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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CIV)

Taguatinga, 19 de maio de 2040

Em meados de maio, novos casos de coronavírus obrigavam a fechar escolas, uma semana após o “retorno às aulas”. Na cidade de Sens, foram detectados casos de crianças com covid-19‌ em quase um terço das escolas. A pressa de voltar à “normalidade” levou o governo francês a retroceder e a fechar setenta escolas, num só dia.

Diariamente, a minha caixa de e-mails se entupia com a justa indignação de pais, face aos absurdos impostos pela administração educacional:

Hoje, a minha filha começaria as aulas on line às 7h30 e terminaria às 12h50, com um intervalo determinado pela escola, entre as 10 h e as 10h30. Todos os dias é assim… Ontem, ela foi dormir, preocupada. Acordamos cedo, ela irritada se preparou e iniciou a semana com  a aula de biologia. Dos 25 alunos da turma dela, só 10 conseguiram entrar, Os outros, pelo watsapp se comunicavam, pois tambem acordaram cedo e estavam lá. Porém, o link enviado só deu acesso a 10 participantes. Os outros 15 voltaram para a cama. A segunda aula seria de física, mas recebemos um comunicado dizendo que, hoje, as aulas estariam suspensas, pois estavam com problemas. Minha filha voltou para o quarto…

Também recebia queixas provindas de professores:

As primeiras aulas do dia começam muito cedo. Os alunos estão cheios de sono. Assim é difícil dar aula. Na primeira aula do dia, já estou cansado. Mas, se não dou aula, descontam no salário.

Apossou-se de mim um sentimento misto de tristeza e impotência. Que solidariedade poderia exercer, se os professores se tinham deixado funcionarizar? O que poderia dizer aos pais? Fraternalmente, sugeri que dessem a mão aos professores e os ajudassem a refletir. Por exemplo, dirigindo-lhes algumas perguntas:

Se, através da Internet, não conseguis “chegar” a todos os vossos alunos, “chegareis” a todos os alunos, quando estais em sala de aula? Dito de outro modo: conseguis ensinar tudo a todos, dando aula? Nenhum aluno reprova, ou precisa de “reforço”? Ninguém fica analfabeto?

Mas, deveriam ser os professores a perguntar a si mesmos:

Por que será que damos aulas tão bem dadas e há tantos alunos que não aprendem? Por que nos obrigam a trabalhar de um modo que nega o direito à educação a tantos seres humanos?

Os professores, também, poderiam perguntar aos seus “superiores”, por que razão tinham de “dar aula”. E não aceitar por resposta um “achismo”, ou uma autoritária imposição, pois toda a prática tem teoria e enquadramento legal.

Eu apelava ao bom senso e ao respeito pela vida, em resposta à preocupação de pais e professores:

Se, verdadeiramente, amais os vossos filhos e os vossos alunos, somente os deixareis ir até aos prédios das escolas, quando estiverem garantidas condições de segurança, de ausência de contágio. A aprendizagem poderá continuar a acontecer, virtual e presencialmente, no seio da família, na vizinhança. Numa proximidade prudente, “com máscara”, as pessoas – escolas são pessoas, não nos esqueçamos! – se organizarão, para permitir que aqueles que tiverem de se ausentar o façam. E que vão trabalhar, tranquilos, pois os seus filhos estarão protegidos e aprendendo.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CIII)

Sobradinho, 18 de maio de 2040

De Sobradinho chegavam boas-novas. Com boas-novas preencherei esta cartinha. Quase nada acrescentarei, porque elas falam por si:

Participaram da construção de nossa comunidade de aprendizagem educadores com franca abertura para outras formas de exercício docente, outros foram ganhando antipatia, conforme nos desnudávamos de nossas máscaras, uns perante os outros, pela tentativa de mudarmos juntos a nossa escola.

