… em seguida, dirigindo-se a um hipotético “aluno médio”, que estaria algures, frente a um computador :

“Diz-me lá, quantos meninos há no vídeo?”

Fica em silêncio, durante alguns segundos.

“Pois é! Eram quatro! E o que estão a comer?” – e volta a ficar em silêncio.

“Pois é! Acertaste! A zona mais elevada era o quê?” – Como o professor soube que o “aluno médio acertou”, eu não cosegui saber – mas, após mais alguns segundos à espera de outra resposta, que nunca iria ouvir, repetiu a fala anterior:

“Acertaste! Eles estão a…? Eles estão a…? A assobiar. Isso mesmo! Exatamente! Qual a palavra que falta? Pensa lá um bocadinho… Ora bem, vamos passar ao segundo exercício…”

O professor parecia estar a falar para mentcaptos, agia como personagem de uma farsa imposta por burocráticos títeres. Por compaixão e porque a paciência se me esgotara, desliguei o aparelho de tv.

Quando as tele aulas e as aulas online começaram a ser transmitidas, os professores com bom senso desconfiaram das suas certezas e compreenderam que o auleiro fingia que ensinava; e que, numa “escola tradicional” alimentada de senso comum, o aluno fingia que aprendia. Escandalosos índices de analfabetismo, de desenvolvimento da educação e de proficiência disso davam conta. Numa fuga para a frente, se enfeitaram as aulas online com paliativos – aula invertida, aula híbrida, aula…

Pouco antes da pandemia, eu tinha ido à escola do meu amigo Apolinário. Ele queixava-se de “muitos alunos que se atrasavam em relação aos outros e à matéria que já tinha dado”. Pensei ser aquela uma oportunidade de, fraternalmente, lhe demonstrar que esses alunos não se atrasavam. Ou que, na verdade, todos se tinham atrasado, devido ao desperdício de tempo, que ocorrera na aula que ele “acabara de dar”.

O Apolinário “deu a aula” presencial para 35 alunos. Foi só efetuar alguns cálculos. Entre as demoras na entrada dos alunos (e, diga-se em abono da verdade, também do professor…), da “chamada” e do “registo das faltas” – “Número 1, Abel Marinho” e por aí adiante, até ao trigésimo quinto aluno – se esvaíram 5 minutos bem contados. Façamos a conta: 35 alunos vezes 5 minutos dá um total de 175 minutos desperdiçados, porque os alunos estavam presentes, mas psicologicamente ausentes.

Propus ao Apolinário que dispensasse a “chamada” dos alunos e outros inúteis rituais. Respondeu que a aula durava 50 minutos e que ele “ainda dispunha de 45, para ensinar a matéria”. Como perguntar não ofende, deixei na Internet uma pergunta dirigida à administração escolar: Por que razão as aulas têm 50 minutos de duração?

“Esperei sentado” por uma resposta, que jamais foi dada. Eu a sabia: os 50 minutos de aula fora “invenção”, no século XIX. E como a administração obrigava os professores a lecionar como no século XIX…

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXXII)

Anápolis, 06 de junho de 2040

Caro José, partilho este link porque fiquei tão angustiada ao ver esta aula, que não sabia o que fazer. Lembrei-me de a enviar a si. Tinha a certeza de que iria entender a minha angústia.

Ao cabo de dezenas de mensagens como essa, dei-me ao trabalho de assistir a uma das tele aulas. Era de Português do “ESTUDO EM CASA”, transmitida pela televisão e dirigida a alunos do 1.º ao 9.º ano. Recorri àquilo a que chamavam observação não estruturada, assistemática, agindo como mero expectador. Transcrevo o registro que, nesse mês de junho, fiz dessa aula e que encontrei num velhinho caderno de anotações. Eis a fala do professor:

“O meu nome é… e vamos continuar a aprender português. Na aula passada estivemos a ver duas versões do mesmo filme. eu gostei da versão mais antiga. se calhar tem a ver com a minha idade… [neste momento, o professor sorriu]. Não sei de qual gostaste mais [a quem se dirigia o professor?], mas são giras. Trata-se do mesmo filme” [durante alguns minutos, o professor foi repetindo o que já tinha dito].

