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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXLV)

Trafaria, 29 de junho de 2040

Querida Alice,

Escolheste ser psicóloga, porque desejavas estudar a mente humana e ajudar a dissipar o medo e os problemas de relacionamento sentidos pelos humanos da década de vinte. Na psicologia comportamental estudaste a famosa “caixa de Skinner”. Nesse tempo, as escolas seguiam à risca a Teoria do Reforço, na crença de que o comportamento pode ser influenciado e determinado pela gestão de recompensas e punições a ele associadas. Bem cedo, o meu amigo Filipe tomou consciência dessa skinneriana armadilha:

Recordo-me do meu maior receio, o de não conseguir controlar a turma! Na faculdade, ensinaram-me que não podia dar confiança aos alunos, porque eles abusariam. Então, tentei ser empático. Não resultou. Eram ingratos. Abusavam da confiança.

Na sala dos professores, aprendi que se mantinha os alunos quietos marcando faltas disciplinares. Os meus colegas mais velhos foram bem claros: “Tens de os ter na linha, dar-lhes rédea curta!” Comecei a colocar alunos na rua, até as aulas começarem a tomar um rumo.

E resultou? – perguntei.

Não. De fato, tenho observado que, de uma maneira ou de outra, perdemos muito tempo de aula com a indisciplina. É cada vez pior!

 

Longe ia o tempo em que o pai era a autoridade na família e o professor era a autoridade na escola, devendo os jovens obedecer a ordens e estar atentos às lições. Nos idos de vinte, a indisciplina – herdeira do autoritarismo e da permissividade – ocupava o lugar do “respeitinho” de antigamente.

Apesar de reconhecer a complexidade do assunto, eu ousava apontar pistas de reflexão. Numa escola, onde trabalhei durante trinta anos, acolhíamos jovens expulsos de outras escolas, porque haviam maltratado ou posto professores de outras escolas em estado de coma… imaginai a que ponto chegava a violência!

Compreendemos que, onde não havia diálogo, havia coação, prepotência, violência simbólica e física, e as atitudes de titulares do poder público de então eram disso reflexo.

Nessa escola não nos confrontávamos com falta de autoridade. Colocámos uma pedagogia da pergunta no lugar antes ocupado pela da resposta, escutando, levando em consideração o que o outro nos dissesse. Porque nos apercebemos que não poderíamos resolver os problemas dos jovens sem resolver os problemas dos adultos – ninguém dá aquilo que não tem, ninguém transmite aquilo que não é – e de uma educação para a cidadania passámos a uma prática de educação na cidadania, no exercício de uma liberdade responsável.

Os estatutos não se confundiam – professor era professor; aluno era aluno. Mas, para conseguir recuperar a autoridade, seria necessário que o professor se conhecesse afetivamente e se reconhecesse no outro. A segurança gerada permitia ao professor ser senhor de si, elevar a sua auto-estima e beneficiar de hetero-estima. Mas, quem cuidava da melhoria da formação pessoal e social do professor? Quando aconteceria a ruptura com a cultura do “cada qual por si”, que infestava as escolas?

A psicologia do comportamento reconheceu efeitos indesejados da punição. Na terapia comportamental, a palavra “punição” se referia a procedimentos de fazer seguir ao mau comportamento uma consequência, visando diminuir a probabilidade de nova ocorrência. Mas, não era bem assim como se dizia. Na ausência da definição conjunta de regras de convivência, as ocorrências… ocorriam. E muitos dos considerados violentos continuavam a ser… violentados. Como diria o Brecht, “diz-se das águas de um rio que são violentas, mas nada se diz das margens que as comprimem”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXLIV)

Alcobaça, 28 de junho de 2040

Ficastes surpreendidos por vos ter dito “em 2020 era assim”… Pois ficai sabendo que era muito pior!

Após a pandemia, esperava-se que três subsistemas sociais mudassem de rumo: o sistema político, o sistema econômico e o sistema educacional. E que este deixasse de ser “de ensino”, para ser de efetiva aprendizagem. A degradação do modelo de ensinagem já fizera muito estrago. Semeara ignorância e contribuíra para o agravamento de efeitos colaterais: doenças profissionais, corrupção e até suicídio juvenil.