Registro nomes dos educadores que, com suas práticas, contribuíram de diferentes formas. Cristina, professora de língua portuguesa, elegantemente discreta, competente supervisora pedagógica, uma super professora, que prova aos estudantes que eles sempre podem ir além do que imaginam. Patrícia, professora de história, certamente uma das educadoras mais afetuosas, serenas (e que virtude difícil nesse ambiente!) e comprometidas, que já conheci. Oswaldo, professor de ciências, dono de um coração imenso e sábio, com justa necessidade de coerência e clareza, para trabalharmos juntos. Ray, professora de matemática que acredita que os estudantes podem aprender junto com todos, desde que tenhamos práticas que sirvam para todos. Fanildes, poeta, desenhista, pintora, costureira e, pelas manhãs de segunda à sexta, sensível professora. Fabrícia, que parece muito mais linda, leve e feliz como professora de língua portuguesa. Janaína e Francisco, professores de educação física, que entendem que a prática de modalidades esportivas tradicionais exige disciplina e convívio respeitoso, e pode também ser excludente. Dênia, que sabe criar atividades que não dependem de sua presença, para serem realizadas com concentração. Iara, professora de história, abertura para, a quatro mãos, tecer um sentido atual para o estudo da Pré História e da Antiguidade. João e Rayssa, professores de história e matemática, respectivamente, pelo simples e belo trabalho realizado em conjunto, numa integração que creio ser fundamental para o ensino das duas disciplinas.

Como podemos avaliar o peso de nossa herança negra sem quantificar como nos definimos e mensurar nossa triste juventude como país livre da escravidão? Hellen, fazendo com e para os estudantes, enquanto não nos encontramos fazendo juntos. Claudio, pela curta e intensa passagem, revolvendo a terra, colhendo e embelezando algumas semanas com mandalas e sementes. Aira e Conceição, pela possibilidade de seguirmos discordando uma das outras, juntas e respeitosamente. Ecival, pela oportunidade de leituras dramáticas de Vinícius de Morais.

Educadores populares também contribuíram, generosa e decisivamente, para os tímidos e intensos passos: “Jamaika”, educador popular voluntário. Cristiano, educador social, pai de Tauã, músico e dançarino formado no Cacuriá por seus pais, e pelo terreiro do Boi do Senhor Teodoro. Marcos, presidente do Conselho Escolar, que exerce um papel de liderança fundamental na construção da gestão escolar democrática. Gilmar, pai de Marcos Paulo…

Por aí continuava a mensagem. Li-a, emocionado, num pranto de alegria (os homens também choram…). Eram educadores da “Rede de Comunidades de Aprendizagem do Distrito Federal, assumindo um compromisso ético com a educação. Eram seres admiráveis, indispensáveis “irmãos e irmãs sonhando o mesmo sonho”. Nesse já distante 18 de maio de 2020, voltávamos a ter motivo para acreditar nos professores.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CII)

Brazilândia, 17 de maio de 2040

Queridos netos,

Talvez estejais recordados de vos ter falado da ameaça recebida pelo pai de uma aluna. O professor reencaminhara “algumas palavras da subdiretora”, relembrando que “os alunos eram obrigados ao cumprimento das atividades propostas para as sessões síncronas e assíncronas”. Quando algum aluno não estava contatável, a direção enviava uma carta registada com aviso de recepção ao respetivo encarregado de educação. Acaso a carta fosse devolvida, uma informação seria enviada às autoridades competentes, para que a família fosse questionada.

Era admirável o zelo legalista dos guardiães do obsoleto modelo da ensinagem. E indisfarçável o seu autoritarismo. Eu admirava o esforço dos professores, procurando não perder o contato com os seus alunos. Mas havia quem obrigasse os alunos a vestir uniforme, durante as aulas virtuais. Outros “marcavam falta” a quem desligasse o computador. Havia, também, quem fizesse a “chamada”, ou estabelecesse um horário para os alunos irem ao banheiro. Essas arrogantes e ridículas atitudes eram resultado do cumprimento do “dever de obediência hierárquica”.

Durante mais de cinquenta anos, lidei com os ditos “superiores”. Para perceberdes a estirpe das criaturas, vos descrevo uma situação vivida, quando da apresentação pública de um projeto, que viria a ser considerado um dos mais inovadores do século XXI. Os “superiores hierárquicos” disseram não entender o que estavam a ouvir e lamentaram-se das canseiras, que lhes “consumiam as horas e lhes desgastavam os nervos”. Foi-lhes dito que as novas práticas reduziriam a carga burocrática, origem dos seus queixumes. Reagiram com agressividade:

Era só o que faltava! O que você está a dizer é um absurdo! Onde já se viu? Uma escola tem de ter salas de aula, turmas. Sempre foi assim! E os professores têm de fazer o registo diário das aulas que deram e da matéria ensinada.

