Todos os Santos, 11 de março de 2041

Cheguei ao auditório onde iria fazer uma “palestra” ainda a tempo de escutar a palestrante que me antecedeu. A Emília falava de uma visita que fizera à Escola da Ponte, creio que em finais da década de oitenta, e de pormenores que a surpreenderam:

“Quando cheguei, achei estranho que não houvesse portaria. Tudo aberto, tudo acessível. Procurei o “gabinete do diretor” e não encontrei. Perguntei a uma criança onde estaria o diretor. Ela assim respondeu: 

“Onde deveria estar, minha senhora? O professor Zé está com as crianças! Vá por ali, que já o encontra”.

Após a minha vinda para o Brasil, visitava a Ponte, observando como a escola evoluía na minha ausência. As visitas de início do século me deixavam confortável. Dispondo de um contrato de autonomia – o primeiro contrato celebrado entre uma escola pública e um estado – a Ponte escolhia os seus professores e não havia “gabinete do diretor”. Porém, os últimos tempos da minha participação no projeto foram conturbados. Para aqueles que por lá ficaram, tornou-se difícil a gestão de mais uma “crise”, agudizada pela pérfida ação do ministério.

Eu conversava com alunos, que que tinham interiorizado o projeto. Eles se abriam comigo, manifestando senso crítico:

“Parece-nos que os professores novos andam muito desorientados. Precisam de alguém que os ajude a perceber como se trabalha na nossa escola.” 

“Porque dizeis isso?” – quis saber.

“Por exemplo… Ainda ontem houve problemas com uma professora. No debate da tarde, o Rui deu a sua opinião sobre um assunto, mas uma professora nova disse-lhe para estar calado”. 

“E então?” – insisti.

“E então, Professor Zé, o Rui respondeu assim: Eu fico calado, minha senhora. Mas o que eu disse tem de ficar na pauta do debate. Nesta escola, nós sempre fomos ensinados a dizer o que pensamos.” 

A Ponte estava, mais uma vez, a passar por tempos difíceis. Mas a inexperiência dos novos professores não era o principal fator de alguns “desvios de rota”. Ao longo de mais de meio século, houve quem “invadisse” a Ponte com propósitos mesquinhos. E, quando os invasores primavam pela inteligência, discretamente conseguiam degradar um delicado sistema de relações. Quando se afastavam, remoíam ressentimento e degradavam a imagem social da escola tanto quanto era capaz a maldade humana.

Os professores – como todos os seres humanos – são uma mistura de belo e de horrível. Um dos invasores provocou danos irreversíveis. Referiu-se a colegas, num tom que refletia um ridículo complexo de superioridade:

“Com professores como os que temos, não é possível fazer um projeto.” 

Respondi:

“Foram professores como os que desprezas que fizeram da Ponte o que, hoje, ela é e representa. Muito antes de teres chegado com as tuas brilhantes teorias e contraditórias práticas. Nós não temos os professores que idealizamos. Temos professores concretos, tão limitados e capazes como tu, como eu. Aceitemo-los como são. Dêmos-lhes meios e o tempo de que precisam.” 

Esse invasor não partilhava informação útil. Manipulava-a, moldava a realidade do modo que lhe convinha. Apenas sensível aos seus argumentos, explorava a fragilidade dos professores mais novos, tentando destruir a minha reputação e o projeto.

Em Portugal, como no Brasil, precisei – precisamos, porque todo o projeto humano é coletivo – de curar feridas e ajudar a reconstruir projetos. Porque deveremos cuidar do que se trabalha e trabalhar o que se cuida. O cuidar dos outros, ajudando-os a refazer-se, pressupõe uma responsabilidade voluntária e um dom que os invasores não possuíam: o respeito.

 

Por: José Pacheco