Em 2020, os prédios de escola estavam fechados. Os professores, angustiados, por não conseguirem alcançar mais de metade dos seus alunos. A administração educacional, cometendo ilegalidades, entre as quais a do abandono intelectual de mais de metade dos jovens em idade escolar. Por força do modelo da aula, mlhões de alunos estavam votados ao  abandono. E esses jovens estavam ansiosos de reencontrar, de abraçar os seus amigos. Porém, o regresso planejado seria à mesmice da sala de aula, mascarados, sem poder abraçar-se e condenados ao abandono intelectual e moral.

O amigo Tião comparava esse modelo educacional a um “serviço militar obrigatório”, a partir dos seis anos de idade. E era certo que o “campo de batalha” em que a escola da aula se transformara, ao longo de dois séculos, se abria para a remilitarização da ensinagem. Digo “remilitarização”, porque a escola de 2020 tinha por origem remota a escola prussiana do século XVIII.

A remilitarização da escola partia de princípios idênticos àqueles que lhe deram origem. As crianças eram manipuláveis, meros objetos de ensinagem, formalmente obedientes a inquestionáveis ordens. A convivencialidade humana fundada numa relação humana vertical, as cadeiras enfileiradas, as filas, o toque de entrada e saida de espaços de confinamento governados por regras impostas arbitrariamente, foram criações do tempo imperador, desencadeando a normatização do ensino.

Duzentos anos após a pandemia da ensinagem chegar ao Brasil, mesmo que a remilitarização não se consumasse, havia pretexto para vigiar e punir. Vigiava-se gestos dissonantes de autonomia e, com o infligir de uma disciplina férrea, se punia manifestações de violência verbal ou física, geradas pela própria escola.

Em 2020, era assim… queridos netos. Nem seria necessário evocar episódios como os de Columbine, ou do Realengo, protagonizados por ex-alunos, que voltavam à escola para matar seus colegas e professores. Três alunos colaram uma professora na cadeira, foram expulsos e transferidos para outras escolas. Este lamentável episódio teria sido o corolário da tolerância do intolerável. Mas porquê criminalizar a indisciplina, agindo sobre consequências, se já era tempo de agir sobre as causas? De que serviria expulsar alunos? A violência seria resposta para a violência? Se o discurso era unânime – É preciso reforçar a autoridade dos professores! – a prática contrariava o discurso. A regra era a transferência da autoridade do professor para os órgãos de gestão e para burocráticos procedimentos disciplinares.

Autoridade não rima com controlo, imposição, submissão. Etimologicamente, a palavra autoridade significa “ajudar a crescer”. Ajudar a crescer pressupõe o exercício do diálogo e a desocultação de perversos modos de relação. Por mais que custasse reconhecer, perante a violência simbólica imposta pelas escolas, a desobediência e a indisciplina poderiam ser consideradas manifestações de sanidade mental.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXLIII)

Castelo de Vide, 27 de junho de 2040

Antigamente, não era raro ver premiar com o Nobel, não um cientista isolado, mas uma equipe. E, quando um cientista discursava na cerimônia, fazia-o, quase sempre, agradecendo à sua equipe, lembrando que era pela partilha do engenho humano que a inovação acontecia.

Também antigamente, era hábito premiar o dito “professor do ano”, de modo semelhante ao da entrega dos óscares de Hollywood. Decerto, os premiados seriam ótimos professores de sala de aula. Não duvidava da sua competência. Também não duvidava da amorosidade, que os “professores nota 10” colocavam no seu labor. Mas, a expressão “Professor do Ano” era reflexo de uma cultura profissional feita de solidão, de um exercício da profissão eivado de individualismo. E os rankings não passavam de instrumentos de comparar pessoas, como se fosse possível compará-las!

Sozinho, numa sala de aula, também eu me considerava o “melhor professor”, digno de premiação. Quando dei sumiço às aulas, passei a não competir, mas a cooperar, passei a trabalhar em equipe. Conheci muitos educadores, que não foram “professores do ano”, mas valiosos professores de todos os anos, de uma vida inteira dedicada às crianças. Deles recebi lições de humildade. Mal pagos, maltratados, com um estatuto social depreciado, operavam milagres no anonimato das equipes de projeto. O “prémio” que recebiam do poder público era o assédio moral e, não raramente, a pérfida destruição dos seus projetos.

Quem assistisse à cerimônia da entrega do prémio “professor do ano” escutaria o premiado dizer que “estudar é uma coisa para todos”, quando deveria dizer que a educação era um direito de todos. E reconhecer que, dando aula, negava o direito à educação a muitos alunos.

No seu discurso, um auleiro ganhador do prémio assim se expressou:

Os alunos têm ciclos de atenção durante uma aula, que lhes permitem estar realmente empenhados”.