Sensíveis e pacientes, os educadores foram dizendo que nem “sempre foi assim” e que não seria necessário argumentar a legalidade da proposta, pois estava alicerçada na lei e numa ciência prudente. Quem teria de provar não ser possível a mudança seria quem usava de legalismo, para a impedir.

O que querem dizer com isso? – retorquiram.

Respeitosamente, os professores explicaram que, na Lei, nada obstava a que o projeto se concretizasse. E, pela enésima vez perguntaram: O que impede?

Tentando disfarçar tiques autoritários e sem saber o que responder, em tom de ameaça, os funcionários da secretaria de educação determinaram:

É assim, porque terá de ser assim e continuará assim! Não mudaremos uma linha dos regulamentos, nem uma vírgula! E não se esqueçam de que nos devem obediência!

Naquele tempo, muitos professores tendiam a interiorizar o autoritarismo dos ditos “superiores hierárquicos”. Intitulavam-se “servidores”, mas eram meros serviçais. E, com medo de perder o emprego, subordinados e serviçais abandonaram o projeto.

Recusando dialogar, os “superiores” acreditavam ter aniquilado o projeto dos “inferiores”. Mas, uma rede de comunidades de aprendizagem começou a tomar forma. Os educadores leais ao projeto aperceberam-se de que a administração ostentava regulamentos fósseis, típicos de uma educação do século XIX – normas e prescrições que, acatadas, impediam o cumprimento do artigo 205 da Constituição: o do sagrado direito à educação. Viram, claramente visto que, impedindo a mudança, a administração agia à margem da lei.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CI)

Monsanto, 16 de maio de 2040

Passei pelo Ribatejo, para matar saudades de uma boa “sopa de pedra” e visitar velhos (mesmo velhos…) amigos. Voltei à estrada, rumo a Monsanto. Antes de partir, escrevi mais uma cartinha.

A estória de hoje aconteceu há cerca de trinta anos. No final de um ano letivo, com assiduidade plena e significativas aprendizagens realizadas, os alunos da escola de Monsanto “reprovaram por excesso de faltas”. Eu sei que parece mentira, mas aconteceu. Os pais dos alunos tinham optado pelo ensino doméstico. Porém, no primeiro dia de aulas do ano letivo seguinte, os pais foram informados de que o ministério não reconhecia a avaliação dos alunos atribuída pelas docentes.

Havia quem tomasse decisões aparentemente suportadas na lei. A que faltas se referiram, se os alunos até estiveram dentro de um edifício a que o ministério chamava “escola”? À luz das ciências da educação, a expressão “reprovar por excesso de faltas” era uma obscenidade. Desfecho inevitável: as crianças passaram a ser transportadas para a sede do município, por imposição de gestores, que “achavam” que, em cada “ano letivo”, elas deveriam padecer quatrocentas incômodas viagens, para passar cerca de mil horas no isolamento social de uma sala de aula.

Impunemente, burocratas tomavam decisões sem fundamento científico, ou legal e, autoritariamente, as impunham. Era assim, há vinte anos: entre os corredores do ministério e os prédios das escolas, a cidadania era cerceada e a democracia sofria maus-tratos.

Há quase cem anos, Anísio nos disse: Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a da escola pública. O mestre Freire com ele concordava, mas ia lançando avisosA prática docente, especificamente humana, é profundamente formadora, por isso, ética. Se não se pode esperar de seus agentes que sejam santos ou anjos, pode-se e deve-se deles exigir seriedade e retidão [mas] como esperar de uma administração de manifesta opção autoritária, que considere, na sua política educacional, a participação real dos e das que fazem a escola?

A minha amiga Carla foi incentivadora da redação e coautora de uma carta de princípios, onde se podia ler: A educação, que prepara para a democracia deve se dar através de práticas não-autoritárias, que permitam a ampla participação de educandos, dos educadores, das famílias e da comunidade. Só é possível uma educação para a ação cidadã, se a educação for pela e na ação cidadã. As práticas educativas promotoras da liberdade, autonomia, respeito, responsabilidade, equidade e solidariedade, devem estar associadas aos princípios anteriores, para permitir que atinjamos o objetivo maior: a auto responsabilização social”.

Para Darcy Ribeiro, a crise da educação não era uma crise – era um projeto. Eu acrescentaria: nesse tempo, também era um caso de polícia. Ao impor a presença das crianças dentro de salas de aula, onde o constitucional direito à educação era negado a milhões de alunos, não se estaria a incorrer no crime de abandono intelectual? Quando, sem base científica ou legal, se ameaçava professores e pais, não se estaria a praticar assédio moral?

