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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXIV)

Alto Paraíso de Goiás 29 de maio de 2040

Nunca escrevi, nem escreverei um livro de memórias. Para nada serviria. Preciso é que fique registro de tempos sombrios e de tempos luminosos. que se sucederam, ou contemporaneamente se confrontaram. Nesta cartinha, vos falarei de um estranho fenômeno ocorrido nos tempos sombrios das primeiras décadas deste século.

No tempo em que a Alice estava em Coimbra, se formando em Psicologia e se transformando nos acasos que a vida tece, este vosso avô despendia tempo significativo comentando desmandos educacionais, pacificamente fustigando a devassidão da administração escolar. Eu era adepto e praticante da “comunicação não violenta” – a “cnv” – e usava a escrita para desocultar encobertas violências. Diziam amigos meus que, por vezes, eu sustinha a “cnv” e recorria à “pnv” – a “porrada não-viiolenta”. Ainda hoje, não sei se esses amigos teriam razão, mas era fato que eu não me retraía face a manifestações de autoritarismo ou corrupção, de que resultasse prejuízo para as crianças e para a escola – denunciava.

Nesta cartinha, darei início a uma delas denúncias: a da indevida utilização de uma iniciativa de um jovem chamado Salman Khan. Esse analista financeiro recebera um pedido dos seus jovens primos, que nada entendiam da Matemática “dada nas aulas” das suas escolas. Os primos de Khan moravam longe e não restava outra solução senão a de recorrer à Internet. As “aulas” do Khan foram um sucesso. Em escassos minutos, os primos aprendiam a Matemática, que, em muitas aulas de cinquenta minutos, os professores não conseguiam ensinar.

A fama das “aulas” do Khan correu mundo e o site por ele criado foi sendo utilizado por milhares de estudantes. E, com um milhão e meio de dólares, que Bill Gates lhe ofereceu, Khan fundou uma academia digital. Eu fui a São Francisco e estive nessa academia: a Khan Academy. Na conversa com os seus técnicos, apercebi-me de que a iniciativa do Salman Khan havia sido assimilada pelos mercadores da educação, deturpada e convertida em mais um paliativo do modelo de ensinagem.

Corolário desse desvirtuamento e falsificação: chegado o tempo da pandemia, empresas do ramo educacional vendiam cursos e assessorias; fundações financiavam fornecedores de videoaulas; skinerianamente  alunos  as consumiam, dependentes de vínculos afetivos precários estabelecidos com identidades virtuais.

Porquê esta arenga? – perguntareis.

Porque os vídeos de Salman Khan eram potencialmente inovadores. Era algo inédito, útil, sustentável, mas não eram “videoaulas”. Salman Khan detestava aulas. Quando alguém replicou os seus vídeos, fê-lo condicionado pela cultura inculcada pela velha escola: replicou-os, sem manter a iniciativa em permanente fase instituinte e mercantilizou a inovação.

Na próxima carta, vos contarei pormenores desse processo. Naquele tempo, eu explicava e provava que numa aula – presencial ou online – não se aprendia. A maioria dos ouvintes não entendia, ou não queria entender. Ainda hoje, á distância de 30 ou 40 anos, ainda há quem acredite nas virtudes das vídeoaulas, quando, já há muito tempo, elas estão expostas no museu digital das besteiras pedagógicas. Em 2040, ainda restam resquícios de mumificação pedagógica.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXIII)

Lago Norte, Distrito Federal, 28 de maio de 2040

A vasta produção científica do meu amigo Pedro Demo, de que vos falei na cartinha de ontem, seria material suficiente para cartas que eu escrevesse até ao fim do século. Como lá não chegarei, limito-me a citá-lo em várias missivas, lamentando que esse mestre, ainda hoje, não seja tão conhecido quanto merece.

Em 2020, vivíamos na mesma cidade. E me era dado o privilégio de beber diretamente da fonte do saber. Virtualmente, quando em tempo de pandemia. Na sua presença, quando, na UnB e em congressos, partilhávamos mesas de debate. Ou na minha casa, também à volta da mesa, partilhando um “bacalhau à lagareiro com batata a murro”, descontraidamente discorrendo sobre os absurdos em que a educação era fértil, surfando eflúvios de um vinho verde do Minho,

Nesse já distante ano, o Mestre Pedro publicou um ensaio com o título “EDUCAÇÃO À DERIVA”, uma análise profunda das causas e consequências da manutenção (palavras suas) do “instrucionismo como patrimônio nacional”.

