Mocambinho, 10 de março de 2041

Perdi a conta de quantas vezes repeti a frase “escolas são pessoas e as pessoas são os seus valores”. No dia em que pedi à Maria José e à Maria Luísa para colocarem num papel os dez valores que comandavam as suas vidas, a matriz axiológica do projeto da Ponte se apresentou – autonomia, responsabilidade e solidariedade eram valores que constavam dos três papeis. Uma sólida amizade cresceu, ao longo de mais de vinte anos. Até ao dia em que um dos elementos da equipe passou a criticar sem propor soluções, a fazer acusações infundadas, reclamando respeito, quando era ela quem ofendia, desrespeitava.

Quando lhe chamamos a atenção para o desgaste que a sua atitude provocava, passou a denegrir a imagem do coordenador do projeto, em conversas paralelas. A lealdade de alguns professores me alertou para a “conspiração”. Ciente da gravidade da situação e dos riscos que o projeto corria, apelei a uma mudança de atitude.

No decurso de uma reunião, a “conspiradora” reagiu com chantagem emocional:

“Estás a pôr em causa a nossa amizade?”

Respondi:

“Não me faças escolher entre a nossa amizade e a defesa as crianças.”

Escolhi a defesa do projeto.

A história da Ponte foi feita de resiliência. Sobreviveu, mas a erosão de devassas provindas de dentro da equipe de projeto deixou dolorosas marcas.

Sou um ser humano feito de escassas virtudes e de muitos defeitos. Sei que não existe certo ou errado, ou verdades absolutas. Por essa razão, em tempos da pós-verdade, reagi ao espezinhamento de pessoas e projetos. O farisaísmo imperava. Numa sutil inversão de valores, se acusava outrem de negar valores. Com falas “mansas” se preparava assassinatos de caráter. No descabido uso da expressão “não violência” se usou da maior violência verbal que se possa imaginar. Assisti à teorização da sociocracia feita por quem agia como autocrata. E, entre quezílias privadas e jogos de poder, pessoas idôneas foram caluniadas, a reputação de pessoas íntegras foi lesada.

Eu já estava cansado de tanto autógrafo rabiscar. Manifestei ao meu amigo Rubem a vontade de parar e até de ir embora. O Rubem se pronunciou contrário à minha intenção:

“Não vá embora. As pessoas precisam tocar no santinho.”

Quis o destino que, involuntariamente, eu me tornasse “figura pública”. Não um símbolo, porque nunca permiti que a Ponte fosse mitificada, mas uma espécie de “ícone” – pesada responsabilidade a deste ser humano tão frágil e limitado!

Exposto a adulações, veementemente as rejeitava. Quando me tentavam envolver em discussões sobre comportamento moral, eu dava réplica, me indignava e exaltava, para preservar projetos. Mas, se sofria ataques pessoais, eu reagia como o junco.

Esopo foi um escritor grego que, nas suas fábulas ou parábolas, reproduzia o drama existencial do homem, substituindo os personagens humanos por animais, objetos, ou coisas do reino vegetal e mineral. Sua intenção era mostrar como os seres humanos podiam agir, para o bem ou para mal. Completo esta cartinha com o resumo da fábula do Carvalho e do Junco.

Um carvalho foi arrancado do chão pela força de forte ventania. Rio abaixo, arrastado pela correnteza, se cruzou com alguns juncos. Em tom de lamento, exclamou: “Gostaria de ser como vocês, que, de tão esguios e frágeis, não são afetados por fortes ventos.” 

Os juncos responderam: “Você lutou e competiu com o vento, por isso mesmo foi destruído. Nós ao contrário, nos curvamos, mesmo diante do mais leve sopro da brisa, e por esta razão permanecemos inteiros e a salvo.”

Resta dizer-vos que só fui carvalho quando estritamente necessário.

 

Por: José Pacheco