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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXIII)

Plano Piloto de Brasília, 19 de setembro de 2040

Hoje, se festeja mais um aniversário de Paulo Freire. No lugar etéreo onde se encontre, o Mestre deverá estar feliz. Nesse dia de há vinte anos, celebramos a sua memória, marcando encontro na Internet, para organizar uma Rede de Comunidades de Aprendizagem.

Neste setembro de 2040, reencontrei educadores que nele se inspiraram. E, no arquivo das cartas,que nesse tempo recebi, encontrei uma longa missiva, de que transcrevo um breve excerto:

“O grande entrave para a melhoria da qualidade educacional brasileira é o fato de que nossa população está satisfeita com nossa escola. Os pais estão satisfeitos porque não vislumbram possibilidades maiores do que gerações já viveram – aprender pouco ou pouquíssimo na escola. Eles precisam dar-se conta de que há algo mais nesta experiência de sucesso na alfabetização e não atribuam como um dos pais de aluno, como sorte de seu filho ter tido uma professora com “tino”, no sentido de professora com uma intuição natural ou com a “conhecida” vocação para mestra.

Naquele tempo, havia professores disponíveis para aprenderem permanente estado de projeto, porque se apercebiam da sua freiriana incompletude. Não sendo responsáveis por aquilo que deles fizeram, eram responsáveis por aquilo que fizessem com aquilo que fizeram deles. Sabiam ser eles o primeiro obstáculo à mudança e se envolviam em processosde reelaboração da sua cultura profissional. Porém, outros obstáculos se apresentavam. Entre eles, o autoritarismo, expresso num naco de prosa do livro “Professora, sim; tia, não”:

Como esperar de uma administração de manifesta opção autoritária, que considere, na sua política educacional, a autonomia das escolas? Que considere a participação real dos e das que fazem a escola, na medida em que esta se vá tornando uma casa da comunidade? Como esperar de uma administração autoritária, numa secretaria qualquer, que governe através de colegiados?

Felizmente, algumas secretarias já eram geridas por educadores que sabiam que o ato de educar era um ato político, um ato de amor. E o amor, como diria o Herbert, é o único carburante que se conhece, que aumenta à medida que se emprega. Autonomia é um ato relacional e contribuir para a autonomia do outro é um ato de amor.

Conheci professores insatisfeitos com o seu desempenho. Perguntavam:

Se eu dou aulas tão bem dadas, por que razão há alunos que não aprendem?

Dei-lhes a ler a obra de Freire e a distância entre o pensar e o fazer se encurtouUm koan incontornável se apresentou: se eles davam aula e havia alunos que não aprendiam, esses alunos não aprendiam porque eles… davam aula.

Ao invés de dar respostas a perguntas que não escutavam, se interrogaram. Se a aprendizagem se concretizava na intersubjetividade, haveria outros modos de ser professor? Outros modos de aprender e talvez ensinar? De que maneira todos os jovens poderiam aprender o que era suposto que aprendessem? Inspirados no Mestre, esses professores não cederam ao fácil. Juntos, conceberam espaços e tempos de uma nova construção social onde, efetivamente, se aprendia.  

Em setembro de 2020, quase um século decorrido sobre o nascimento de Paulo Freire, a primeira comunidade de aprendizagem brasileira retomava a sua atividade. Após um crítico início e ainda em plena pandemia, a Rede de Comunidades de Aprendizagem do Distrito Federal – um projeto de política pública! – ressurgiaFinalmente, aaprendizagem acontecia num re-ligare essencial entre a educação escolar, familiar e social. Em comunidade.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXII)

Serra das Araras, 18 de setembro de 2040

Por volta do mês de maio da pandemia, uma “circular para as escolas” assim rezava:

“Abrir a creche agora? Não vá atrás de conversa fiada! Não proceda de forma irresponsável, ao arrepio da Lei. Se consumada essa transgressão às leis, decretos e normas vigentes em função da pandemia, como querem irresponsavelmente alguns, isso poderá gerar a incriminação das escolas, seus mantenedores e gestores. Além dos mantenedores, os pais também poderão ser responsabilizados pela Justiça por esse verdadeiro ato criminoso, de expor incapazes (crianças e adolescentes) a situações de contrair uma doença mortal, se levá-los de volta para a creche ou escola ainda sem os procedimentos de segurança e saúde necessários à proteção dos alunos e toda a comunidade escolar. Não podemos entrar em desespero e fazer o jogo daqueles que tentam iludir você, falseando a verdade só para tirar proveito da situação”.