Manifestava surpresa pelo contraste entre haver tanto diagnóstico disponível e se manterem péssimos desempenhos. Assente numa rigorosa fundamentação, o mestre assim concluía: por não existir “um projeto de mudança satisfatório, parecendo que a escola que temos é modelo intocável, acima das ideologias”.

No ensino médio, o aprendizado de matemática era insignificante: 9.1% em 2017. Isto é: 90% dos estudantes não aprendiam. “No Enem, apenas 53 estudantes obtiveram nota máxima em redação, dentre 4 milhões de participantes; quase ninguém”. Quando abordava a situação do Ensino Médio, o Conselho Nacional de Educação chamava a atenção para a necessidade da “recriação da escola”. A expressão “recriação da escola” constava do parecer do CNE sobre uma proposta de base curricular, a chamada BNCC, um documento espúrio, que reforçava um modelo educacional em tudo oposto à “recriação da escola”.

No tempo da pandemia, a administração escolar tentava “recriar” virtualmente a sala de aula presencial. Exportava para a Internet e para programas de TV esse dispositivo central do velho modelo educacional, causador de uma hecatombe escolar traduzida nos índices que Pedro Demo evocara no seu ensaio. Sob o manto diáfano de um agressivo marketing, a administração tentava disfarçar a sua incapacidade de recriar a escola, recorrendo à mistificação. Num vídeo divulgado nesse mês de maio, a SEEDF afirmava estar agindo “para minimizar os prejuízos com a suspensão das aulas na rede pública”. Era mais uma fake new, a juntar a outras conservadoras e dissimuladas iniciativas, que adiavam a “recriação da escola”.

Se, presencialmente, a imposição do modelo da escola da aula fora causa da trágica situação educacional, a manutenção por vídeo aula desse modelo contribuía, não para “minimizar”, mas para agravar a situação. Como diria o Pedro, “recriar a escola”, no discurso dos burocratas da administração parecia ser um “ato falho” ou de “má consciência”: “tomando o termo ao pé da letra, indica, primeiro, que o atual sistema não pode continuar; segundo, que é preciso, saindo dele, fazer outro”.

Na era da pós-verdade e do colapso do sistema de ensino, tomava forma um sistema de aprendizagem inspirado na proposta de “aprendizagem autoral” do amigo Pedro. Essa proposta requeria a “recriação do formato escolar, outro professor, outra pedagogia”. O Mestre Pedro foi inspiração para núcleos de projeto, que tentavam “minimizar os prejuízos com a suspensão das aulas na rede pública” e para, efetivamente, recriar a escola.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXII)

Varjão, 24 de maio de 2040

Ao longo de mais de quarenta anos, me deixei enredar em diálogo de surdos:

A Escola da Ponte e a Escola Aberta estão dentro da lei?

Sim, estão dentro da lei.

Mas, não têm aula…

Pois não.

Então…

Então, o quê?

E não fazem avaliação nessas escolas?

Fazem avaliação, mas não aplicam prova. O teste é o mais falível dos instrumentos de avaliação. Nessas escolas, pratica-se aquilo que a lei de bases preconiza: uma avaliação formativa, contínua e sistemática.

E a conversa se prolongava, até ao momento em que o meu interlocutor dizia algo, que eu já ouvira centenas de vezes:

Eu gostava de trabalhar assim, mas…

Mas o quê?

Eu recebia por resposta um falso pretexto, ou… o silêncio. E, há vinte anos, desisti de alimentar conversas surreais, porque se usava o imperfeito “gostava”, quando se deveria aplicar o condicional “gostaria”. Muitos professores tentavam escapar da morte pelo coronavírus, sem entender que, profissionalmente, tinham sido contagiados por um vírus bem mais letal: o da ensinagem. Na formação de professores, disseram-lhes que estavam “vivos por disciplina de cemitério”. Inconscientes, manipulados, indiferentes à voz de quem tinha sido curado, esses “mortos incompletos” eram cúmplices de um genocídio educacional. O Freud explicaria…

Naquele tempo, a degradação do sistema de ensino chegara a uma situação insustentável. Havia faculdades despedindo professores, porque já usavam um robô, para corrigir provas e dar nota aos alunos. Era evidente que essas faculdades não faziam avaliação, porque a não distinguiam da classificação. Perpetuavam-se obsoletos rituais de classificação, porque não havia nas escolas uma cultura de avaliação, que permitisse obter indicadores seguros de aprendizagem.

