Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLIV)

Cabrália, 27 de fevereiro de 2041

No decurso da pandemia, muitas famílias se aperceberam da falência de um velho modelo educacional. Eis o que uma mãe escreveu num e-mail:

“Professor, boa madrugada! Perdoe, mas acabei de ler sua postagem no Facebook. Sou professora de Química. Sempre me incomodei com o nosso falido sistema. Mas, já há algum tempo, estou me sentindo sufocada. Ando sem motivação para continuar nesta jornada tão bela e honrosa que é este nosso ofício. Me vejo só nesta imensa multidão, que não enxerga e nem faz questão de enxergar o declínio da nossa prática e o quanto isto é desastroso para nós. Perdoe o desabafo quase de um paciente para seu terapeuta, mas é a mais triste verdade.

Estava à procura de respostas para meus anseios e encontrei alguns vídeos seus que, por alguns minutos, acenderam em mim a chama do amor a esta árdua profissão. Sem mais delongas, gostaria que me ajudasse. Eu me tornei professora por vocação, por amor ao ser humano, por acreditar que somente um povo munido de conhecimento pode mudar o rumo de sua nação. Gostaria de conhecer o projeto Âncora Como posso? De que forma eu poderia começar algo, aqui, também? Sei que pareço uma sonhadora, mas não seria real se assim não fosse. Desculpe me alongar tanto, mas (…)”.

Esta professora não sabia que a Escola do Projeto Âncora já havia sido destruída. O e-mail continuava no mesmo tom e culminava com uma informação semelhante àquela que esteve na origem do desaparecimento do Projeto Âncora: o não-cumprimento do artigo 15º da LDBEN.   

Hoje, não vos maçarei com considerações de natureza, mais ou menos, teórica. Mostrar-vos-ei que, para além de perversa, a Base Nacional Curricular Comum, à semelhança da regulamentação instrucionista, era ilegal. Hoje e nas próximas cartinhas, falar-vos-ei de leis e do seu incumprimento.

No decurso dos debates, foi dito que o conteúdo da base era mera “referência” e que as escolas, no exercício da sua autonomia, dela fariam adaptações. Era bem verdade que o termo “autonomia” era referido 57 vezes na proposta de base curricular. Porém, omitia-se que, ao cabo de vinte anos, o artigo 15º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) continuava sem efeitos práticos, situação agravada pelo fato de a administração educacional não ter cumprido a meta 19 no prazo estabelecido pelo Plano Nacional de Educação (PNE). Isso mesmo: o poder público não cumpria leis que promulgava.

Gestores escolares continuavam a assumir cargos por indicação de políticos e o “dever de obediência hierárquica” negava às escolas o direito à autonomia pedagógica, administrativa e financeira. Só quem não conhecesse a realidade do chão das escolas poderia crer que nelas fossem cumpridos os artigos 12º e 13º da LDBEN. O modelo instrucionista, de que a BNCC era exemplo, imposto às escolas pela administração educacional, impedia o cumprimento de muitos outros artigos da Constituição Federal de 1988 e da LDBEN, nomeadamente, os artigos 2º, 3º, 4º, 5º, 14º, 15º, 23º, 32º.

Como “o exemplo vinha de cima”, as escolas também não cumpriam os seus projetos políticos-pedagógicos, porque esses documentos não eram políticos, nem pedagógicos. Na sua elaboração, a polis não era escutada e, em muitos casos, o PP-P era um “modelo único superiormente concebido” e imposto às escolas. A maioria dos professores não o liam, como jamais leriam a BNCC, dado que o currículo efetivamente “transmitido” era aquele que constava dos manuais didáticos. O escolanovismo e os construtivismos mal assimilados contidos nos pp-p eram contrariados pelo faz-de-conta da prática.

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLIII)

Santo André, 26 de fevereiro de 2041

Queridos netos, durante a pandemia, não havia um dia sequer em que não recebesse pedidos de ajuda:

“Venho com o intuito de encontrar uma luz. Explico: Estarei com o que restou da equipe, após o “tsunami” que assolou o nosso projeto. Restou a supervisora e a cozinheira. O grupo sente-se muito sem rumo, especialmente a supervisora, que passou a ter contato mais direto com as crianças, no dia a dia”. 

As escolas permaneciam cativas de uma regulamentação instrucionista deturpadora do espírito da lei. Dizia-se que este belo país produzira mais de um milhão de leis e que a única lei que se cumpria estritamente era a lei da gravidade. Maldosa era essa afirmação, até mesmo difamante, pois se a praga do negacionismo científico defendia o terraplanismo, também poderia negar que houvesse força da gravidade.

Nesta cartinha, vos falarei de uma lei jamais cumprida. Fora aprovada no final da segunda década deste século. Imensos recursos foram investidos na sua implementação, mas o seu caráter instrucionista transformou-a em nado-morto. Essa lei era necessária e indispensável, mas não concretizou a intenção de combater a desigualdade, nem alterou significativamente os péssimos indicadores de qualidade da educação.