Pouco tempo depois, o apelo da “força da grana, que ergue e destrói coisas belas” foi mais forte do que o respeito pela vida. Essas vozes se calaram ou se juntaram ao coro dos que apelavam ao “regresso às aulas”.

“Especialistas” em educação “alertavam para o impacto econômico do fechamento das escolas” e declaravam: “Está claro que a reabertura das escolas não agrava a pandemia”. Não estava claro. Aliás, estava até muito escuro, como iremos ver…

Uma ministra alertava para a necessidade de manter distâncias e evitar ajuntamentos, na luta contra a pandemia: “As regras são da responsabilidade de cada um de nós. Manter a distância, usar máscara e desinfetar as mãos é responsabilidade é de cada um”. Porém, a mesma ministra rejeitava a ideia de que a escola era um lugar inseguro. Afirmou que “se havia sítio seguro, esse sítio era a escola” e que os diretores de escolas diziam ter condições para receber os alunos.

Em meados de setembro, recebi mensagens de familiares de alunos, que temiam o regresso à mesmice, sem garantia de proteção face à covid-19. Não recusavam apenas regresso ao prédio da escola, mas o… “regresso às aulas”. Pais atentos se aperceberam que a sala de aula não era um lugar seguro. Como diziam os brasileiros de então, “o buraco era mais em baixo”. Muitos pais tinham compreendido que as aulas prejudicavam os seus filhos, que numa aula quase nada de útil eles aprendiam. E o que aprenderiam dentro de uma sala de aula, que não pudessem aprender fora dela? Mutatis mutandis, por amor aos seus filhos, não permitiram que fossem para dentro de um prédio a que chamavam “escola”. E muito menos para dentro de uma sala de aula.

Diretores ameaçavam com falta injustificada e até com a “reprovação por faltas”. Face a manifestações de irresponsabilidade e autoritarismo, aconselhei os pais a exigir dos diretores a assinatura de termos de responsabilidade. Um termo em que o diretor assumisse responsabilidade, acaso os seus filhos e familiares viessem a serem infetados pela covid-19, ou até morressem. Outro termo, em que o diretor garantisse que, em sala de aula, o direito à educação a todos seria garantido. De igual modo, os professores conscientes dos malefícios da aula instrucionista poderiam exigir, como condição do regresso ao prédio da escola, uma declaração assinada pelo diretor, na qual ele assumisse que os professores tinham direito de não “dar aula”.

A escola da aula agia à margem da lei. Não garantia cuidados de saúde. Não garantia a preservação da vida. Não garantia o fundamental direito à educação. Urgia conter ilegalidades, devolver à escola a dignidade do ato de educar.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXI)

Brasília de Minas, 17 de setembro de 2040

Retomarei assunto já conversado, a coerência entre o pensar e o fazer. Ofereço-vos um contraponto da incoerência, revelando uma das facetas do projeto de uma escola em que havia consonância entre teoria e prática. Essa escola assumia um preceito de Pestalozzi: “A educação moral não deve ser trazida de fora para dentro da criança, mas deve ser uma consequência natural de uma vivência moral”.

O projeto (escrito) dessa escola consagrava valores, cuja prática operava o resgate daquilo que torna os seres humanos mais humanos. A práxis dessa escola permitia aos seus alunos partirem do zero em comportamento para a nota dez em humanidade.

Diz-nos o dicionário que valor é preceito ou princípio moral passível de orientar a ação humana. Há vinte anos, havia visíveis sinais de que a velha escola estava prestes a parir uma nova escola. E, ao tentar colocar valores e princípios em ato, num incansável FAZER, educadores sensíveis sentiam intensas dores de parto.

Nas minhas conversas com professores, muitas vezes escutei expressões deste tipo:

Eu gostaria de mudar a minha prática, mas…

Eu respondia com uma rude interpelação:

O que o impede de mudar? Gostaria, ou quer? Decida!

Havia quem quisesse, mas não quisesse, quem tentasse e hesitasse, embalando a incoerência num blá, blá, blá, entre o lamento e a autocomiseração. Desisti de me preocupar com inovadores não-praticantes. Investi toda a minha energia na fraterna ajuda àqueles que, no chão da escola, concretizavam princípios.

A vivência dos valores enforma o caráter, projeta-se nas atitudes, opera transformações, desenvolve uma “ética universal do ser humano”, como diria o saudoso Paulo. A coerência entre teoria e prática reorientava a ação humana e dava bons frutos. E o filho da Cleide já não assistia às aberrações do Big Brother.