A lógica de mercado imperava, nesse já distante 2020. As empresas de ensinagem online prescindiam do concurso de professores, porque estes desperdiçavam imenso tempo no adestramento dos alunos em simulados e provas-modelo. Se, à semehança dos professores, um robot papagueava matéria, mas muito mais rapidamente, porquê contratar professores, que se queixavam de “não terem tempo para dar o programa”? Estavam criadas condições para que outros professores fossem despedidos. Se os conteúdos estavam disponíveis na Internet e se a inteligência artificial poderia assegurar, sem falhas, a tarefa de os transmitir, por quê contratar auleiros?

Há quase quarenta anos, o amigo Pedro Demo criou esse neologismo. E escreveu num feliz ensaio: [auleiro é] quem não sabe pensar, quem não tem produção própria e só pode dar aula. Quem não tem proposta, precisa adotar apostila. Ainda acreditamos que a melhor forma de aprender é escutar aula. Velharia!

Um vírus nos viera dizer que já era tempo de substituir um sistema de ensino por um sistema de aprendizagem. As empresas de ensinagem poderiam prescindir de auleiros. Mas, nas escolas da aprendizagem, os professores ainda eram indispensáveis, insubstituíveis.

Quando alguém questionava o trabalho dos professores, eu fazia a defesa intransigente da sua dignidade profissional. Enquanto dirigente sindical, eu não tolerava ofensas à honra daqueles que se tinham deixado “funcionarizar” e se diziam servidores públicos, quando apenas eram serviçais de um iníquo sistema. Mas deixei de perder tempo com casos perdidos, desisti de conversar com que não escutava.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXI)

Asa Sul, Brasília, 26 de maio de 2040

Já aqui vos falei dos Românticos Conspiradores. Foram eles os impulsionadores de primeira “Conferência Nacional de Alternativas para Uma Nova Educação” – CONANE, realizada em Brasília, decorria o mês de novembro de 2013. Convirá recordar este fato, para mostrar que, paralelamente ao desvario da política oficial, os professores se movimentavam, refletiam, agiam em prol de uma nova e melhor educação:

Em 2013, sonhamos uma nova educação. Queríamos saber quem sonhava conosco uma educação assim e descobrimos 450 educadores trilhando o mesmo caminho.

Nesse encontro, foram apresentadas práticas com potencial inovador e o momento alto foi o lançamento do Terceiro Manifesto pela Educação. O Ministério da Educação fez-se representar na Conferência e o documento foi-lhe oficialmente entregue. Idênticas cerimônias ocorreram em dezenas de prefeituras e secretarias de educação. E, em 2015, no CEU Heliópolis, 650 educadores de todo Brasil e países da América Latina se juntaram. Sucederam-se encontros regionais e surgiu a ANE universitária.

Em sete anos, até à chegada da pandemia, três conferências foram realizadas. A CONANE era um território de diálogos. Construía pensamento crítico, alargava a compreensão da amorosidade freiriana, do bem como princípio, da generosidade como ação, da aprendizagem como objetivo maior, a mudança social.

Em meados de maio de 2020, o meu amigo César afirmava numa entrevista que a escola tradicionalista foi aniquilada com a pandemia. Que a sociedade já não era a mesma e isso implicava operar mudanças profundas na educação. A crise causada pelo coronavírus colocava em xeque a escola assistencialista e a escola meritocrática, pensada para treinar para o vestibular. E o César acrescentava: “A escola que deve nascer destas cinzas tem que ser crítica, sustentável, um lugar de formação humana plena”. A sua declaração assemelhava-se a um epitáfio. E quem se encarregou de fazer o “funeral da velha escola? É o que irei contar-vos nas próximas cartas. Nesta, ainda vos direi que a nova construção social de aprendizagem, que viria a refundar a educação, dava pelo nome de Comunidade de Aprendizagem.

Certamente, estareis recordados de vos ter falado de uma matriz axiológica. Pois, a partir desse documento, os núcleos de projeto elaboravam uma “Carta de Princípios” e “Acordos de Convivência”. Na sequência, procedia-se à análise de documentos organizadores do trabalho escolar. Seria preciso verificar se existia coerência entre a Lei de Bases e o projeto educativo, e se o regulamento interno era coerente com o projeto. Raramente, isso acontecia, pelo que se tornou necessário rever documentos.