“Ora bem! Nós hoje vamos continuar a falar de filmes. Pois é!. Nós, hoje, vamos continuar a falar de filmes. E vamos ver mais um filme. Este é de 1958. Eu ainda não tinha nascido… [o professor foi falando de filmes, escrevendo num quadro negro (digital) com giz digital esta frase: “fimes a preto e banco”]. E temos filmes a cores” [o professor escreveu no quadro negro (digital) com giz digital a frase: “fimes a cores”].

“Ora bem… os filmes a preto e branco eram mais antigos [mais alguns minutos a falar de “filmes antigos”]. A língua tem destas coisas. Então, o filme que vamos ver hoje… não sei se sabem francês, mas vamos ter um texto e tu vais perceber

vamos ver um excerto. E o que é um excerto?”

Após alguns minutos de assistir a um filme em língua francesa, o professor foi até à sua mesa, mexeu no computador e disse:

“Ora bem… espero que tenham gostado do filme. É um filme antigo, mas é muito engraçadao, não é?”

E explicou aquilo que os alunos viram no filme. Repetiu tudo o que já dissera antes. Ao cabo de uns 10 minutos de repetições, disse: 

“Agora, vamos ver um texto que tem um resumo do filme. Mas, antes disso, vamos ver algumas palavras…”

A aula duraria 30  minutos. Aguentei até aos 20. E veio à memória a anedota bem conhecida na época, a do professor e do médico. Ambos tinham morrido no século XIX e ressuscitado no século XXI. Quando se viu numa UTI, entre médicos e enfermeiros tentando salvar pacientes com covid-19, o médico do século XIX não sabia o que fazer. Quando o professor ressuscitado se viu numa sala de aula, continuou a aula, que começara a dar há dois séculos. Em 2020, presencial, ou virtualmente, os alunos do século XXI assistiam a aulas do século XIX, dadas por professores nascidos no século XX. Um vírus lhes dera uma oportunidade para pensar sobre a obsolescência da “escola tradicional”. Mas o peso da “tradição” imperava, o autoritarismo da adminsitração prevalecia.

No mesmo dia em que assisti à aula televisionada, no facebook, li um artigo da autoria de um teoricista da educação. O artigo foi muito elogiado por outros fósseis teoricistas e por professáurios leitores. Considerei-o tão contraditório, que não consegui encontrar justificativa para a sua conclusão. Ei-la:

“Escola não quer dizer aprendizagem mecânica de noções, nem coincide com o martelar dos dedos num teclado, ou com a subordinação aos motores de busca”.

Até aqui, nada a obstar. Porém o articulista assim concluía o discurso: 

“Para isso, é necessário evitar a liquidação da escola na sua configuração tradicional”.

Conseguem entender? Nem eu.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXX)

Goianésia, 04 de junho de 2040

Como vos disse em carta anterior, a administração do Distrito Federal ignorou a crítica construtiva de uma professora e nem sequer deu resposta a um documento, que denotava bom senso e sentido de responsabilidade. A professora tinha mais consciência da situação do que os autores do documento da “gestão não-presencial”. A sua missiva merece referência nesta cartinha. Mesmo tendo passado vinte anos, sinto ser meu dever citá-la, para que se saiba que, naquele tempo, havia educadores éticos.

A secretaria assumia que a desigualdade educacional já era uma infeliz realidade dos sistemas educacionais brasileiros e afirmava na “Gestão Estratégica” que, “mais do que criar desigualdade, o contexto de pandemia expõe de maneira mais crua tal desigualdade e afeta os diferentes estratos sociais também de forma diferente”. A autora da carta sugeria uma reflexão sobre o que estava escrito na justificativa dada pela administração educacional. Se esta reconhecia ser a desigualdade uma “infeliz realidade”, por que razão insistia num plano de gestão para atividades não presenciais, que reforçava a desigualdade social?