Há vinte anos, um ator se suicidou, deixando escrito um apelo: Cuidem das crianças! Então, por que não reagiam os professores? Por que não protegiam os seus alunos?

Há vinte anos, o que poderiam fazer os professores, com aquilo que fizeram deles?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (C)

Almeirim, 15 de maio de 2040

Neste mês, mas em 2020, o ser humano descia aos patamares mais profundos da bestialidade. Homens armados atacaram maternidades dos Médicos Sem Fronteiras, “para matar mães”. A mídia assim descrevia esse hediondo crime: 24 pessoas foram assassinadas: recém-nascidos, mães e enfermeiras. Os atacantes entraram nas maternidades, disparando contra as mulheres que estavam nas suas camas. Onze mães foram mortas, três das quais estavam na sala de parto prestes a dar à luz ao seu bebé”.

A crise desencadeada pelo covid-19 era apenas uma parcela de uma crise civilizacional. Vivíamos a proto-história da humanidade. Na segunda semana de maio, um estudo divulgado no Reino Unido dava conta de que a pandemia estava descontrolada em mais de metade dos estados brasileiros. Os pesquisadores recomendavam que o país tomasse medidas mais duras, para evitar a propagação do vírus. Esse estudo referia que o fechamento das escolas e a diminuição da mobilidade da população ajudaria a reduzir a propagação do vírus, mas que a previsão para os dias seguintes era preocupante.

No Rio, um dos “estados descontrolados”, professores lançavam um irresponsável convite aos alunos: “Ide até a porta da escola, rapidinho, porque não vai ter problema!”. Por insana decisão ministerial, as inscrições para o enem estavam abertas. Na Internet e na biblioteca caseira, jovens se preparavam para essa nefasta prova, enquanto alunos de escolas públicas, sem acesso à Internet e sem dinheiro, tentavam sobreviver. Mas todos poderiam disputar uma vaga na universidade pública… o amigo Tuck assim descrevia a triste situação:

Os alunos mandavam suas atividades na plataforma e elas iam parar no limbo, porque a plataforma não funcionava, os fazendo gastar os poucos dados do celular. Muitos jovens mal conseguem entender uma orientação. Tenho recebido como devolutivas, até prints de aplicativo da renda emergencial. Essa é a realidade do morador desse país, que foi mal inventado. Sou professor da rede pública em uma escola de periferia. Sou professor num cursinho comunitário pré-vestibular. Hoje, uma aluna queria se inscrever no enem e esbarrou no temido “erro da data de nascimento”, famoso no INEP. Tentei ajudar. Falei para ela ligar no 0800. Nada. O 0800 só atende telefone fixo e ela só tem celular. Tentei eu ligar no fixo. Deixei o telefone fora do gancho, porque cansei de esperar…

Nunca deveremos deixar morrer a utopia, mas confesso que houve momentos em que senti um cansaço acumulado. Assistia à hecatombe da escola, há mais de cinquenta anos. Quase desisti. Era grande a vontade de ir plantar árvores, cuidar dos pássaros…

Decorridos alguns dias, ainda durante o mês de maio desse distante 2020, centenas de professores rejeitaram a imposição de um regresso à mesmice. Com as famílias e comunidades, aprenderam a ajudar a aprender. Num projeto de formação, que ajudei a elaborar, contagiados pelo vírus do Amor e da Coragem, professores recusaram “ensinagem à distância” e desenvolveram aprendizagem na proximidade física e virtual. Em comunidades de aprendizagem, partiram do que eram e do que sabiam fazer. Valorizando a sua competência de dar aula, definitivamente, se emanciparem de um obsoleto sistema de ensinagem e asseguraram a todos o direito à educação.

Parece o final feliz de um conto para a infância: “e foram muito felizes para sempre”. Mas foi isso mesmo que aconteceu. Juro!

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (XCIX)

Ílhavo, 15 de maio de 2040

Vim passar uns dias com a equipe de projeto da Isabel e da Bianca. Elas não são tão idosas quanto eu e ainda vão ao chão das escolas, ajudar professores. Faziam parte de uma plêiade de educadores que, há cerca de vinte anos, deram início a um projeto, que viria a mudar o rumo da educação. Eram tempos de mudança aqueles, mas também tempos de contradições.