A Carta de Princípios deveria ser completada com a definição do “perfil do aluno” (melhor dizendo: sujeito de aprendizagem) e do educador da equipe de projeto.

O levantamento de valores predominantes na comunidade de contexto e um inventário de necessidades da população completaria esta fase do processo formativo.

Em 2020, os Românticos Conspiradores já não eram 450, eram milhares. Os núcleos de projeto estimulavam a reflexão, promoviam harmonia, cooperação. Quando deparavam com conflitos de interesses ou abusos de poder, agiam no sentido do cumprimento dos projetos, propondo o diálogo. Nesse espírito, círculos de vizinhança se constituíam. Comunidades se organizavam em redes. Uma nova educação emergia das cinzas da velha escola.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CX)

Núcleo Bandeirante,  25 de maio de 2040

O “EstudoEmCasa”, programa emitido pela RTP Memória, visava apoiar famílias sem acesso à Internet. O nome do canal ajustava-se perfeitamente àquilo que era transmitido. Até então, esse canal transmitia programas de grande audiência, mas de há 20 anos atrás. Em 2020, a RTP Memória transmitia pandêmicas aulas concebidas há 200 anos. Agora, em formato digital.

O desnorte do norte era equivalente à desorientação do oriente, onde a epidemia virara pandemia. E, naquilo que à educação dizia respeito, a situação de desperdício de recursos e abandono, em Portugal, era semelhante à do hemisfério sul. Porém…

Um professor dotado de senso crítico – havia alguns, naquele tempo – deixou-me esta mensagem no WhatsApp: “O rei vai nu! Foi como um flash, que esta expressão me saiu da boca, após visualizar várias aulas da primeira emissão do EstudoEmCasa, no canal público da televisão portuguesa. Como era possível que as aulas emitidas para o país fossem uma mera transposição da aula presencial para o meio audiovisual? Como explicar que, mesmo recorrendo a vídeos da Escola Virtual ou powerpoints, o formato fosse tão cruelmente imitador da realidade? Como entender que um programa para famílias sem acesso às tecnologias, carecesse de supervisão técnica e pedagógica?

Como era possível não haver mais pessoas, que questionassem o que estava ali, à nossa frente, nos écrans [nas telas, no português do Brasil]. Intervim em grupos do Facebook, questionando o formato de aula expositiva. Mas a onda protetora da classe docente cristalizou a discussão. A escola da ensinagem, do formato da aula do conteúdo, do trabalho de casa (então, chamado de “desafio”), estava ali, desnudada, para o país inteiro. E poucos entenderam o tanto que era urgente transformar a Educação. 

A RTP ficou orgulhosa do aumento brutal de audiência do canal RTP Memória. E eu fiquei a pensar como é que eles colocaram os professores num cenário simplório, deram o mínimo de instruções e, por alegada falta de tempo, não permitiram repetição de gravação, indo para o ar erros dispensáveis. Percebi, com tristeza, que a concha, aberta abruptamente pelo forte condicionalismo da pandemia, não iria permitir o esplendor de uma pérola. Tinha acabado de se fechar perante qualquer indício de movimento de transformação.

As reações não tardaram. Estava instalada uma polêmica fraticida:

“Os professores fizeram o seu melhor. Foram lançados para a tevê e merecem respeito. Se fazes melhor, vai lá tu pra frente das câmaras.” E, em menos de uma semana, os zelosos professores tornaram-se heróis com direito a um louvor expresso pelo próprio primeiro-ministro, em sessão de plenário na Assembleia Nacional.

Não participei dessa polêmica. mas, à distância de vinte anos, já ninguém se zangará com aquilo que este professor diga, ou escreva, pelo que completo esta cartinha com um breve comentário.

Os abnegados professores cumpridores de ministeriais ordens manifestaram incapacidade de entender a crítica como uma ajuda, para desocultar mazelas do sistema. E a sua “generosidade” converteu-se, mais uma vez, em oportunidade perdida. Entretanto, havia quem a aproveitasse. Se os seres humanos são, implícita ou explicitamente, conduzidos por valores, os educadores dos núcleos de projeto identificaram valores comuns. O que daria consistência ao projeto seria uma “matriz axiológica”, na qual pontificariam, entre outros, a cooperação, a autonomia, a solidariedade, o senso crítico, a empatia, a responsabilidade social…

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CIX)

Park Way, Distrito Federal, 24 de maio de 2040

Queridos netos,

Toda a agente (todo mundo, no Brasil) as entende, se as “lições” foram feitas em linguagem de gente. Por isso, sem recurso ao jargão científico e tentando não cair no didatismo, esclarecerei uma dúvida do Marcos.