O pai do Maique, atento e crítico nas intervenções que fazia durante as reuniões de pais, ajudou a escola na compra de um violino para o seu filho. Aos treze anos, quando chegou àquela escola, o Maique não conseguia sequer pegar num lápis. Os trabalhos da roça tornaram os seus dedos hirtos, as mãos calejadas difíceis de fechar. Mas, já ia ensaiando acordes de bachianas partituras, enquanto aprendia noções de matemática. O impulso criativo da orquestra de jovens ganhou raízes no propiciar às crianças a oportunidade do deslumbramento dos sentidos.

Sabemos que a transmissão de valores se dá pela convivência, pelo exemplo, pelo contágio emocional. Assim aconteceu com o Maicon, filho de pai que não chegou a conhecer e de mãe assassinada por traficante. Por ter sido vítima de estupro, não controlava o esfíncter anal. Naquela manhã, chegou cheirando a fezes, urina e suor. E não tardou a reincidir no xingamento e na agressão aos colegas.

O professor aproximou-se e abraçou-o… com firmeza. O Maicon tentou libertar-se do amplexo, estrebuchou, gritou. Quando se acalmou, o professor ficou a fitá-lo, em silêncio. Quando o Maicon tirou os olhos do chão, falou:

Tio, posso fazer uma pergunta?

Podes. – respondeu o professor.

Posso dar-lhe um abraço?

Aquele corpo franzino colou-se ao peito do professor. E o inusitado questionamento repetiu-se:

Tio, posso fazer outra pergunta? Posso?

Antes que o professor, visivelmente emocionado, pudesse responder, o Maicon acrescentou:

Por que foi que o tio chorou, quando eu o abracei?

Bastou um momento de carinho e firmeza, para que a reciclagem dos afetos acontecesse. Tem razão o Juarez, quando diz que não há tarefa impossível, quando ao desejo do coração se soma a verdade da intenção.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXX)

Campinas, 16 de setembro de 2040

Pedistes que vos contasse mais um pouco daquilo que o amigo Rubem viu e sentiu, na Ponte. Então, aqui vai.

“À esquerda da porta de entrada havia frases escritas com letras grandes, afixadas na parede. A menina explicou: ‘Aprendemos a ler lendo frases inteiras’ “.

As frases que se encontravam escritas na parede da Escola da Ponte eram frases propostas pelas próprias crianças, frases que diziam o que elas estavam vivendo. Aprendiam, assim, que a escrita serve para dizer a vida que cada um vive. Pensei que é assim que as crianças aprendem a falar. Elas aprendem palavras inteiras, pois somente palavras inteiras fazem sentido. Elas não aprendem os sons para depois juntar os sons em palavras.

“Mas é importante saber as letras na ordem certa”, continuou, “porque é assim que se aprende a ordem alfabética, para usar os dicionários”. Ela falava assim mesmo, não é invenção minha”.

Não era mesmo “invenção”. Todos aprendiam a ler, cada qual a seu modo e no seu ritmo, explorando diferentes estilos de inteligência e diversas metodologias. Á chegada à Ponte, contando cinco aninhos de vida, qualquer criança já sabia ler. Lia em português: Coca Cola. Em inglês: Mc Donalds. E até em japonês: Toyota. Mas, na escola da aula, todo esse repertório linguístico era desprezado. As crianças deixavam de ler “Coca Cola”, para papaguear “ca, ce, ci, co, cu, la, le, li, lo, lu”.

O “método” era igual para todos, quase sempre o “fônico”. O ritmo individual de aprendizagem era ignorado. O que prevalecia era aquele que a professora impunha. Daí que, ao cabo de alguns meses, a mestra recomendasse a ida do João e da Joana para “aulas de reforço”, porque “tinham dificuldades de aprendizagem e não conseguiam acompanhar o ritmo da turma”. Sabeis o que era o “ritmo da turma”? Nem eu!

Quase sempre, do “reforço”, o João e a Joana passavam ao “ensino de adultos” e, não raras vezes, se quedavam analfabetos. Mas, voltemos ao Rubem e à aprendizagem da cidadania:

“Havia um grupo de alunos e professoras reunido à volta de uma mesa. “Estão a preparar a assembleia de hoje. Temos uma assembleia que se reúne semanalmente para tratar dos problemas da escola e para sugerir soluções”. O normal é que os olhos vejam mais as coisas ruins e que a boca tenha mais prazer em falar sobre elas. Mas lá, na Escola da Ponte, as crianças são convidadas a ver o bom, o bonito, o generoso, e a falar sobre eles. Ando um pouco mais e encontro uma menina com síndrome de Down trabalhando com outras, numa mesinha. Ela trabalha de forma concentrada. Sua presença é uma presença igual à de todas as demais crianças, ela aprende que ela tem um lugar importante na vida.