No início deste século, o amigo Nóvoa assegurava que no futuro, não haveria salas de aula. Mas “especialistas” falavam de míticas “salas de aula do futuro”.

O sistema assimilava técnicas e materiais escolanovistas, deturpando a sua finalidade. Digeria os “materiais” Montessori, a “euritmia” de Steiner, a “imprensa e a classe cooperativa” do Freinet, o “global grupal” do Decroly, a “individualização” do Dottrens, a “pedagogia por objetivos” do Tyler e as “taxonomias” do Bloom, o “personalismo” do Mounier, o “método de projeto” do Kilpatrick, tudo isso e muito mais, para manter tudo como dantes.

Renitentes auleiros adotavam modismos, para disfarçar as mazelas da prática e as escolas enfeitavam-se de “construtivismos” e “socio construtivismos”, de bibliotecas tutoradas e tertúlias literárias, de “aulas híbridas e invertidas”, de “games” e videoaulas, de lousas digitais,  “trilhas” e “cultura maker”, mantendo o aluno no estatuto de objeto de ensinagem e impedindo que ele fosse considerado sujeito de aprendizagem. Porque os pais “achavam” que assim deveria ser. Porque as escolas particulares tinham medo de perder alunos. Porque a direção “achava” que deveria haver aula. Porque a secretaria impunha que assim fosse… enfim!

Outro argumento era o de que os professores “não tinham formação adequada aos novos tempos”. Pois não! Porque a universidade percorria um caminho paralelo, produzindo teoria com caraterísticas de ficção científica, porque a prática dos palestrantes, pesquisadores e outros produtores das teorias era avessa… às teorias.

Mesmo entre aqueles que pugnavam pela mudança, havia quem insistisse em disfarçar os malefícios do sistema de ensinagem. E uma fraterna “polêmica” ocorreu, durante a pandemia. Pessoas, que eu muito ajudei e que admirava pelo seu cuidar das crianças, recorriam a práticas “híbridas” misturadas com resquícios de aprendizagem.

Fui sempre professor de chão de escola, compreendia as atitudes de sutil conservadorismo pedagógico e qual a sua origem – as escolas particulares não queriam perder “pais-clientes”, os “servidores” (sinistra expressão!) não queriam perder o emprego, os gestores não se atreviam a desobedecer às imposições e proibições das secretarias.

Em mais de cinquenta anos de vida profissional, repetidamente escutei o discurso do “coitadismo”, o recurso à chantagem emocional, à condescendência, que justificavam ficar no “nem uma coisa nem noutra”, ou voltar para a zona de conforto: “Muitos professores têm relatado encontros com os estudantes com momentos significativos. Mas há um desânimo, quando todo aquele esforço é julgado e apontado como farsa”.

Queridos netos, eu tinha (e tenho) muitos defeitos, mas nunca fui hipócrita. Nem com a maior dose de compaixão, poderia deixar sem resposta a minha amiga e autora desse inoportuno comentário. No mesmo dia, fraternalmente, respondi:

O esforço dos professores não é uma farsa. A aula é que é uma farsa.

A prática da aula, fóssil ou disfarçada com projetinhos, contribuía para a manutenção de um absurdo, comprometia a mudança, inviabilizava a inovação.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (XCVIII)

Fátima, 13 de maio de 2040

Neste dia, mas há vinte anos, celebrava-se a aprovação da Lei Áurea, o 13 de maio de 1888, quando, oficialmente, se extinguiu a escravidão no Brasil.  No 13 de maio de 2020, em Portugal e pela primeira vez na história, se celebrava o aniversário das aparições em Fátima, com o santuário deserto e as autoridades eclesiásticas pedindo aos fiéis que acompanhassem as celebrações, em casa, com uma vela acesa na janela. A América superava a Europa em infectados e era o novo foco mundial da pandemia. Os Estados Unidos registravam quase 1900 mortes nas últimas 24 horas. E a Unicef advertia que a pandemia poderia matar, indiretamente, 6000 crianças por dia.