Ciências da educação? Então, a Educação não é uma ciência? – inquiriu o Marcos, surpreendido com as últimas palavras da cartinha de ontem. Tu sabes, Alice psicóloga, que não existe uma ciência da educação. E que, só na tua área, são várias as psicologias: a social, a da cognição, a da memória, a da aprendizagem…

Naquele tempo, havia cursos para tudo, exceto para ser pai e mãe, algo que quase todos seriam. A educação dos filhos era aprendida enquanto se educava.

Toda a aprendizagem acontecia através da imitação, pelo exemplo. Um professor não ensinava aquilo que dizia, transmitia aquilo que era. A aprendizagem era antropofágica. Não aprendíamos aquilo que o outro dizia, aprendíamos o outro. Se um pai se queixava de erros cometidos pelo filho, era porque não percebia que os filhos eram espelhos dos pais.

Naquele tempo, havia cursos para fazer professores. Porém, essa formação era formatação. Os professores eram industriados num velho modelo educacional e amestrados em salas de aula. O modo como o professor aprendia era o modo como o professor ensinava. O que se aprendia era a vivência, o modo. Por exemplo, havia cursos de “metodologias ativas em sala de aula”. Mas, após os cursos, os professores praticavam “metodologias inativas”. Se o formador deu aula, o formando dava aula. Eu sei que se identificava, por exemplo, a “aula invertida” e o “ensino híbrido” como “metodologias ativas”, mas não o eram. Eram meros paliativos do obsoleto modelo de ensinagem.

No final desse mês de maio, centenas de educadores rejeitaram as imposições da administração escolar. Por dignidade profissional, assumiram um compromisso ético com a educação. Bem acompanhados… pelas ciências da educação. Isso mesmo, querido Marcos. Aqui, vos apresento alguns dos mestres inspiradores desses professores (eram muitos mais!):

O Agostinho da Silva e o Rubem Alves, da Filosofia da Educação; o Florestan Fernandes e o Henry Giroux, da Sociologia da Educação; o Lawrence Stenhouse e o Gimeno Sacristan, do Desenvolvimento Curricular; o Paulo Freire e o Edgar Morin, da Epistemologia; o Manuel Castells e o Simon Papert, das Tecnologias de Informação e Comunicação; o Anísio Teixeira e a Maria Nilde, da Pedagogia (se a Pedagogia era arte e ciência, não “jogávamos fora o menino, com a água do banho”, aproveitávamos o que de útil a Didática nos oferecia); o Darcy Ribeiro da Política Educacional; o Pierre Lévy da Cibernética; o António Damásio, das Neurociências; a Nise da Silveira, da Psiquiatria; o Carl Rogers, da Psicanálise; o António Nóvoa, da História da Educação; e os professores visitavam a praxeologia de Freinet…

No domínio da Psicologia da Educação, em que a tua irmã é doutora, os professores eram acompanhados por mestres como Lev Vygotsky, Jean Piaget e Lauro de Oliveira Lima, que, na década de setenta, havia escrito:

A escola não se reduzirá a um lugar fixo muradoA expressão “escola de comunidade” procura significar o desenquistamento isolacionista da escola tradicional. Escola, no futuro, será um centro comunitário propulsor das equilibrações sincrônicas e diacrônicas do grupo social a que serve.

Enquanto a administração desperdiçava recursos e condenava ao abandono milhares de alunos, professores “desobedientes” construíam comunidades e garantiam o direito à educação.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CVIII)

Fercal, 23 de maio de 2040

Más notícias recebíamos nesse agitado mês de maio. O Brasil tornara-se o segundo país com mais casos de covid-19. E a América Latina passara a ser o epicentro da pandemia.  A  interrupção de serviços sociais contribuía para o agravamento da pobreza. O fecho dos prédios das escolas, aliado à prática de ensinarem, criava situações de abandono intelectual dos alunos.

Com a amorosidade que os caracterizava, muitos professores se angustiavam, por não conseguir estabelecer contato com alunos sem acesso a uma Internet, que lhes permitisse receber as aulas online. E percebiam que, cumprindo ordens da administração escolar, votando ao abandono os restantes, contribuíam para acentuar o fosso da desigualdade social.