No Brasil, colaborei com a Fundação Síndrome de Down, instituição a que o Rubem estava ligado por fortes laços de afetividade. Partilhei a inclusão da Ponte dos anos oitenta. Acolhíamos o que outras escolas rejeitavam.

Quando acolhemos o André, jovem com trissomia 21, perguntei-lhe o que ele queira ser. Não “quando fosse grande”, porque perguntar isso a uma criança era xingá-la (criança é! – não vai ser). Respondeu:

“Posso dizer o que eu quero ser?”

Isso acontecia sempre que, no chão das escolas, eu ensaiava perguntas iniciadoras de projetos, porque, a educação familiar, social e escolar desse tempo proibia a pergunta, matava a curiosidade.

“Quero ser goleiro” – disse o André.

O projeto de vida de um goleiro recomeçou. E, em 2018, quando Portugal ganhou o campeonato europeu de futebol de salão, o goleiro da seleção nacional era… o André.

Por: José Pacheco
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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXIX)

Valinhos, 15 de setembro de 2040

Rubem era um homem que gostava de ipês. Se ainda estivesse entre nós, acenderíamos, hoje, cento e sete velas, para que ele se “desfizesse dos anos”.

Há quarenta anos, o meu amigo foi até à Ponte. E a “Escola com que Sempre Sonhei”, dava conta de uma prazerosa surpresa:

“Era uma sala enorme, sem divisões, cheia de mesinhas baixas, próprias para as crianças. As crianças trabalhavam nos seus projetos, cada uma de uma forma. Moviam-se algumas pela sala, na maior ordem, tranquilamente. Ninguém falava em voz alta. Nem isso se ouvia. Notei, entre as crianças, algumas com síndrome de Down, que também trabalhavam. As professoras estavam com as crianças, em algumas mesas, e se moviam quando necessário. Nenhum pedido de silêncio. Nenhum pedido de atenção. Não era necessário”.

A surpresa do Rubem, ao deparar com um contexto de educação cidadã, foi idêntica a uma desagradável surpresa que tive, quando, no Conselho Nacional de Educação, fui incumbido de elaborar um “Parecer” sobre uma “Proposta de Lei”.

Tratava-se de uma tentativa de reorganização curricular. O ministério propunha a introdução de uma disciplina de “educação para a cidadania”. Se a memória não me falha, creio que a “cidadania” seria ensinada em duas aulas semanais. Como se a educação cidadã não pudesse acontecer na aprendizagem da matemática, da música, ou das ciências naturais! Como se pudesse acontecer em duas horas de aula e não nas vinte e quatro horas de cada dia. Como se, numa sala de aula, se pudesse alcançar cidadania plena.

A aula, hoje felizmente erradicada, era um instrumento de manipulação, de controle. A escola da aula reproduzia um modelo de sociedade pautado numa cidadania heteronímica. Quando o professor planejava uma aula, igual para todos, impedia o aluno de aprender a planejar-se, a saber gerir o tempo, os espaços, a sua vida. Apesar de inscrita no projeto das escolas – que a maioria dos professores nunca leu! – a autonomia era cerceada pelo instrucionismo.

O Rubem deparou com situações de cidadania plena. Na Ponte, não se educava para a cidadania, educávamo-nos no exercício de cidadania, numa liberdade responsável, onde cada aprendiz de liberdade era individualmente responsável pelos atos do seu coletivo.

Rubem narra episódios, que ilustram o reconhecimento do outro:

“Encontrei quadros de avisos: “Tenho necessidade de ajuda em…”. Em outro, a frase: ” Posso ajudar”. Qualquer criança com dificuldades em qualquer assunto coloca ali o assunto e o seu nome. Outro colega, vendo o pedido, vai ajudá-la. Assim, vai-se se formando uma rede de relações de ajuda.

Numa mesa, uma menina escrevia e consultava o dicionário. Agachei-me para conversar com ela.

Você está procurando no dicionário uma palavra que você não sabe?

Não, eu sei o sentido da palavra. Mas estou a escrever um texto e usei uma palavra que, penso, eles não conhecem. Como eles ainda não sabem a ordem alfabética e não podem consultar o dicionário, estou a escrever um pequeno dicionário ao pé da página do meu texto para que eles o compreendam.