Esse premiado manifestava total ignorância no que tangia aos princípios gerais da aprendizagem e sem referir que esses “ciclos de atenção” eram escassos. Na cerimônia de premiação, havia lugar para esse e para outros ridículos pronunciamentos: 

“Quando nós conseguimos respeitar o ritmo dos alunos e permitir que eles próprios controlem o ritmo da aula…”

Nunca alguém conseguiu explicar de que modo o premiado auleiro conseguia alcançar tal prodígio, no contexto da sala de aula. Mas cheguei a escutar de um candidato a “professor do ano” este lamento:

Tenho lá um aluno que faz muitas perguntas e que está sempre a quebrar-me o ritmo da aula!”

Numa reportagem da premiação, o locutor também dava ares da sua graça:

O Professor pede aos alunos para escreverem um resumo do que é dito na aula, a cada 15 minutos. E até premeia os melhores”.

Efetivamente, o professor “premiava”, à boa maneira pavloviana, ou skyneriana, como a administração recomendava, décadas atrás.

Um auleiro foi premiado, porque criou uma “sala calmante”, para “aliviar tensões” (sic). Professores recebiam prémios porque davam aula “menos chatas” (sic). Outros porque davam aulas de meditação, para que os alunos aceitassem as restantes fastidiosas aulas. E a horta da escola secara, porque o professor premiado fora embora e levara “o seu projeto” para outra escola…

Queridos netos, absurdos foram abolidos, não fazem sentido nos dias de hoje. Mas, embora vos possa parecer inverosímil, essas e outras ridículas “premiações” eram frequentes nos idos de 2020.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXLII)

Alcanena, 26 de junho de 2040

Antes de vos falar do Manifesto da Mãe Carolina, quero que saibais que, no decurso do século XX, o Brasil conheceu dois manifestos da educação: o primeiro, de 1932, sufocado pela ditadura Vargas; outro, de 1959, que esteve na origem das “Escolas Experimentais” e dos “Colégios Vocacionais”. Se tiverdes interesse em conhecer essas duas extraordinárias iniciativas, talvez as encontreis no que resta do velho Google.

Já neste século, o Manifesto lançado na primeira CONANE hibernou até chegar 2020 e o tempo da pandemia. Um simples vírus bastou para que o sistema de ensinagem entrasse em crise e o teor do Terceiro Manifesto se materializasse num FAZER tardio, mas a tempo…

Vinte e quatro anos decorridos sobre a publicação de uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, a escola da aula engendrara milhões de analfabetos e “evadidos”. O desperdício de recursos atestava a ineficácia do sistema de ensinagem e perpetuava desigualdade.

O Brasil dispunha de produção científica, de educadores e de práticas que provavam a possibilidade de uma escola que a todos acolhesse e a cada qual desse condições de realização pessoal e social. Não surpreendeu, pois, que, paralelamente à hecatombe escolar cometida por secretarias e ministérios, comunidades de aprendizagem emergissem do caos como espaços de humanização. Se o poder público não cumpria a lei, o manifesto “Mudar a Escola, Melhorar a Educação: Transformar um País” se assumia como instrumento de debate e de efetiva mudança.

A minha amiga Ely, com quem rascunhei a proposta de Manifesto, dizia que “o seu papel foi o de fomentar o diálogo, reunir os contributos e sintetizar a fala e os escritos das pessoas, que se dispuseram a refletir, discutir e expor suas vivências, críticas, crenças, esperanças”.

Desejava que o documento fosse “a base para a construção de um carinhoso e macio ninho”, que abrigasse e fortalecesse a enfraquecida educação brasileira, desenvolvendo uma cultura de Paz. E concluía:

A você, que ama a educação e concorda que é possível fazer uma educação diferente da que aí está, fazemos um convite: Arregace as mangas e venha desdobrar o Manifesto pela Educação em ações concretas, que beneficiem nossos estudantes, suas famílias e a sociedade brasileira”.

A gênese desse documento – elaborado entre 2010 e 2013 – foi intensamente participada, em particular pelos “Românticos Conspiradores”. Centenas de colaborações foram recebidas pela coordenação do projeto, desde o Google docs às redes sociais, do e-mail aos fóruns de debates na internet e a reuniões presenciais. Nesse documento, se denunciava e anunciava. Denunciava-se, lembrando algumas estatísticas e realidades encobertas por um tenebroso “sistema” educacional. Anunciava-se, dando visibilidade social a práticas “eficazes e eficientes”, desenvolvidas em mais de uma centena de espaços educacionais brasileiros.