Coloca a Secretaria em contradição com o que está escrito neste documento. Sugiro a retirada deste tipo de citação: “Além disso, a desigualdade educacional brasileira está profundamente ligada à condição social e de raça dos estudantes”, até que a secretaria tenha de fato um plano que vise transformar realidades injustas, ao invés de reforçar e reconhecer seu fracasso.

A OCDE considera que as competências vão muito além do mero conhecimento de conteúdos, que é necessário significar e ressignificar os conteúdos. E é fundamental estabelecer relação dialógica entre família, estudantes, professores a partir de uma escuta empática.

Por sua vez, o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) alerta que a manutenção de “prescrições curriculares, planos de aula, conteúdos e atividades” sem considerar o contexto de pandemia “é uma violência” com crianças, adolescentes, seus familiares e educadores.

Por isso e muito mais, não faz sentido que a secretaria afirme que “ao ofertar atividades pedagógicas não presenciais e validá-las, busca promover a igualdade e equidade.”

No ponto 6º, é dito que “tal readequação da oferta educacional não é apenas, um imperativo jurídico e moral, é também uma oportunidade de pensarmos outras práticas, em outros espaços, com o fim de aperfeiçoar o processo de aprendizagem.” Então, não poderemos repetir erros, levando o modelo de sala de aula para a televisão, ou para a plataforma digital. Considerar isso como inovador é um verdadeiro engano. “Inovar” requer coragem para romper com paradigmas, é retirar do papel o projeto de cada escola, os materiais de pesquisas serem desengavetados, um trabalho cientificamente pautado com objetivos definidos ser realizado, para a construção da escola que queremos.

Diante disso, volto a questionar: não seria este o momento para o “novo início”?  Existe um atraso assustador, que impede, há anos, que tenhamos um modelo de educação, que garanta o direito de todos os estudantes brasileiros.

Como vedes, havia profissionais críticos, que refletiam sobre as suas boas práticas e sobre as péssimas práticas da administração. Foram esses professores que materializaram o “novo início”. Vos contarei como foi…

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXXI)

Barra do Garças, 05 de junho de 2040

Há cerca de quarenta anos, uma pesquisa concluía que, até cerca dos cinco anos de idade, quase todas as crianças faziam perguntas de modo espontâneo:

Por que é que o céu é azul? De onde vêm os bebês? Tio Zé, por que é que o teu olho é diferente do meu? No final do ensino médio, apenas um por cento dos jovens ainda perguntava algo. Doze anos de escutar respostas a perguntas que nunca fizeram assassinaram a curiosidade.

Vou fazer noventa anos e continuo tão perguntador como quando nasci. Quase nonagenário, mantenho sem resposta silenciosas interrogações:

Onde estou? Quem sou? – E por aí vai… coisa de velho.

Perguntador inveterado, dirigi ao pai António uma indagação, ao que ele respondeu: 

É assim, porque sim! – E por aí se quedou a conversa. Acaso continuasse, provavelmente eu acabaria levando um tapa, escutando:

Já disse! É assim, porque sim!

A minha desconfiança relativamente à eficácia e eficiência das aulas começou a tomar forma, há mais de oitenta anos. Perguntei ao professor Vasconcelos por que razão eu tinha de aprender certos conteúdos, que ele tentava ensinar. Autoritário, como era apanágio de uma época de ditadura, respondeu:

Quando fores grande, irás precisar!

Já sou “grande” e quase nada desse “currículo” me fez falta. Não me fez mais sábio, nem mais feliz. O professor Vasconcelos — que descanse em paz e que Deus lhe perdoe a ingenuidade pedagógica — acreditou ter me ensinado, dando respostas a perguntas que nunca eu quis escutar.

Quando, na década de setenta, fui assistir a uma palestra do Professor Lobo, o submundo da escola da aula se apresentou à minha compreensão. Lobo era professor há trinta anos. Contou que, durante duas décadas, sempre dera aula e castigara os alunos que não soubessem a tabuada… até que, certo dia, infligiu um castigo corporal a um aluno. Este, susteve o choro e perguntou:

Professor, por que nos bates? Por que não nos ensinas?