Na Escola da Ponte, a ética perpassava silenciosamente, sem explicações, as relações, naquela sala imensa. Mais do que aprender saberes, as crianças estão a aprender valores”.

A aprendizagem é empreendimento comunitário, expressão de solidariedade. O Rubem viu que crianças aprendentes ajudavam outras crianças a aprender. Identificou mais um motivo de a Ponte ter extinguido a ensinagem em sala de aula. Pois, exatamente no dia 15 de setembro, mas de 2020, muitas salas de aula foram extintas. Disso vos falarei mais adiante.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXVIII)

Brasilândia de Minas, 14 de setembro de 2040

Nas cartinhas que para vós escrevi, no início do século, contei uma estória muito antiga, passada nas praias de Madagáscar, onde vivia um pássaro meigo de nome Dodô.

Era uma ave estranha pois, contrariamente a outras espécies, não temia a proximidade dos homens. E, por não os temer, esta espécie foi extinta. Homens ignorantes e cruéis – que também os havia nesse tempo – divertiram-se a persegui-los e matá-los.

Um livro que nos fala das aventuras de uma Alice descreve o paradoxo do pássaro Dodô. Depois do dilúvio causado pelas suas próprias lágrimas, Alice chega a uma praia onde encontra vários animais, todos eles encharcados e com frio.

O pássaro Dodô sugere que façam uma corrida para se aquecerem. Todos começam a correr, cada qual para seu lado, cada qual escolhendo o seu próprio percurso, era fácil ver que todos os percursos eram diferentes.

No final da corrida, todos estavam quentinhos e a salvo. Perguntaram ao pássaro quem teria sido o vencedor. Como cada um correu como e por onde quis, o pássaro Dodô declarou que todos tinham sido vencedores das suas próprias corridas.

Há vinte anos, atento à extinção de espécies e à degradação ambiental, o Papa Francisco asseverou ser necessária uma educação que respeitasse a diversidade e a inclusão:

“É necessário acelerar esse movimento inclusivo da educação, para combater a cultura do descarte, criada pela rejeição da fraternidade como elemento constitutivo da humanidade.

A educação é uma realidade dinâmica. Trata-se de um tipo de movimento orientado ao desenvolvimento pleno da pessoa em sua dimensão individual e social, uma educação que coloca a pessoa no centro de sua realidade e da Casa Comum em que é chamada a viver.

O movimento educativo construtor de paz é uma força que deve ser alimentada contra a “egolatria” que cria a falta de paz, fraturas entre as gerações, povos, culturas, populações ricas e pobres, homens e mulheres, economia e ética, humanidade e ambiente”.

A “costelinha ambientalista” do Francisco o levou à conclusão de que “um novo pacto educacional deveria ser revolucionário (sic)”:

“É preciso coragem, a coragem de investir as melhores energias, a coragem de formar pessoas disponíveis para se colocarem a serviço da comunidade”.

Retomo metáforas das cartinhas que para vós escrevi no início do século:

As gaivotas inventaram outros modos de viver e de voar. Contrariavam os porquenãos, pássaros com tendência para beber silêncios no degredo dos ninhos. As negrelas, escondidas nas árvores de troncos putrefatos, haviam deixado atrás do si um rasto de destruição. Aves de mau agoiro ensaiavam papagaios, que são, como se sabe, aves que repetem disparates sem cuidarem de saber dos efeitos, ignorando que o pecado está em não querer saber”.

Em 2014, um Grupo de Trabalho coordenado pela minha amiga Helena tinha dado visibilidade a 178 projetos considerados potencialmente inovadores. Decorrida meia dúzia de anos, poucos restavam em atividade. A maioria fora desvirtuada, por efeito de sinistras ações de “porquenãos” e “negrelas”.

Em setembro de 2020, quando pensavam terem extinguido o espírito fundador desses projetos, eles renasceram como Fênix ressurgindo das cinzas. Reagindo à insanidade do “regresso às aulas”, uma rede de comunidades emergiu do pântano em que a educação se encontrava. Pais e professores conscientes de perigos de precoces aglomerações e dos perniciosos efeitos das aulas, não permitiram que os jovens fossem precipitadamente “aglomerados” dentro de prédios a que chamavam “escolas”.