Há precisamente vinte anos, o terceiro manifesto da educação brasileira – “Mudar a Escola, Melhorar a Educação: Transformar um País” – foi melhorado pela proposta da Carolina e de outros educadores, que puseram em ato as nobres intenções desse documento. Se os manifestos de 1932 e de 1959 se mantiveram em estado de hibernação, os núcleos de projeto libertaram o terceiro manifesto do seu letárgico estado e foram protagonistas de processos de mudança e inovação.

Em próximas cartas, se quiserdes, disso vos falarei.

Com Amor, o vosso avô José.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXLI)

Viseu, 25 de junho de 2040,

Vinte anos atrás, em plena pandemia, foram muitas as estórias que o protagonista desta estória e as Cecílias de então me inspiraram. Ainda de passagem por Portugal, recordo o jovem que fui nestas paragens. Esta estória fala-nos de um inexperiente professor que se deixara influenciar por um grupo considerado marginal, nesses perturbados e perturbadores tempos. Um grupo de educadores politicamente incorretos, que dava pelo nome de… Movimento da Escola Moderna.

Com professores “marginais” aprendeu uma máxima que o iria acompanhar na sua trajetória de profissional do desenvolvimento humano: olha para o que és (ou pretendes ser como pessoa e professor), não olhes para o que outros fazem (ou não fazem, ou não são).

Ele leu tudo o que havia para ler, ou o deixavam ler, num tempo em que ninguém ouvira falar do Piaget. Se encantou com a leitura do Freinet do “texto livre”, no original francês, que um exilado político lhe havia oferecido. Mas já começava a descrer da cartilha. Ele bem tentava imitar o Freinet e a Elise, mas os quarenta alunos, que havia herdado de um austero professor à moda antiga, não saíam dos canónicos “a vaca dá leite, ossos e carne”, “a vaca é muito importante para a nossa alimentação etc.”

Naquele tempo, a palavra liberdade ainda inspirava em muitos espíritos sentimentos contraditórios. De modo que, quando colocados perante a possibilidade de rabiscarem “redacções” a que o jovem professor teimava em chamar “textos livres”, os jovens perguntavam:

É a lápis, ou a caneta? Quantas linhas se deixa depois do título? Quantas linhas manda escrever?

Naquele tempo, alguns sobreviventes da última “classe masculina” tinham na ponta da língua a tabuada, sabiam de cor as estações de caminho-de-ferro e o sistema galaico-duriense, desenhavam na perfeição a caneca da praxe e ainda sabiam entoar a música (já só a música!) do hino fascista “somos pequenos lusitos”, que o tempo de o Jesus do crucifixo estar ladeado por dois ladrões ainda não ia longe e a Biblioteca Popular do Salazar não tinha sido desmantelada, apesar da ordem expressa dos novos poderes.

O professor desta estória já havia trocado o livro didático pelo “texto livre” e pelo “livro da vida”. “Invertera a aula”, com recurso a “ficheiros autocorretivos”. Já havia instalado a “imprensa Freinet” e feito funcionar a “correspondência escolar” e a “cooperativa escolar”. Realizara “assembleias de turma” e muitas “aulas-passeio”. Foi, então, que entendeu – dizem os brasileiros que os portugueses demoram a entender… – o busílis da questão.

Eureka! O professor continuava sozinho, na sala de aula, com a sua “turma”! À semelhança de escolas waldorf, escolas montessorianas e pedagógicos quejandos, ele enfeitara o sarro da “aula” com uma parafernália de dispositivos escolanovistas, sem que, efetivamente, lograsse passar o centro do processo de aprendizagem do professor para o aluno.

Há vinte anos, sem se darem conta do ridículo da situação, gerações sucessivas de pesquisadores e de decisores políticos iam acrescentando novas demãos daquilo a que chamavam “inovação” – “metodologias ativas”, “aulas híbridas e invertidas”, “games”, “flexibilizações curriculares” e outros paliativos do modelo instrucionista – a uma escola inerte e irreformável. Continuavam teimosamente a persistir na ficção aberrante de um currículo pronto-a-vestir de tamanho único, igual para todos e capaz de todos formatar, como se todos fossem ou devessem ser um só.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXL)

Seixal, 24 de junho de 2040

Longe vai o meu tempo da juventude. Velho, que estou, não aguentei toda a “noite de São João do Porto”. Viajei para o sul. E já me encontro entre Sesimbra e Seixal, visitando as comunidades de aprendizagem, que por aqui surgiram, há cerca de vinte anos.