Urgia proteger das crianças, mas a pressão para flexibilizar o isolamento social aumentava. Muitas escolas particulares abriam falência e o ministério preparava a rota de fuga da regulamentação do ensino domiciliar. Nas estruturas familiares que terceirizavam a educação da infância e nos porões das “famílias tradicionais”, as crianças já começavam a ser um “estorvo”. Consciente de corríamos o risco de a pressa de “voltar à escola redundasse em tragédia, o amigo Matias lançava veementes apelos:

Deixem as crianças em paz e não façam de conta que a escolarização segue os cânones normais. Esqueçam as notas e as classificações. Foquem-se numa avaliação que possa gerar mais aprendizagem. Não afoguem as crianças com classificações, modismos escolares totalmente despropositados. Os pais não podem ser transformados em auxiliares da ação educativa dos professores e das escolas. Promovam aprendizagens e requeiram evidências que os alunos possam realizar (não os pais). Afirmem a importância da comunicação informalizada, a convivialidade familiar, libertem a casa da lógica da escolarização…0%

Na Internet, escutei esta escabrosa declaração: “Se voltassem às aulas, elas (as crianças) deixariam de “atrapalhar”. Foi difícil conter a indignação. Durante a minha vida de professor, sempre estivera do lado das crianças e ao lado daqueles que tinham como missão protegê-las. À semelhança de uma psicóloga, que tentava preservar a vida dos seus dois filhos e a dos filhos e outros pais:

Compreendo que venham dar resposta a um problema importante das famílias e das empresas. Mas, enquanto profissional, não posso admitir que bebés e crianças passem pelo que se anuncia. Desde a máscara a tapar o rosto dos profissionais, assustando as crianças pequenas e perturbando os bebés (sabemos a importância do rosto enquanto organizador psíquico, nestas idades); ao impedimento do livre movimento das crianças; à proibição do brincar livre, da partilha, da aproximação ao outro; à imposição de rotinas demasiado ritualizadas. Estas dinâmicas, baseadas em medos do sujo, da relação e da espontaneidade, não têm como não causar um impacto extremamente negativo na saúde mental das crianças e na construção da sua personalidade. Estamos a ensiná-las a recear o outro, a transmitir-lhes que existem perigos invisíveis, que as podem atingir, se se aproximarem dos outros.

Para que teria servido dois meses de reaprendizagem? Teríamos aprendido novos modos de sentir e de viver? Quais as prioridades a assegurar? A escola seria repensada, para que o novo ‘normal’ fosse menos normal?

Seria inconcebível que voltássemos à fútil vidinha pré-pandémica. Seria inadmissível que nada tivéssemos aprendido com a subliminar mensagem de um vírus.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (XCVII)

Sesimbra, 12 de maio de 2040

Na primeira semana de há vinte anos, o Brasil atingia o triste recorde de 751 óbitos por coronavírus, em 24 horas.  Na França, a prova de acesso à universidade fora anulada. Na Itália, fora substituído por uma prova oral, realizada na Internet. No Brasil, enquanto se apelava ao “ficar em casa”, jovens se inscreviam no enem.  Iriam aglomerar-se em salas de aula, para realização da nefasta prova. Nas primeiras oito horas, mais de um milhão de jovens já estavam inscritos. A campanha publicitária surtira efeito.

No vídeo da campanha, jovens supostamente candidatos a uma vaga na universidade proferiam frases de belo efeito: “Uma geração de novos profissionais não pode ser perdida”, “A vida não pode parar”. E uma jovenzinha, sorridente, exclamava: “Por isso, eu quero fazer o enem, para entrar na universidade!”. Na era da pós-verdade, a publicidade enganosa prosperava, mas havia quem fizesse análises técnicas dos instrumentos de manipulação.

A crer nesses analistas, eles teriam constatado que o jovem, que incitava outros jovens a tentar entrar na universidade, era um ator de 18 anos de idade, estudante de uma… faculdade. A menina de 19 anos, que dizia para “Estudar, estudar!”, também era uma atriz. Outra, de 24 anos, até já tinha feito vídeos de propaganda de uma empresa. Num vídeo aparentemente espontâneo, supostamente da iniciativa de um estudante padrão, o jovenzinho utilizava dois aparelhos topo de linha (um Galaxy e um Ifone de última geração), sentado numa ergonômica cadeira, num amplo e aprazível escritório. A jovem atriz, em frente a uma secretária de alto padrão, ostentava um computador Mcbook de dez mil reais… tal e qual um jovem favelado, num barraco da periferia.