 

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXVII)

Campo Azul, 13 de setembro de 2040

Netos queridos, espero não vos maçar, se insistir no reforço da observância do pensamento de Anísio Teixeira para a educação. Esse mestre insigne afirmava ser dispensável o “transporte escolar” que, nas primeiras décadas deste século foi sacrifício para as crianças e fonte de desperdício. Muitos milhões de reais eram desperdiçados, para deslocar alunos do seu lugar de origem para dentro de prédios a que chamavam “escola”. Anísio aconselhava a “fazer escolas nas proximidades das áreas residenciais, para que as crianças não precisassem andar muito para alcançá-las e para que os pais não ficassem preocupados com o trânsito de veículos (pois não teria tráfego de veículos entre o caminho da residência e da escola), obedecendo a uma distribuição equitativa e equidistante.

Esses e outros anseios se materializam na proposta (teoricamente) assumida pela secretaria, no enunciado de princípios, como o da Integralidade:

“Propõe-se que cada Escola de Educação Integral, ao elaborar seu projeto político-pedagógico, repense a formação dos estudantes de forma plena, crítica e cidadã, reorganizando os tempos escolares e inserindo, por meio de práticas fundamentadas pela pedagogia histórico-crítica, espaços e tempos de aprendizagens, com vistas a garantir o princípio da integralidade”.

Ousei questionar: cadê as práticas fundadas na “pedagogia histórico-crítica”? Não as havia.

Outro princípio era (teoricamente) enunciado, o da Transversalidade:

“A ampliação do tempo de permanência do aluno na escola deve garantir uma Educação Integral, que pressupõe a aceitação de muitas formas de ensinar e aprender, considerando os diversos conhecimentos que os estudantes trazem de fora da escola. A transversalidade só faz sentido dentro de uma concepção interdisciplinar de conhecimento, vinculando a aprendizagem aos interesses e aos problemas reais dos estudantes e da comunidade”.

Mas, cadê as “muitas formas de ensinar e aprender”, se única forma de ensinar imposta pela secretaria era a aula?

Vejamos outro princípio, o da Gestão Democrática:

“As escolas que buscam a qualidade da educação pública devem investir no diálogo com a comunidade. Na Educação Integral é necessária a transformação da escola num espaço comunitário, legitimando-se os saberes comunitários como sendo do mundo e da vida. Assim, o Projeto Político-Pedagógico implica pensar a escola como um polo de indução de intensas trocas culturais e de afirmação de identidades sociais dos diferentes grupos presentes, com abertura para receber e incorporar saberes próprios da comunidade, resgatando tradições e culturas populares”.

Mas, cadê a “comunidade”, o “diálogo com a comunidade”, a “transformação da escola num espaço comunitário”, se os pais não podiam passar da portaria?

Completando a “análise de conteúdo”, vejamos o que o documento nos dizia sobre Territorialidade:

“Significa desenvolver a educação para além dos muros escolares, entendendo a cidade como um rico laboratório de aprendizagem. Não serão os prédios públicos ou privados que garantirão, de fato, a realização deste Projeto. Ele pode ocorrer em praças, clubes, cinemas, comércio local, teatro, em horários organizados conforme os objetivos de aprendizagem”.

Uma última pergunta:

Se assim rezava o documento basilar da política educacional da secretaria, por que razão a secretaria remetia a “aprendizagem” e a “educação” para dentro das quatro paredes de uma sala de aula?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXVI)

Alvorada do Norte, 12 de setembro de 2040

Quando tentava colocar alguma ordem no caos dos meus velhos arquivos de papel, dei com um documento que passava por ser orientador de política educacional de uma secretaria de educação brasileira das primeiras décadas deste século. Dou-vos a conhecer parte do seu conteúdo, pois foi uma referência para aqueles educadores que, há vinte anos, inauguraram uma nova era educacional.

Era um belo exemplar de proposta escolanovista e ia muito além daquilo que herdeiros de Montessori ou de Steiner praticavam. Nesse tempo, as escolas permaneciam ancoradas em práticas em tudo contrárias ao teor do documento.

Os herdeiros de Freinet e de Dewey recriavam uma suposta aprendizagem centrada no aluno, “dando aula”, centrada no solitário professor. Os seguidores de Piaget e Vygotsky consumavam a psicologização da escola misturada com o sarro do paradigma instrucionista.

Em contraponto, o documento já apontava para a necessidade de a cidade se constituir em espaço educador, que possibilitasse o encontro dos sujeitos históricos, transformando os prédios das escolas em ágoras de aprendizagem mútua, espaços de novas oportunidades educacionais. Afirmava que a formação dos indivíduos não se restringia ao espaço físico escolar. Era uma proposta integrada na vida comunitária, promotora de uma efetiva educação pública, o assegurar de um direito subjetivo contido na Constituição.