A “Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de 2017 acabaria sendo substituída por uma nova base curricular concebida na década de trinta. Esta manteve idênticos objetivos, mas baniu a tralha instrucionista da base anterior, substituindo o “transbordamento curricular” por um currículo de sabres essenciais. Glocalmente, cada comunidade lhe acrescentou saberes populares e componentes do currículo da subjetividade.

Nos idos de vinte, participei de duas audiências públicas, que tinham como lema “BNCC: desafios para a implementação e combate às desigualdades educacionais”. A primeira, no auditório do CNE; a segunda, no Senado Federal. Estiveram presentes representantes do Ministério da Educação, do “Movimento pela Base” e “especialistas”.

Animado da maior boa-vontade e a pedido de um amigo, analisei as várias versões da proposta de BNCC, tendo elaborado um documento contendo construtivas críticas e sugestões. Quando soube da realização da audiência pública em Brasília, fui dos primeiros a inscrever-se através da Internet e o primeiro inscrito presencial, pois fui o primeiro a chegar ao auditório do Conselho Nacional de Educação. Porém, a manhã terminaria sem que eu fosse chamado para expor o meu parecer. Apenas “puxa-sacos” de serviço e membros de um movimento chamado “Escola sem Partido” intervieram, para tecer loas à base, proferir besteiras, ou para formular absurdas exigências.

Desta vez, não vos contarei como agi no intervalo desse encontro. Mas vos asseguro que a “metodologia” por mim utilizada resultou plenamente, pois fui dos primeiros convidados a pronunciar-se, naquela tarde. Fi-lo, fundamentando cientificamente críticas e sugestões, reafirmando a necessidade de o Brasil dispor de uma base curricular que “implementasse o combate às desigualdades educacionais”. Demonstrei que, se a introdução da BNCC contribuía para tal desiderato, a base propriamente dita, sendo instrucionista, poderia constituir-se em obstáculo à mudança.

No final da sessão, fiz entrega de um documento contendo considerações, que a leitura da proposta de base curricular me suscitara. Quero crer que as não tenham lido, nem aquelas que associações profissionais e especialistas em currículo produziram.

Amanhã, vos falarei das contradições contidas na base curricular.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLII)

Arraial d’Ajuda, 25 de fevereiro de 2041

Em Portugal, conheci um ministro da educação de quem me fiz amigo. Em comum tínhamos o mesmo dia de aniversário e a paixão de educar. Mais tarde, já no Brasil, colaborei com outro ministro, que dizia:

Na educação como na cultura, não há limite: sempre se pode descobrir ou inventar maisCada vez mais, a educação deverá se culturalizar, deixando de seguir currículos rígidos”.

Queria acreditar que tal declaração se constituísse em bom augúrio e que o seu mandato por ela se pautasse. Mas…

Eu detestava os “mas”, sobretudo quando abriam uma Caixa de Pandora de onde provinham desgraças. Se um ministro fazia publicar decretos com propostas de mudança, logo o monstro burocrático, que dava pelo nome de “ministério”, paria regulamentação, que neutralizava os potenciais efeitos dos decretos. E tudo entrava em processo de mudança… para ficar tudo como dantes.

Nos idos de vinte, em muitas escolas brasileiras, uma rede de projetos discretamente se prefigurava, esboçando novas construções sociais de aprendizagem, à semelhança de uma Finlândia, que esboçava o abandono do tradicional ensino por disciplinas. No novo modelo, que se pretendia aplicar nesse país, todos os assuntos estavam interligados. Entretanto, o Ministério da Educação francês lançava uma reforma assente em três pilares: flexibilidade, autonomia e interdisciplinaridade. Essa reforma sustentava que as escolas deveriam alterar a sua forma de ensinar, “dando mais importância aos trabalhos de projeto, aos trabalhos de grupo e proporcionando aos alunos oportunidades de procurar relacionar a sua aprendizagem com aspetos práticos do quotidiano, tornando as suas aprendizagens úteis, coerentes e significativas”. O ministério francês classificava a sua reforma como uma “refundação da escola”. Infelizmente, não foi.

Outra grata surpresa chegava da Catalunha. Os colégios jesuítas dispensavam aulas e testes, eliminavam cursos, exames e horários. Derrubavarm as paredes de suas salas de aula e criavam grandes espaços de trabalho em equipe, onde se adquiria conhecimentos através de projetos, com acesso a novas tecnologias. Um alto responsável jesuíta afirmou: “

Em vez de olhar para o diário oficial, olhamos para o rosto das crianças e ajudámo-los a desenvolver os seus projetos de vida, para descobrirem os seus talentos. Juntamente com a família e a internet, procuramos construir pessoas”.