Recordemos que 75% dos alunos brasileiros viviam em favela. E que decorria uma campanha para adiar o enem. Eu não advogava o adiamento da prova de acesso ao ensino dito “superior”. Desde meados da década de setenta e com consistente argumentação, eu pugnava pela sua extinção. Mas, as minhas preocupações eram idênticas às de outros professores. Havia professores conscientes e éticos, nesse tempo, embora em minoria. Um deles, manifestava a sua preocupação, no facebook:

Minha aluna R me mandou mensagem angustiada, pois acha que não dará conta do conteúdo para o Enem. Marquei de conversar… mandei alguns áudios e nada. Dez minutos depois ela me manda print falando que não conseguia baixar os áudios por causa dos dados do celular. Essa é a conexão que ela pode ter por enquanto, e mal serve pra baixar áudios de msgs. Encontrei uma aluna e sua família. Perguntei se estavam conseguindo contato com a escola. Estavam juntando dinheiro para comprar um celular novo, que pudesse acessar minimamente. Passados dois meses: “Ainda estamos vendo como fazer. Agora? Claro! Com quatro crianças, você acha mesmo que essa vai ser a primeira preocupação?”

Sou professor da rede pública, em uma escola de periferia e num cursinho comunitário pré-vestibular. Sei que há professores que lutam contra esse sistema ridículo, mas tenho contato com muitos, que estão mandando seus alunos copiar cabeçalho, professores de música e arte propondo absurdos sem fim.

Prevalecia um “salve-se quem puder”, o sacrifício de uma geração no altar de um desumano sistema econômico. Tânatos saía vitorioso. Para desgraça da educação e dos brasileiros, o futuro estava repetindo o passado.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (XCVI)

Almada, 11 de maio de 2040

No mês de maio de 2020, a sociedade começava a tomar consciência da necessidade de refundar a educação e eu recebia mensagens de pais preocupados. Como esta, que encontrei num velho arquivo:

Ninguém sabe para que existe a escola, neste momento. Queria partilhar algumas preocupações, que me andam a atormentar, há já algum tempo. Recebi um e-mail do professor da minha filha. Dizia assim: “Estamos a trabalhar com aulas ZOOM. No entanto, há alunos que não têm comparecido, ou participam intermitentemente (só às vezes) nas mesmas. Relembro que a assiduidade, pontualidade, atenção e participação nestas aulas serão avaliadas no final do terceiro período”.

Bastaria usar o “quanto baste” de intuição e bom senso, para saber que o professor não conseguiria “avaliar” a filha do João. O professor só sabia aplicar testes e dar nota. Não sabia avaliar. Mas, a “avaliação” era usada como arma de arremesso, velada ameaça:

“Há alunos, que não têm realizado qualquer trabalho, ou enviam outras atividades, mas não devolvem as que o professor solicitou. No final deste período, terei forçosamente de ter em conta todos os elementos de avaliação solicitados pela Direção e a devolução atempada das tarefas. Sem estes elementos, a avaliação dos alunos ficará seriamente comprometida. Nos casos mais graves (ausência total ou prolongada de assiduidade e de qualquer resposta ou trabalho por parte de um aluno), o Agrupamento poderá inclusive considerar que se trata de negligência parental ou de eventual abandono escolar, vendo-se na obrigação legal de informar as entidades competentes.

Inacreditável! – exclamei ao ler este naco de autoritário desplante – e lembro-me de ter proferido alguns impropérios, que, por razões óbvias, não mencionarei…

Muitos pais me pediam ajuda. Mas que ajuda poderia eu dar? Dizer-lhes que deveriam rejeitar as inúteis aulas online, recusar participar da farsa? Seria pouco aconselhável, porque as escolas e as secretarias reforçavam ameaças com o legalismo de “um artigo 4.º” de um decreto qualquer que, “pelo disposto no Estatuto do Aluno e Ética Escolar”, estavam os alunos obrigados ao dever de assiduidade nas sessões síncronas e ao cumprimento das atividades propostas para as sessões assíncronas, “nos termos a definir pela escola”. E passavam das tentativas de persuasão à intimidação:

“Quero ressalvar que a dita escolaridade obrigatória implica deveres para todos nós, alunos, professores e pais e é para ser levada a sério, podendo trazer complicações para quem não cumpre”.

Este e muitos outros docentes não eram “éticos”, nem “levavam a sério” o seu múnus profissional, mas não o sabiam. Uma subcultura profissional, forjada numa pedagogia fóssil e numa miserável formação de professores, os impelia à obediência a “legítimos superiores”, os impedia de se aperceberem figurantes de uma farsa, que poderia redundar em drama.