Até então, Lobo era um professor como outro qualquer. Desde há dez anos, já não o era. Havia trocado o dar respostas sem perguntas pelo perguntar e ajudar a aprender. Deixara de dar aula.

Lembrei-me do Professor Lobo e daquilo que, providencialmente, com ele aprendi, quando, por junho de 2020 e para tentar entender o porquê de se insistir na aula online e nas aulas televisionadas, disponibilizei um tempo, para observar uma “aula síncrona”. Entre respostas sem perguntas e uma “ficha de avaliação final”, eis o que vi e ouvi:

Roberto, cadê o uniforme? Eu disse à tua mãe que o colégio disse que era obrigatório o uniforme nas aulas online! Não há mas, nem meio mas! Vai já vestir o uniforme! E volta rápido! Ouviste?

Sônia, não mexas no trabalho do teu colega!

Maycon, está calado!

Vivian, onde estás? Não vás embora! Caiu, ou desligaste? Alô Vivian! Vivian!!!

Guris, eu já aviso. Se alguém sair da Internet, vai ter negativa no fim do semestre! E vou comunicar à diretora!

Serginho, deixa o teu colega falar. não vês que só pode falar um de cada vez?

Tia, posso ir ao banheiro? (…)

Quando a pandemia obrigou ao fecho das escolas, confirmou-se um princípio: escolas não são prédios. E o meu amigo e conservador professor Gustavo se interrogou e entrou em crise, quando lhe dirigi uma pergunta a que ele não conseguiu dar resposta:

O que se deve aprender dentro das quatro paredes de uma sala de aula, que não possa ser aprendido fora delas?

A mesma pergunta vos dirijo, netos queridos. E ao eventual leitor destas cartinhas. Fraternalmente, também convido a administração educacional a dar resposta a esta e a outras interrogações.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXVIII)

Sudoeste, 02 de junho de 2040

O Prós e Contras era um programa de grande audiência da televisão portuguesa. Na terceira semana de maio de 2020, o assunto a debater era a educação em tempo de pandemia. Logo no início do programa, o locutor disse que, com a pandemia “o ensino não iria voltar a ser o mesmo e que os pedagogos defendiam estarmos perante uma grande oportunidade de alteração do currículo”.

Um amigo, que eu muito prezava, participou no debate e asseverou que “se foi agravando o fosso entre a maneira como se aprendia na sociedade e a maneira como se aprendia na escola”, denunciando a obsolescência do modelo de ensinagem.

De Barcelona, um professor universitário afirmava: “os conteúdos pelos conteúdos não têm sentido, são uma ferramenta para conseguir algo” E concluía dizendo que “a educação deveria voltar a centrar-se na pessoa e não no conteúdo”. Era evidente que “não voltaria a centrar-se na pessoa”, porque nunca tinha deixado de estar centrada no professor e no conteúdo. A começar pela universidade, que ele representava.

Nesse programa, também se disse “ser errado transferir o modelo de sala de aula para o digital”. Mas, no palco do programa, vi gente ligada a um projeto de faz-de-conta de “autonomia e flexibilidade curricular”. E a minha preocupação não se desvaneceu com o discurso de bom senso do meu amigo e do professor universitário.

O responsável ministerial disse que “o virtual não substituiu o presencial”. Pois não! Então, por que razão o ministério continuava a impor a transposição das aulas presenciais para o ambiente virtual e não aproveitava “a grande oportunidade” de juntar presencial com virtual, sem aulas?

Estávamos em maio e, em Portugal, no tempo em que havia ano letivo, ele começava em setembro. O representante do ministério informou que o presencial deveria voltar no ano letivo seguinte. Só não disse como voltaria. No Distrito Federal, já se sabia como seria… voltaria sob o signo da mesmice das aulas. O documento de “Gestão Estratégica” não augurava nada de bom e a secretaria desprezava as sugestões de cidadãos atentos ao disparate. Tive acesso a uma excelente contribuição, enviada à secretaria por uma professora e transcrevo excertos de uma cópia, que guardei num velho computador:

A Secretaria fala muito sobre o protagonismo dos estudantes. Por isso, deixo registrado o depoimento de um deles: “Sugiro não investir dinheiro em canais de televisão, mas sim em uma plataforma online de alta qualidade e com suporte rápido, acessível a todos os estudantes; Essa proposta de tele aulas não deve ser uma cópia do telecurso 2000, vocês precisam se adaptar aos padrões mais recentes de criação de mídia online. Nenhum aluno quer perder tempo, vendo algo mal feito, ainda mais na era digital, onde você encontra milhões de professores fazendo um trabalho melhor no Youtube que o oferecido pela Secretaria.”