Numa entrega admirável e à margem das inúteis iniciativas da administração, dedicados professores conseguiam estabelecer contato com todos os alunos (sublinho: COM TODOS!). A partir daí, foram criados vínculos e construídos roteiros de estudo, que conduziram à pesquisa, em processos de auto-formação em comunidade. Acontecia aprendizagem. Sem aula. Com TODOS!

Identificadas necessidades e problemas das comunidades (fome, insalubridade e múltiplas chagas sociais), os professores ajudavam a desenvolver soluções, de modo autônomo, sustentável. Perguntareis: Como faziam isso? Como conseguiam chegar a todos os alunos? Como conseguiam esses professores garantir a todos o direito à educação? As respostas estavam inscritas num projeto, que tinha sido entregue à secretaria, anos antes. Um projeto que a secretaria votou ao ostracismo e quase destruiu.

Naquele tempo, o autor do livro “Necropolítica” nos dizia que “a expressão máxima da soberania residia (…) no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Ser soberano é definir a vida como a implantação e manifestação de poder. Logo, neste sentido, a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é”. A administração escolar escolheu quem poderia continuar a receber aula e quem ficaria abandonado à sua sorte. Não conseguia alcançar sequer metade dos alunos e legitimava a crueldade do abandono com uma ridícula proposta de “gestão estratégica. Uma sutil corrupção afetava o funcionamento do sistema, sendo mais destrutiva do que o covid-19 – a corrupção intelectual e moral.

O documento da “Gestão Estratégica” era disso expressão, um documento sem fundamento científico e com tentativas de disfarçar essa lacuna, recorrendo à sofisticação do discurso, para disfarçar a miséria das práticas. Abusivamente, se evocava o chamado “Currículo em Movimento” – um documento orientador da política educacional – como se essa proposta alguma vez tivesse sido operacionalizada. Os autores do documento admitiam ser aquela “uma oportunidade de pensar outras práticas pedagógicas em outros espaços, com o fim de aperfeiçoar o processo de ensino e aprendizagem”. Mas os burocratas mataram a “oportunidade”.

As últimas linhas do documento de “Gestão Estratégica” disso eram prova: As atividades ofertadas (…) devem ser centradas nos estudantes. Isto é: a administração assumia (na teoria) que o centro deveria ser o aluno, mas impunha (na prática) aulas centradas no… professor. Escrever uma coisa e fazer outra seria sintoma de esquizofrenia? Talvez. Ou talvez não. Eu preferia acreditar que os autores do documento eram ignorantes das ciências da educação.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CVII)

Vicente Pires, 22 de maio de 2040

“Avô, quase com noventa, ainda te preocupas com as coisas do mundo?”

Querido Marcos, já que perguntas, te direi que me preocupo menos. Apenas avivo a memória dos homens e comento as “coisas do mundo” de um tempo sombrio. À distância de vinte anos, vemos com mais clareza e desprendimento as “coisas do mundo”. E, quando a eternidade se aproxima, é maior o desprendimento.

Mais adiante, na tua cartinha, dizes que, nesse tempo sombrio, eras um jovem e não entendias a minha “irritação”. Compreendo. Como a maioria das pessoas desse tempo, não tinhas consciência da tragédia, nem das suas causas. Confesso que me irritava, me indignava. Hoje, apenas sinto compaixão.

Como eu não era pessoa de “ficar de braços cruzados, à espera da morte chegar”, fazia a minha parte, para evitar danos maiores. Certamente, estarás recordado das cartas, que escrevi para a tua irmã, no tempo em que ela nasceu. Numa delas, eu dava notícia de “muitas gaivotas, conscientes de que o tempo foge enquanto a eternidade avança, ousavam reinventar a Escola. Reivindicavam a felicidade do aqui e agora”. Tudo isto se passou no tempo em que tu nasceste, para que tivesses direito a ser feliz. Para que tu e a Alice viessem a ser pessoas felizes, centenas de educadores ousaram desobedecer às imposições da administração educacional.

O “Plano de Retorno às Aulas” da secretaria da educação apontava o “Ensino Híbrido” como “saída possível para os sistemas de educação, em todo o mundo” (sic), no contexto do isolamento social. A secretaria tivera mais uma visão salvífica: o “Ensino Híbrido” – considerado “atividade complementar” pela secretaria – iria “diminuir o impacto pedagógico causado pelo distanciamento social”. Iria remir os pecados do sistema de ensinagem. E… em todo o mundo!