Mais uma vez, vos falo da pandemia instrucionista – nunca será demais – e dos seus maléficos efeitos, sob a perspectiva da Mãe Carolina, autora de um “Manifesto” divulgado no junho de há duas décadas. Transcrevo do original:

“Pesquisas médicas e evidências científicas vão se acumulando e sendo atualizadas sobre os prejuízos à saúde, quando ocorre o uso precoce, excessivo e prolongado das tecnologias, durante a infância e adolescência, e os efeitos em longo prazo. De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria, no Manual de Orientação, elaborado para a conscientização sobre o uso de telas, os principais problemas médicos e alertas de saúde de crianças e adolescentes na era digital são: dependência digital e uso problemático das mídias interativas; problemas de saúde mental: irritabilidade, ansiedade e depressão; transtornos do déficit de atenção e hiperatividade; transtornos do sono; transtornos de alimentação: sobrepeso/obesidade e anorexia/bulimia; sedentarismo e falta da prática de exercícios; bullying & cyberbullying; transtornos da imagem corporal e da autoestima; riscos da sexualidade, nudez, sexting, sextorsão, abuso sexual, estupro virtual; comportamentos auto lesivos, indução e riscos de suicídio; aumento da violência; problemas visuais, miopia e síndrome visual do computador; problemas auditivos e PAIR (perda auditiva induzida pelo ruído); transtornos posturais e musculoesqueléticos…

Talvez não fosse do conhecimento dos desgovernantes de então este repositório de perdas e perigos. Meses a fio, castigaram os jovens alunos com uma sobrecarga de aulas online, videoaulas, múltiplas tarefas, para serem realizadas com recurso ao computador. A pandemia instrucionista operava mais estragos do que a pandemia do covid-19. Não lhes passaria pela cabeça sequer que seria possível evitar tamanha exposição à emissão de radiação emitida na tela do computador… os desgovernantes da educação jamais admitiram a sua responsabilidade pelas lesões causadas no corpo e no espírito dos infantes. E despenderam fortunas em contratos firmados com empresas do digital e canais de TV.

Prevaleciam economicistas interesses, em detrimento dos interesses das crianças. Nas decisões de política educacional, critérios de natureza administrativa se sobrepunham aos de natureza científica. Mas, como diria o poeta, mesmo em tempos de servidão, há sempre alguém que diz “Não!”.

O Leonardo me dizia ter enviado e-mail para os setores administrativo e pedagógico do colégio do seu filho, questionando a centralidade das aulas online e o seu crescente desinteresse diante das aulas entediantes e dos outros absurdos, como o cronograma de provas e outras cobranças:

“Ainda não obtivemos nenhuma resposta. Nesta semana, recebemos o boletim com as notas. Quando o nosso filho viu as notas (consideradas “boas”), ele mesmo nos disse: “Isso, aqui, é uma farsa! Eu praticamente não participei de nada!”

“Pediu para deixar o colégio. Já não assiste às aulas online. Decidimos em família: Basta desse faz de conta!”

O que impedia que outros pais decidissem? O que justificava a passividade, o conformismo, a cumplicidade da maioria dos professores, perante o genocídio educacional perpetrado pelos desgovernantes desse tempo?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXXXIX)

Rocinha, 23 de junho de 2040

Perguntei a um jovem aluno por que razão dizia que morava na comunidade e não na favela. Eis a resposta:

Tio, eu digo que vivo na comunidade, porque dizer favela é feio.

Por que é feio? – perguntei.

Isso não sei – respondeu o jovem. E eu arrisquei manter o diálogo:

Sabes onde surgiu a primeira favela? Quem a fez?

O jovem lá foi ao encontro dos livros, da Internet e dos saberes comunitários. Voltou acompanhado, pois outros jovens se interessaram pelo assunto. Traziam um mapa do Rio. Situaram o local da primeira favela. Explicaram por que militares se instalaram no Morro da Providência.

Quem eram esses militares e de onde vinham? – inquiri.