Este estudante e muitos outros estão ansiosos para serem ouvidos. O “plano de estratégia” da secretaria só terá sentido e significado para os estudantes se, de fato, se considere o que os jovens têm a dizer. Caso contrário, este documento será apenas mais um documento a ser engavetado. Mantendo as práticas características do modelo da escola do século XIX, colocamos os estudantes desta rede cada vez mais distantes da aprendizagem. Neste sentindo, pergunto: não seria este momento de crise propício para um “novo início?

A resposta foi nenhuma. A administração sofria de transtorno de comunicação social.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXIX)

Mambaí, 03 de junho de 2040

Nesse mês de junho, escolas particulares antecipavam as férias de janeiro e fevereiro, “para que os professores pudessem ser preparados para as aulas online”. E empresas de ensinagem praticavam um marketing agressivo. Exploravam a fragilidade do sistema público de ensino. Tiravam partido das dificuldades sentidas pelas famílias, prometendo soluções mágicas. Inclusive, ensinando as crianças a… brincar. O anúncio rezava assim:

“Você poderá reunir seu filho (a) e seus amigos (cada um em sua casa) através de uma sala de reunião online onde um de nossos recreadores (as) irão comandar brincadeiras e diverti-los por 40 minutos a 1 hora. É necessário que o cliente tenha um computador, tablet ou celular com boa conexão de internet.”

Seguia-se uma lista de preços, para diferentes tempos de consumo do brincar: um preço “para 40 minutos de Recreação On-Line (até 3 crianças no mesmo local), outro para criança adicional na sala em local diferente, até no máximo 12 crianças na sala. Ou 2 sessões de 30 minutos de Recreação On-Line (com intervalo de 10 minutos) etc. etc.” O pagamento deveria ser efetivado por transferência bancária, até a data da live.

No dia em que este absurdo anúncio foi colocado na Internet, muitos educadores me dirigiram e-mails, em que manifestavam surpresa e revolta. A Carla escreveu: Um mundo que contrata pessoas para brincar com os filhos online!!! Quero ir embora desse planeta!!! Desculpe o desabafo.

Respondi: O desabafo é legítimo, querida amiga. Mas não vás embora do planeta, porque o planeta está carente de pessoas como tu.

A Carla não estava sozinha. Era uma “romântica conspiradora” – já vos falei deles – remando contra a maré de insanidade, que um vírus provocou. Defendendo as crianças da sanha persecutória da administração educacional e dos mercadores de ensinagem aqueles educadores manifestavam senso crítico… criticavam e propunham.

Talvez te recordes, Alice, das personificações, que este avô usava, para te falar de sinistras criaturas: Não passou muito tempo até que os ventos trouxessem ecos de infâmia. Aves de mau agoiro ensaiavam papagaios, que são, como se sabe, aves que repetem disparates sem cuidarem de saber dos efeitos. Havia técnicos amorosos e críticos, na administração. Porém quando os Românticos Conspiradores colaboravam com a administração, esses técnicos eram intimidados, ameaçados pelos “papagaios” e proibidos de cooperar. A maioria obedeceu aos “superiores”. Outros assumiram uma atitude ética, consubstanciada em mensagens como esta:

Infelizmente, não tenho boas notícias. Também puxaram meu tapete e, depois de muito sofrimento e reflexão, decidi solicitar minha saída da secretaria da educação. Percebi que estava cercada por pessoas incompetentes e más e não quero mais ficar num lugar onde eu não tenho espaço, apoio e autonomia para trabalhar. (…) Sinto-me envergonhada e triste por ver que a premência está em resolver coisas burocráticas e deixar a educação em segundo plano.