Em consonância com os ideais de Anísio, Lauro criticava a “pedagogia predial”, que entendia a educação integral limitada ao aumento do tempo de permanência dentro de um prédio chamado escola. Integral seria a educação que cumprisse a função social assumida pela secretaria – “garantir educação pública de qualidade para todos os cidadãos” – o que não acontecia, dada a contradição existente entre teoria e prática.

Em 2020, as “aprendizagens significativas e emancipatórias” apenas existiam no papel. A “integração entre Escola e Comunidade na perspectiva da gestão democrática” era uma miragem. A criação de uma “Cidade Educadora” e a reorientação dos projetos político-pedagógicos segundo os eixos contidos no documento de política educacional estavam muito longe de serem operacionalizados. Nas instituições de formação inicial e continuada, a única modalidade de formação era o velho curso, com essa ou com uma “híbrida” designação. E a secretaria obrigava os professores a exportar aula online.

A maioria dos alunos não possuía computador, ou não dispunha de acesso à Internet, pelo que eram abandonados à sua sorte. A criminosa insistência nas práticas instrucionistas era uma das causas de abandono intelectual dos jovens:

“Tia, eu só tenho um celular. É o da minha mãe. Só à noite, quando ela volta do trabalho, é que posso usá-lo. E somos cinco irmãos. E o crédito acaba…”

Em contradição com a sua proposta educacional, a secretaria mantinha as escolas cativas de práticas educacionais do século XIX. Conscientes da “obesidade da palavra” e da “anorexia da prática”, educadores rejeitaram o ensino à distância, praticando aprendizagem numa proximidade remota. Em processos formativos, que os consideravam, não como objetos de instrução, mas como sujeitos de aprendizagem, operaram a transição do paradigma da instrução para uma prática fundada no paradigma da aprendizagem.

Quando voltaram ao prédio da escola, integraram contribuições do paradigma da comunicação, e a aprendizagem passou a acontecer em “círculos de vizinhança proximal e remota”. Havia chegado o século XXI da Educação.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXV)

Fazenda Nova, 11 de setembro de 2040

Queridos netos, neste mesmo dia de setembro, mas há trinta e nove anos, pássaros metálicos derrubaram torres altaneiras e semearam a morte nas terras do norte. Nas terras do Tio Sam, de onde, num outro onze de setembro, partiram mensageiros da morte, para semear sofrimento no sopé dos Andes.

Disso vos volto a falar porque, nos dias que sucederam ao vosso nascimento, o reino dos pássaros vivia ensombrado pela compreensão de uma evidência: as sociedades que dispunham das melhores escolas eram as mesmas sociedades que produziam exércitos ocupantes e seres egoístas que, em nome do seu conforto, envenenavam os céus de outros pássaros com gases letais. Nesse tempo, também através da escola se perpetuavam insanos ciclos de violência e morte.

Nas cartinhas, que vos enviei no início deste século, vos contei a estória de uma escola, onde a solidariedade não era palavra vã:

No primeiro ano do vigésimo século da era dos homens (no tempo de um discreto anunciar da era dos pássaros), uma andorinha acreditava que o vigésimo século do tempo dos homens seria chamado “o século da criança”. Que a escola faria dos pássaros e dos homens seres mais sábios e mais felizes. Porém, durante todo esse século, a Escola apenas reproduziria velhos rituais sem sentido. A escola dos homens não produzia humanidade, produzia muitos bonsais humanos. E, no princípio do século em que nascestes, a escola já nem sequer conseguia ensinar.

As gaivotas protagonistas dessa estória, por serem pássaros “aprendizes até ao último bater do coração” acharam um modo de não perecer. Imitaram os gansos, nas suas viagens para o sul:

“Quando a proximidade do Verão impelia as andorinhas a partir, elas voavam sempre em bando, desenhando no céu a forma de um vê. Quando uma andorinha batia asas, produzia uma corrente de ar ascendente que ajudava a progressão das companheiras que voavam atrás de si. Se, por efeito de um golpe de vento ou tentação de lonjura, alguma andorinha se afastava do bando, logo regressava ao seu amplexo protetor. E, quando a fadiga assaltava a andorinha que ocupava o vértice da cunha voadora, logo outra andorinha corria a ocupar o seu lugar. Poder-se-ia pensar que a andorinha que voava à frente de todas as outras cortava o vento sem ajuda de ninguém… puro engano: se perante os seus olhos se estendia o sem fim do espaço, atrás de si, todo um bando a impelia para a frente e lhe conferia a escolha do rumo.  A ciência dos homens apurou que as andorinhas que voavam no aconchego do bando emitiam sons que animavam as que, por contingência, ocupassem os lugares da frente.