Do Rio, partiram para Canudos, numa “missão de pesquisa”. Conheceram um António Conselheiro professor, que lera a biografia do inglês Thomas More. A curiosidade os levou até à Inglaterra, no paradeiro do Thomas. A “Utopia” de More e o seu fim no cadafalso atraíram o estudo de fenômenos de natureza religiosa. Os jovens estudaram os albigenses e os cátaros, desembocaram na Inquisição e na fuga do Padre Vieira, no porão de um navio, que aportou no Maranhão. Chegados a São Luís, o professor de Matemática tomou o leme da pesquisa e conversou sobre milhas marinhas e outras medidas…

Quando leram alguns sermões do Padre Vieira, os jovens compreenderam que ele lograra ludibriar a Inquisição, recorrendo a alegorias. E a professora de Língua Portuguesa aproveitou a circunstância e o interesse dos jovens, para mediar o estudo de metáforas e outras figuras de estilo…

O professor de História aproveitou o fato de Vieira ser um jesuíta e combinou com os alunos uma incursão às Missões do sul e às guerras que por lá houve. Os jovens biografaram Bento Gonçalves e chegaram ao conhecimento do Duque de Caxias e da Guerra do Paraguai. Perguntaram se era verdade que, no fim dessa guerra, o Conde d’Eu mandara “cortar a garganta a alguém”, ou se o príncipe-consorte queria extinguir a escravidão no Paraguai. Confesso que não sei que rumo terá levado esse viés investigativo. E que, por isso, perdi uma oportunidade de aprender.

No regresso da “expedição”, os jovens quiseram saber a origem de um nome de cidade tão bonito como Florianópolis. E depararam com um dos personagens centrais do drama de Canudos: Floriano Peixoto. Descobriram por que razão os habitantes do Desterro “homenagearam” o marechal, trocando o nome da ilha. Ao assistir a um vídeo sobre a Guerra de Canudos e pela leitura da “Guerra do Fim do Mundo”, os jovens alunos entenderam o que era um genocídio. E, ao estudar a Primeira República e a relação de Floriano com a Guerra de Canudos, regressaram a Vaza-Barris e à obra do engenheiro Euclides da Cunha…

Rumei ao chão de outra escola, deixando encomendada a busca da origem do termo “favela”. Soube, pela professora de Física que os alunos “acharam que tinham achado” o seu significado onde era abundante esse arbusto: no sertão nordestino. O professor de Filosofia contou-me que os jovens argumentaram que, sendo a favela muito resistente ao calor tórrido do sertão, simbolizaria a “resiliente sobrevivência” (palavras suas) das comunidades. Recomendei que aprofundassem essa romântica hipótese. Mas fui avisando que a favela era uma espécie típica da caatinga. E, ao que julgava saber, a cnidoscolus quercifolius dava-se muito mal com os ares do Rio de Janeiro…

Quando no chão das escolas, eu perguntava a uma criança “O que queres saber?”, ela respondia com outra pergunta:

“Eu posso dizer o que eu quero saber?”

Não conseguis, queridos netos, imaginar o quanto isso me desgostava, me magoava.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXXXVIII)

Porto de Mós, 22 junho de 2040

Transcrevo alguns excertos de um documento elaborado pela minha amiga Carolina, no já distante mês de junho de 2020:

“Somos uma sociedade em processo de despertar, de olhar para mudanças necessárias e urgentes. Vivemos dias importantes, incomuns. Enfrentamos – ainda não sabemos por quanto tempo – uma crise sanitária causada pelo vírus Sars-CoV-2, popularmente conhecido como covid-19. Nesse contexto, as escolas, impossibilitadas de funcionar normalmente, estão escolhendo novas maneiras de continuarem funcionando em meio à pandemia e se reinventando.

Nesse novo cenário, estudantes têm tido suas aulas ministradas por professores(as) via mediação tecnológica, plataformas virtuais. A consequência é um desgaste psíquico, dada a maneira pela qual aprendizes e ensinantes vêm lidando consigo mesmos, com as pessoas que os cercam e com a escola. É de conhecimento de todos que as orientações, tanto da Sociedade Brasileira de Pediatria, quanto da Organização Mundial de Saúde (OMS), são de que crianças com idades entre seis e dez anos tenham um limite de tempo em frente às telas de uma a duas horas por dia. E que os adolescentes, com idades entre onze e dezoito anos, passem, no máximo, três horas em contato com telas e tecnologias, por dia”.

Fundamentada na ciência, a OMS estabelecia que crianças com idades entre seis e dez anos não passassem mais do que uma a duas horas por dia. Mas, só em videoaulas, aulas online, inúteis e nefastas aulas, as crianças eram obrigadas a passar quatro a cinco horas diárias frente à tela de um computador.