Não se deveria generalizar, porque havia secretarias e secretarias. Enquanto, em Brasília, preparava “a produção de aulas televisionadas”, em Belo Horizonte não se obrigava os professores a fabricar aulas online. A secretária de educação assim se expressava:

Temos que criar uma nova forma de trabalho. Acredito na educação à distância, mas tenho restrições para aderir uma proposta dessas. Sendo secretária, a proposta tinha que me garantir que todos os estudantes estariam envolvidos.

Como vedes, ainda havia gestores competentes e éticos.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXVI)

Vila Madalena, 31 de maio de 2040

Em finais de maio de 2020, elogios fúnebres enalteciam um ser humano incomum. O desaparecimento de Gilberto Dimenstein era “uma perda imensa para o jornalismo brasileiro”. Assim o definiam: “Um homem íntegro, inspiração para a minha geração. Um dos principais expoentes do jornalismo brasileiro. Inquieto e dinâmico, deu voz a atores antes excluídos do debate nacional. Sensível às causas sociais, defendeu a liberdade de imprensa, as minorias, os mais vulneráveis. Um olhar humanista e solidário, dedicado à construção de uma sociedade mais justa”.

Assim, também, eu o recordo. O privilégio de conviver com esse ser humano excepcional me foi dado. Estávamos em setembro de 2003. Dimenstein juntou este velho professor ao Mestre Rubem, reuniu educadores e a comunidade, num iinesquecível encontro, na “Escola na Praça” da Vila Madalena! No final dessa noite mágica, percorri o beco, saboreei a arte dos grafiteiros. E conheci uma pessoa, que me convenceu a ficar no Brasil…

Em 2004, o Gilberto organizou a sessão de lançamento do meu primeiro livro brasileiro. Foi um evento memorável. Nesse e em outros felizes encontros, me fui dando conta da sua estatura intelectual e moral. E, porque nutria profundo respeito pela pessoa e pela sua obra, sempre que me convidava para algum evento, eu aceitava o convite. Recordo quanto com ele me diverti, num debate com candidatos ao governo de São Paulo…

Na Vila Madalena, o Gilberto reuniu boa gente, num projeto conduzido pela ONG Cidade Escola Aprendiz, para derrubar muros entre o viver e o aprender, entre o ser e o fazer. No caos urbano de São Paulo, praças, becos, teatros, bibliotecas se convertiam em espaços de aprendizagem. E, nesses contextos, o professor assumia novos papéis, agia como um tutor de jovens das mais diferentes origens e classes sociais. A escola do futuro por ele sonhada seria um nodo de uma rede de comunidades de aprendizagem. Se um filósofo dissera que se deveria educar para a vida, a obra de Dimenstein educava na Vida.

Nesses conturbados tempos, os gestos fraternos eram escassos. E a solidão era, por vezes, o destino daqueles a quem cabe por sina o conhecimento e a bondade. Quando se fala com amor, cada palavra dita é uma revelação daquele que fala. Daí que, na Babel em que frequentemente se transformara a comunicação, o Gilberto estabelecesse pontes de entendimento, abrisse janelas para a lucidez dos dias, levasse o alimento da palavra simples e pura até às raízes dialógicas, para que aquilo que padecesse de aridez se transformasse em comunicação fértil.

Tomás de Aquino escreveu que o dom da inteligência está associado ao dom das lágrimas. Deste modo, Gilberto havia comentado o diagnóstico de câncer: “A clareza maior da morte é uma dádiva. Não é o fim, mas um começo”. Escassos dias antes da partida do seu companheiro, a Ana convidava amigos a se juntarem numa corrente, que emanasse boas vibrações para o Gilberto. O seu companheiro faria um procedimento médico importante nessa semana: “Vibrarei para que tudo que emanarem para Gilberto possa retornar em dobro para cada um de vocês”. E o amigo Gilberto continuou entre nós.