A andorinha é criatura de hábitos gregários, que não sobrevive à solidão e que, quando aprisionada, resiste secretamente em silêncios que falam de voos por dentro. Mas a desta estória manifestava uma alegria de existir maior que a saudade que sentia de África. Não estava sozinha, mas amparada. No decurso das viagens, sempre que adoecia ou ficava ferida, logo as duas mais próximas abandonavam o bando, para a acompanhar e proteger, somente regressando ao aconchego de um outro bando em migração, quando a andorinha que protegiam recuperasse a capacidade de voar, ou viesse a morrer.

Nesse distante mês de setembro dos primeiros anos deste século, em terras do norte europeu, os primeiros frios foram temperados com a chegada de pássaros de todas as cores e origens, que, seguindo o exemplo das andorinhas solidárias, acorriam em auxílio da escola das aves. Já não era apenas uma escola que urgia perseverar, mas todas as escolas onde, sob múltiplas formas esboçado, o futuro despontava.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXIV)

Indiara, 10 de setembro de 2040

O pai do Abel era agnóstico. E, naquele bairro, o seu filho era a única criança não batizada. Chegado o tempo de ir à escola, todo mundo ficou sabendo. Não tardou que o Abel acordasse, a meio da noite, chorando, vendo “o diabo” em pesadelos. Um amiguinho lhe dissera que, como ele não era batizado, quando morresse, iria para o inferno, onde estava o dito… diabo.

Na escola da primeira infância, o Abel viu respeitado o seu peculiar estatuto. Era uma escola que acolhia a diversidade (também) religiosa, confessional. Um pai pediu transferência do seu filho para essa escola, alegando que, numa outra, a criança sofrera humilhação por ser uma “criança adventista. Perguntei-lhe se conhecia crianças “católicas”, “socialistas” ou “flamenguistas”. E se não haveria apenas crianças… sem rótulos. Conversamos, de pai para pai, e aquele pastor evangélico entendeu as palavras de Khalil Gibran:

“Vossos filhos não são vossos filhos. São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma. Vêm através de vós, mas não de vós. E embora vivam convosco, não vos pertencem. Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos, porque eles têm seus próprios pensamentos. Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas; pois suas almas moram na mansão do amanhã,
que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho. Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós, porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados”.

Desde há setenta anos, trabalho com educadores de todos os credos, crente de que, em matéria religiosa, nenhuma crença ou descrença vale mais do que outra. Nada me move contra qualquer credo, mas considero ser necessário assegurar o respeito pela criança. E pela diferença! Não compete à escola ensinar uma religião, nem ensinar o ateísmo. Quando o fundamentalismo invade a escola, a abertura estreita de uma “burca mental” somente permite ver o que é permitido num horizonte encurtado pelo fanatismo.

No tempo da ditadura, Portugal era uma quase teocracia. Salazar assinara uma Concordata com a Santa Sé e determinava que os portugueses só poderiam ser católicos. Quando, já em democracia, se discutia o uso do crucifixo nas escolas, uma professora escreveu num blog:

As pessoas que são contra o uso do crucifixo, que se mudem para outra terra”.

Quando o seu filho mudou de escola, o pai do Abel foi obrigado a requerer dispensa das aulas de “religião e moral católica”. No primeiro dia de aulas, o padre, professor dessa disciplina, apesar de ter conhecimento de que o pedido fora deferido, obrigou o Abel a entrar na sala de aula. Mandou-o rezar uma ave-maria. O Abel não sabia o que isso era. Virou alvo do deboche, de escárnio geral. A turma inteira se aliou ao padre-professor, para humilhar, fazer chorar o Abel.

O domínio do secular não deveria ficar subordinado a “verdades reveladas”. Muito menos deveria ficar nas mãos de ensinantes, que se consideravam proprietários da consciência e se assumiam como reserva moral, exercendo sobre os seus alunos sutis formas de condicionamento espiritual.

Num tempo marcado pelo fanatismo, a imposição de um ensino confessional pressupunha uma visão redutora do ser humano e de mundo e valores eram transmitidos contaminados pelo sectarismo. Numa escola brasileira, assisti a uma cena degradante: uma professora “católica” acusava de todos os males os evangélicos e uma professora “evangélica” replicava no mesmo tom.

E eu rogava a Deus, numa prece:

Deus misericordioso, tem piedade das crianças que caem nas mãos desta gente!”

 

 

Por: José Pacheco

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