Acresce que, para além de não terem fundamento científico e de serem atentados à inteligência e ao bom senso, as aulas de ensinagem remota provocavam outros danos:

“O brilho dos monitores e a emissão de radiação de luz azul, presente na maioria das telas, contribui para o bloqueio do hormônio do sono, a melatonina. O resultado é a prevalência de dificuldade de dormir e de manter uma boa qualidade de sono. Na fase de sono profundo, o aumento de pesadelos e terrores noturnos, com prejuízo na produção dos hormônios do crescimento (GH ou somatotropina) e do regulador do apetite (leptina). Lembrando que o pico de liberação de GH se dá na fase do sono profundo e que este hormônio é intensamente produzido pela glândula hipófise, durante os primeiros anos de vida e na puberdade. A criança pode sentir aumento da sonolência diurna, problemas de memória e concentração, com diminuição do rendimento escolar, associados a sintomas de transtornos do déficit de atenção e de hiperatividade”.

A preocupação de uma psicóloga e mãe amorosa e responsável contrastava com a azáfama de empresários do digital, visando a passagem integral da ensinagem presencial para a tela do computador. E um sindicato atento às vorazes diligências de “grupos abutres de educação à distância” (foi assim que o sindicato os designou)  avisava:

Em tempos de crise, como é o caso dessa pandemia que estamos vivendo, podem aparecer alguns, tentando se aproveitar do desespero das escolas, para vender assessoria, consultoria, pesquisas etc. Este é um alerta, que nós temos a obrigação de fazer, pois as informações e todas as pesquisas que essas pessoas usam, para tentar convencer os mantenedores a comprar seus serviços (…)”.

Por aí prosseguia um confronto verbal, que culminaria numa disputa de mercado totalmente alheia ao “manifesto” de amorosas e responsáveis mães. O direito à educação estava a ser transformado numa mercadoria.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXXXVII)

Caldas Novas, 21 de junho de 2040

Queridos netos,

Nesse já distante mês de junho, o Brasil atingia a marca de mais de um milhão de infetados, registrava uma morte a cada minuto por covid-19, era epicentro da pandemia. Os shoppings reabriam, as ruas se enchiam de gente, a crise civilizatória se agudizava e… outro mundo se anunciava.

Espero não vos maçar, descrevendo eventos virtuais de 2020. Se considerardes que se trata de uma overdose de informação, mudarei de assunto. Combinado? Então, cá vai a descrição prometida…

As “tecnologias digitais” tinham sido introduzidas nas escolas, transformadas em panaceias do velho modelo educacional. Serviam para produzir videoaulas, que os alunos, acostumados ao imediatismo e à velocidade das ditas “novas tecnologias”, acriticamente consumiam, na dependência de vínculos afetivos precários estabelecidos com identidades virtuais.

A Internet não era uma ferramenta; era uma sociedade generosa na oferta de informação. Apenas seria necessário saber o que fazer com ela. Mas, a maioria dos professores “dava aula” em lousas digitais e na Internet. Bastava “clicar” para repetir conteúdo, até que a matéria fosse “transmitida”.

O modo como as escolas utilizavam a Internet fomentava imbecilidade e solidão, quando o necessário seria usar o digital ao serviço da humanização da escola. Tudo aquilo que um professor poderia “ensinar” numa sala de aula estava disponível, de modo mais atraente, na tela de um computador.

As escolas enfeitaram-se de projetos, sem lograr intensificar a comunicação, a pesquisa, a aprendizagem. Mercadores e empresas do ramo educacional espreitavam a oportunidade de substituir os prédios de escola por sistemas de “ensino à distância” – mecanismos vários, software, inteligência artificial, substituiriam professores por robôs.

No decurso do confinamento, a ensinagem virtual substituíra a ensinagem no frontal anônimo de sala de aula. Porém, houve quem não participasse dessa farsa e provasse que presencial e virtual não se excluíam, que coexistiam e se completavam. Com insubstituíveis professores se definiram territórios, múltiplos espaços de aprender; com recurso à diversidade de aplicativos, que a Internet nos oferecia.

No contexto do projeto, de que vos tenho falado, educadores criavam núcleos de projeto integrados por professores, escolas, famílias e comunidades. Começaram a chamar-lhes “círculos de vizinhança”. Embora nas escolas da ensinagem ainda se insistisse em formar turmas de 20 ou 30 alunos, a ratio professor/aluno nas escolas brasileiras era de cerca de 10 alunos por professor. A partir desse dado, foi definido um “número crítico” para composição desses círculos: entre sete e quinze pessoas.