No lugar etéreo onde estiver, saberá que a sua partida foi “um começo”, coincidiu com um tempo de refundação da escola por ele sonhada. O câncer ressignificou a sua existência e, quando a pulsão da morte induzia o caos e semeava tristeza no frenesim quotidiano, o amigo Gilberto descobriu ocultas alegrias. Com a Ana, escreveu um livro sobre a derradeira experiência. E esse livro não poderia deixar de ser uma história de amor… à Vida.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXV)

Formosa, 30 de maio de 2040

No início deste século, um norte-americano de nome Khan escreveu um livro – “Um mundo, uma escola” – em que falava de uma “educação reinventada”. Eis um excerto desse livro:

A lição tradicional age contra os objetivos da educação pública. A aula acaba por se revelar um meio ineficiente de ensinar e aprender. A minha ideia de educação nunca foi a de que ela estaria completa com uma criança assistindo a vídeos no computador e resolvendo exercícios. Muito pelo contrário. Sempre sonhei em ser mais do que um recurso online. Sentíamos que estávamos em um ponto da história em que a educação podia ser repensada.

O que víamos acontecer, nas escolas que adotaram os vídeos do Khan? Usavam-nos para acabar com as aulas? Não. Muito menos para refazer o seu projeto e reinventar a escola, como o Khan desejava. Aqueles que se reclamaram de o ter como referência apenas “otimizaram” o modelo prussiano de ensino. Foi pior a emenda do que o soneto!

O estopim se deu em 2004. A sua sobrinha Nadia não alcançava boas notas nas provas. Preocupado, Khan elaborou um plano: se a escola permitisse que Nadia refizesse a prova, ele se comprometia a ajudá-la a aprender, à distância. No seu livro, Khan escreveu: “Que fique claro que, no começo, tudo era apenas uma experiência, um improviso”.

Ele trabalhava no mundo das finanças, como analista de “fundos hedge”, uma das aplicações financeiras mais agressivas disponíveis no mercado de capitais, e não poderia dispensar muito tempo na ajuda prestada à sobrinha. As primeiras conversas, que foram realizadas por meio de uma ferramenta chamada Yahoo Doodle e em ligações telefônicas, “foram pura tortura” para o Khan. A sobrinha apenas “chutava respostas” a aprendizagem não acontecia.

Khan aperfeiçoou a metodologia, a jovem fez estudo autonomo, refez a prova e tirou uma boa nota. Sabendo dessa experiência, mais dois sobrinhos se juntaram ao “núcleo de projeto”. Depois, mais dez. E os encontros por Skype com três ou quatro deles começaram a ter o formato de aula. Intuitivamante, o analista financeiro se apercebeu de que essas aulas não eram eficientes, que requeriam conhecimentos de que ele não dispunha e atendeu a sugestão de um amigo: Por que você não grava as aulas e as publica no YouTube?

Não tardou, milhões de estudantes trocaram a sala de aula pelos vídeos do Khan. O que havia de novo nessa proposta e o que ela demonstrava? Havia uma generosa oferta de vídeos e uma “iluminação” – Khan compreendera a inutilidade da “aula” e escreveu: “A maior parte do tempo dos professores é passado a dar aulas expositivas, criando e corrigindo provas, planejando aulas e isso pode ser feito por ferramentas virtuais. As universidades de Stanford, Harvard, o MIT, dizem que não há mais sentido em dar aulas”.

Jornais dessa época, davam notícia de que uma Fundação iria traduzir “mais de 600 videoaulas”. E que ”metade da carga horária da disciplina deveria ser cumprida com os estudantes assistindo aos vídeos ou fazendo exercícios”…

A filial da Khan Academy no Brasil viria a contribuir para uma perniciosa sobrevida da escola da aula. Durante muito tempo, as videoaulas foram mero entretenimento virtual, para gáudio de irresponsáveis “aprendizes de feiticeiro” da educação. Nessa época – confesso – me indignei. Hoje, apenas nutro compaixão por essas pessoas. Não duivido de que tenham agido com boa intenção. E quero crer que talvez não tivessem lido o livro de Salman Khan.

Por: José Pacheco

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