A secretaria aderira a mais uma mezinha pedagógica, para disfarçar uma enfermidade crônica e manter o status quo.

Eu lera os livrinhos publicados no Brasil sobre o “ensino híbrido”. Era mais uma “redescoberta da roda” educacional, importada dos Estados Unidos. Dois anos antes, eu conversara com os promotores de cursos, que divulgavam essa “novidade”. Eram professores universitários, pessoas de boa-vontade, mas viciados na escola da aula. Com eles colaborei, apesar de serem “casos perdidos”.

Essa “organização do ensino”, como lhe chamaram os funcionários da secretaria, tinha por designação original anglo-saxônica a expressão “Blended Learning”. Em bom português, deveria ser designada por ”Aprendizagem Misturada”, mas era indevidamente designada por “ensino híbrido”, uma mistura de práticas do paradigma da aprendizagem com práticas do paradigma da instrução (ensinagem). Nada de novo. Cem anos antes, o Freinet tinha feito exatamente o mesmo, mas sem computadores… nem aula.

A substituição da palavra “aprendizagem” pela palavra “ensino” não acontecia por acaso. Era reflexo do condicionamento operado no seio de práticas sociais, que a escola convencional produzia e que uma racionalidade burocrática reproduzia “misturado” com mais um modismo pedagógico.

À patetice da administração, os núcleos de projeto responderam com uma responsável desobediência. Realizaram encontros virtuais com famílias e comunidades, antecipando os encontros presencias e virtuais, pós-pandemia. Verdadeiras aprendizagens seriam asseguradas e o direito à educação a todos seria garantido, sem aulas online ou “híbridas”: Sem “retorno às aulas”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CVI)

Samambaia, 21 de maio de 2040

Ao longo de meio século, recebi milhares – não é exagero! – de mensagens como esta: 

Caro professor, estou num buraco negro. Tem sido um suplício, sofrimento por uma causa… Aqui, ninguém quer ver uma educação diferente. A Direção conseguiu ter terreno para fazer o que lhes adequava. Não tenho condições para defender o que quer que seja. Por lealdade e respeito pelo seu trabalho, retiro-me de um sonho incompleto (…) terminando, desejava contar com a sua ajuda para poder estar mais em paz. Ao cabo de muitas ameaças de “superiores hierárquicos”, este professor desistia.

Na cidade e estado onde o professor desistente vivia e trabalhava uma hecatombe educacional acontecia. A maioria dos estudantes estava abaixo do nível 2 em matemática, patamar que a OCDE estabelecia como necessário para que pudesse exercer plenamente sua cidadania. Muitos jovens em idade escolar não estavam matriculados, por alegada “falta de vaga”. No 3º ano do ensino fundamental, apenas metade dos alunos alcançava o aprendizado adequado em matemática. No 5º ano, mais de 20% dos alunos estavam com mais de dois anos de defasagem. O nível de proficiência em Português e Matemática (percentual de alunos com plenas condições de compreender e se expressar) era baixíssimo. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica era miserável. No final do Ensino Médio, não passava do 4, numa escala de 10 pontos. Menos de 5% das famílias e da sociedade sabia dessa situação e a quase totalidade das famílias desconhecia a existência do projeto da escola frequentada pelos seus filhos. E esse projeto não era posto em prática, porque nem sequer os professores conheciam o seu conteúdo – a farsa era monumental!

Ao cabo de dois meses de isolamento social, a secretaria publicou um documento, que dava pelo nome de “Plano de Retorno das Aulas da Rede Pública”. Os cientistas da educação afirmavam a necessidade de profunda revisão do sistema educacional e a de produção de novas práticas. Mas, a secretaria preparava o “retorno das aulas”, o regresso de uma mesmice pedagógica causadora de uma tragédia educacional, que não fora interrompida pela crise do covid-19.

Na lei, nada obstava a que se concretizasse uma nova construção social de aprendizagem, que a todos pudesse garantir o direito à educação. Porém, seria necessário que o quadro normativo da secretaria fosse revisto e se adequasse a necessidades sociais e educacionais do século XXI. Dois anos antes, o Governador tinha ordenado à secretaria que o fizesse. A secretaria não cumpriu a decisão do Governador. O vírus da corrupção intelectual e moral afetara, profundamente, a administração educacional.