No primeiro ano do projeto, poder-se-ia aceitar um número de alunos superior ao quantitativo ideal de uma tutoria. Nesse caso, a tutoria tomava a designação de “turma”, no dialeto oficial. Nessas “turmas” se garantia a todos os alunos o direito à educação, no cumprimento da lei – a lei, que a maioria das escolas não cumpria.

Organizados em núcleos de projeto, educadores de diferentes escolas se reuniam, para refletir sobre diferentes formas de comunicação, para tomadas de decisão, para a participação comunitária, para gerir eventuais conflitos, bem como preparar encontros, onde nasceram redes de comunidades de aprendizagem. Da criatividade à mudança e da mudança à inovação, centenas de educadores reconfiguravam as práticas escolares, refundavam a educação.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXXXVI)

Foz do Arelho, 20 de junho de 2040

Por que aprendemos? Como aprendermos? O que deveremos aprender? Estará a “escola obrigatória” a contribuir para o desenvolvimento do ser humano? – era, mais uma vez, o amigo João a refletir sobre aprendizagem e a cuidar do futuro dos seus filhos. Escutemos o que dizia no distante mês de junho de 2020:

Hoje, tive (uma vez mais) o privilégio de estar com os meus filhos e sobrinhos num ambiente perfeito, com muito espaço natural. É incrível o que aprendem assim, como aprendem e o que decidem aprender. O amor que nutrem uns pelos outros, o respeito, a entreajuda, num grupo com crianças dos 3 aos 14 anos, faz com que se sintam confiantes para… perguntar. Como é simples!

Tão simples era para um pai – e tão difícil para um professor – o saber aprender. O João integrava um núcleo de projeto, lado a lado com professores como a Izabel, que assim se expressava:

Estamos na formação inicial do grupo. Uma amiga topou e convidamos outra, que ainda está a pensar se quer aprender. Tenho refletido muito sobre esses movimentos de educação em casa, sobre o papel da família, sobre o papel da escola. Andei conversando com pais da escola do meu pequeno e há muita preocupação sobre as crianças, que estão entristecidas com as aulas virtuais e não sabem o que fazer. Tenho compartilhado algumas experiências de pesquisa com o Rafa, tomando o cuidado de reforçar que não substituo a escola, mas assumo um papel de protagonismo. Alguns poucos pais se colocam como interessados. Creio que o silêncio da maioria diz muito, também. Alguns não se sentem capazes de fazer diferente, outros se colocam a rezar para que as aulas voltem logo, alguns tiraram os pequenos da escola. Há de tudo.

Espero, junto com o núcleo, encontrar modos de conectar a família com os filhos, mas sem pensarem que irão excluir a escola. Nessa pandemia, a condição de isolamento social, as emoções à flor da pele com tudo o que está acontecendo, a dificuldade para produzir no trabalho e trabalho de casa, trazem muitos desafios. Sejamos mais criativos!

Concluo esta cartinha, “plagiando” mais uma mensagem.

Boa tarde, meu amigo! Peço desculpas pelo abuso em te escrever. Depois do encontro de ontem, um nó na garganta se fez. E, por ele, venho aqui. Primeiro, para agradecer mais uma vez e sempre por seu FAZER. (…) Como criança, chorei pelo descompasso do tempo do Universo. Por instantes, desejei que o meu pequeno fazer tivesse cruzado com o seu, há tempos. Mas sei que não há acasos…

Aqui chegado, recordei um “cruzamento” de há quarenta anos. O “Pássaro Encantado” (para quem não saiba ou lembre, refiro-me a Rubem Alves) tinha ido ao outro lado do mar, ao encontro da escola “com que sempre sonhara”. Preocupava-se com o futuro dos jovens, mas não se abstraía da necessidade da felicidade do imediato. O Pássaro Encantado ia de terra em terra, ensinando a desaprender. Seguindo o seu exemplo, muitos educadores, conscientes de que o tempo foge enquanto a eternidade avança, ousavam reinventar a Escola, reivindicavam a felicidade do aqui e agora.

Eu apenas ajudava a cumprir o sonho do amigo Rubem. A Ingrid, que eu ajudava e me ajudava, enviou-me um “Telegram”:

Enquanto me permitir, o seguirei no “Preciso de ajuda”. Quero que pontuem todos meus erros. Comigo, há muitas vidas que seguem no esperançar e não desistirei do fazer como deve ser feito. São muitos os erros no começo e novos surgirão no processo. Mas, lutarei sempre. Este não é um projeto só de educação, é de vida.

Por: José Pacheco

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