Nesse mês de maio, aumentavam as pressões para jogar as crianças nos prédios a que chamavam “escolas”. Na Internet, encontrei o comentário de um observador atento a esta e a outras humanas misérias: Por uma falsa sensação de normalidade, pretendem amontoar as crianças, no meio do caos. Voltarão infectadas. Muitas delas assintomáticas, mas quem vai abraçá-las? Que professora vai dar colo, que avós vão deitar-se junto, vão querer essa intimidade? Vão infectar pessoas e carregar essa culpa pela eternidade. O que a maioria das crianças vive, agora, é um massacre dentro do massacre.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (XCV)

Porto, 10 de maio de 2040

Neste dia de há vinte anos, era celebrado o “dia das mães”. Longe ia o tempo em que se homenageava as mães no dia 8 de dezembro.  A tradição cristã invocava a Mãe de Jesus. Nesse dia, com o coro da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, eu cantava: O povo viu um grande sinal, uma mulher vestida de sol… Ou, como consta do Apocalipse, 12: Uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça. E estava grávida, e com dores de parto, e gritava com ânsias de dar à luz. Diariamente, no meu tempo de juventude, também celebrava os cuidados maternais de Maria de Magdala. Quando soube de um Rabi, que convivia com os pecadores e os excluídos, foi ter com Ele, em Cafarnaum, grávida de Amor.

Nesse maio de há vinte anos, a mídia dava notícia de que as ambulâncias não conseguiam entrar em favelas do Rio. E as mães carregavam nos seus braços os filhos doentes e mortos. Dias antes, na Colômbia ponderava-se a possibilidade de transferir para agosto essa comemoração. No Brasil. os comerciantes pressionavam o Governo, para que se antecipasse o fim do isolamento social. Talvez porque preferissem perder mães, para não perder o negócio…

Longe vai o tempo de mercadológicas comemorações, contemporâneas do feminicídio, que sacrificava milhares de mães no altar de patriarcais culturas, mas, ainda cresce em mim a indignação, que sentia nesse tempo de indignidade.

O quadro de que acompanha esta cartinha é a “Madona dei Palafrenieri”. Caravaggio o pintou, representando uma mãe, conduzindo o filho pelo mundo, socorrendo-o nos perigos, transformando os passos da criança em confiáveis caminhos.

Nesse “Dia das Mães Pandêmicas”, como alguém o cognominou, muitos seres humanos não entendiam a mensagem de Caravaggio e enveredavam por descaminhos de uma maternidade ambígua, forjada na sordidez das periferias e atrás de muros de condomínios. Uma onda maniqueísta estabelecia um falso dilema: restabelecer um sistema econômico, ou preservar a vida. Quem optasse pela economia, não respeitaria a vida humana; quem defendesse a vida humana provocaria fome, colocaria em perigo a sobrevivência da espécie. Errados julgamentos morais! Ignoravam que Economia é Vida. Não uma Economia predatória, mas uma economia de rosto humano. Ignoravam que, para conceber uma nova economia, necessária seria uma nova Educação.

Queridos netos, creio que a viagem que, ontem, fiz terá sido a última. No dia em que completo 89 invernos e me aproximo do reencontro com a Mãe Luiza, as dores que sinto talvez não me permitam voar de regresso à mátria brasileira. Ontem, as dores do corpo se juntaram às da alma. Passando pelo edifício da velha escola, onde este vosso avô fez os primeiros estudos, tristes memórias me assaltaram. Por ser filho de uma costureira e de um vassoureiro da “Ilha dos Tigres” – assim era conhecida a Rua da Vitória, onde não entrava polícia, nem ambulância – fui rude e vilmente tratado. Mas, aqueles que bateram e humilharam a criança, que eu era, permitiram que eu comparasse a violência da exclusão escolar com as amorosas lições de dignidade da Mãe Luiza.

Era uma dignidade da mesma natureza daquela que encontrei em professoras-mães que, sendo maltratadas, prejudicadas por um estatuto social depreciado, ainda assumiam, nas suas práticas, este princípio: A dignidade do ofício da educadora deriva da dignidade reconhecida na pessoa da criança, passa pela busca da coerência entre o fazer pedagógico e as necessidades dos filhos dos outros e das suas comunidades.

Por: José Pacheco

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