Virtualmente, como ditava a situação, houve quem criasse uma “vacina”… num processo formativo caraterizado pelo isomorfismo, os núcleos de projeto organizaram roteiros de estudo, visando a reelaboração da sua cultura pessoal e profissional. Partindo daquilo que eram e do que sabiam fazer – valorizando o saber “dar aula” – os professores aprenderam a utilizar dispositivos pedagógicos, a praticar metodologia de trabalho de projeto, a fazer avaliação formativa…

Também virtualmente e conscientes de que escolas não são prédios, mas pessoas, instalaram protótipos de mudança, identificando espaços e pessoas com potencial educativo, preparando “círculos de vizinhança”, sementes de protótipos de comunidades de aprendizagem.

A administração bem podia usar de belos slogans, para enganar incautos e perenizar a farsa. Esses professores deixaram-na a falar sozinha – “Finita la comédia!”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CV)

Cruzeiro, 20 de maio de 2040

No decurso da pandemia, eu observava o louvável esforço feito pelos professores, para “não perder alunos”, para “os alcançar” (sic). Eram admiráveis as suas tentativas de adaptação ao virtual. Sob a pressão da pandemia, tinham sido adotadas precárias soluções e não se poderia pedir mais empenho a professores e estudantes.

A minha amiga Dora estava atenta ao drama vivido pelos incansáveis professores e pronunciava-se favorável à abolição “da escola chata, autoritária, conteudista, distante dos interesses dos alunos, imposta goela abaixo das crianças e dos adolescentes, arrancando deles a curiosidade e a vontade de estudar”. A Dora pugnava por uma educação diferente da tradicional. Desejava-a ativa, autônoma, com afeto entre educador e educando.  considerava que “o problema não está em fazer agora um ensino à distância (e não é mesmo possível fazer outro ensino). O problema é transferir para o ensino à distância o que já é ruim no presencial”.

Não passava um dia sequer, que eu não escutasse ecos das palavras da Dora, na voz de professores. Na terceira semana de maio, tomei a decisão de dar resposta prática aos muitos pedidos de ajuda.

Há quase setenta anos, eu era um professor como qualquer outro. Dava as minhas aulas, como qualquer outro professor. Cumpria ordens dos superiores hierárquicos, numa escola chata, autoritária, conteudista. Até ao dia em que, com mais duas professoras, tomei uma decisão éticaE, em 2020, à semelhança do que havíamos feito, em meados da década de setenta, convidei professores, pais e comunidades, para pôr fim à escola chata, autoritária e conteudista. A começar por recusar obedecer a quem os obrigava a preparar e a exportar inúteis aulas online. O primeiro momento de uma grande mudança foi a criação de “núcleos de projeto”. Considerada a escola como nodo de uma rede de aprendizagem, seria necessário constituir parcerias, estimular o espírito inventivo e assumir responsabilidade social, dentro do princípio ético que nos diz que tudo o que for inovado o deva ser para benefício coletivo.

Expliquei como se constituiria um Núcleo de Projeto. Era o dispositivo central do processo de mudança das práticas, o primeiro passo de um projeto de reelaboração da cultura pessoal e profissional, concomitante com a concretização de um projeto educativo. O Núcleo de Projeto nascia no encontro entre professores, famílias e agentes educativos locais. Também seria necessário incluir gestores e pesquisadores. Centenas de educadores responderam ao convite.

A preocupação maior era a de cuidar da pessoa do professor, elevar-lhe a autoestima, o estatuto social. Aceitar que muitos não ousassem mudar, por medo das consequências. Nada impor a quem discordava e criticava, porque crenças não se discutem – respeitam-se. Tentar estabelecer uma comunicação dialógica, com os gestores. Usar de compreensão e compaixão para com eles. E de muita resiliência, de muita paciência, para não desistir.

Também seria necessário estabelecer um diálogo franco com as famílias, pois muitas delas ainda alimentavam a crença nas virtudes da velha escola. E dialogar com uma sociedade enferma da “Síndrome da Gabriela” (eu sou assim, fui sempre assim, serei sempre assim…), explicando-lhe que nem sempre foi assim. Que a escola “é assim” só desde há cerca de duzentos anos. E que, assim sendo, essa escola vem semeando ignorância, analfabetismo, múltiplas violências e escassas aprendizagens.

Com a criação dos núcleos de projeto estava dado o primeiro passo de um longo (e difícil) caminhar.

Por: José Pacheco

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