Eram boas as notícias, embora de efémera tradução prática, pois a escola que desgraçadamente tínhamos, nos idos de vinte, era a enésima versão de uma construção social concebida entre os séculos XVIII e XIX. Desde há mais de meio século, eu assistira a tentativas de reformas e à inevitável falência das indevidamente cognominadas “inovações”, que não ousavam operar ruturas. As iniciativas ministeriais juntavam resquícios do discurso pedagógico escolanovista com a adoção de paliativos do modelo da instrução, vazios de sentido e de utilidade.

Era justa a indignação da minha amiga Tina:

“A transformação da educação depende da sua transformação. Você precisa assumir que a educação não está bem, se conscientizar de que a escola atual não tem embasamento científico. Não dá mais para ficar sentado reclamando, enquanto reproduz a velha e ineficiente educação e aponta o dedo para o sistema, as instituições governamentais, seus superiores ou os seus pares. Não continue a reproduzir a escola que engole crianças e cospe bagaços. Precisa conhecer a LDB, pois ela te dá base legal para a transformação”.

Bem pregava Frei Tomás…

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLI)

Porto Seguro, 24 de fevereiro de 2041 

Em Portugal, diretores de escola reconheciam que “a retenção não resolvia o problema do insucesso” e o Conselho Nacional de Educação recomendava o fim das reprovações. O estudo “Retenção Escolar no Ensino Básico em Portugal” concluía que os alunos que reprovavam não retiravam qualquer benefício de terem ficado retidos. Ao “repetir o ano”, os resultados eram os mesmos ou inferiores aos do ano anterior.

A Comissão Europeia criticava a “cultura da retenção”, afirmando que a “bomba” brasileira e o “chumbo” português deveriam ser substituídos por respostas ao que designavam por “dificuldades de aprendizagem”. Um especialista corroborava esse parecer, acrescentando que era o modelo de ensino que promovia o insucesso:

Estamos a preparar os alunos da mesma forma que preparávamos há cinquenta, ou cem anos, baseando o ensino exclusivamente na capacidade de reproduzir conteúdo. Ensinamos tudo a todos da mesma maneira e ao mesmo tempo, o que já não faz qualquer sentido”.

Não se reprovava porque não havia livros em casa, ou porque a mãe era analfabeta. É certo que fatores sócio econômicos e culturais influíam na “reprovação”. Mas quem deveria ser reprovada era a escola. A origem do insucesso era socioinstitucional.

No primeiro ano da pandemia, o Estado havia contraído uma enorme dívida para com os jovens. Por via do modelo educacional adotado, o Estado incorrera no crime de abandono intelectual, impunemente praticado e jamais reconhecido. Para colmatar prejuízos, o ministro da educação anunciou um programa de “tutorias” a triplicar no ano letivo seguinte. O chamado “apoio tutorial específico” era dirigido a alunos com historial de retenções, mais concretamente com duas ou mais reprovações. Seriam mobilizados “125 milhões para se proceder a um reforço muito significativo de recursos humanos nas escolas”, para garantir a recuperação de aprendizagens que ficaram por fazer no primeiro ano da pandemia.

Naquele tempo, o paliativo “recuperação” dos “alunos de menor rendimento” nada recuperava, nem disfarçava. Muitos professores serviam-se da “recuperação” para punir alunos que recusavam assistir às inúteis aulas online, ou que não cumpriam “atividades”. Antes da pandemia, a “recuperação” acontecia depois das provas de fim de um trimestre, num processo paralelo às aulas causadoras de “atraso na aprendizagem” (sic). E os professores reagiam:

“Como posso fazer recuperação de um ou dois alunos, se tenho de dar aula para outros trinta?”

Identificada a “dificuldade de ensinagem” sentida pelos professores, a “recuperação” era transferida para o contraturno. A alternativa era a “paralização das aulas, durante uma semana para recuperação”.

Uma secretaria criou uma prova padronizada, para aplicar a meio do ano letivo, “com o intuito de melhorar o desempenho dos alunos a meio do ano”, isto é: estabeleceu-se a ideia do ciclo, sem romper com o modelo seriado. Outra secretaria de educação confundia “aprovação automática” com progressão continuada e adotava “períodos de recuperação trimestral”, insistindo na obsoleta lógica das classes de “reforço”, um subproduto de uma prática de ensino obsoleta.

Na falta dos saberes essenciais para o exercício da profissão, burocratas desertores de chão de escola usavam o manual como arma de arremesso. Escutei da boca de um deles:

“Se algum dos meus alunos não acompanha o ritmo do livro didático, quero lá saber! Problema dele! Digo-lhe que procure alguém que lhe dê “explicações”. Ou, então, mando-o diretamente para a… “recuperação”.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDL)

Santa Terezinha, 23 de fevereiro de 2041

Nos idos de vinte, talvez devido à minha origem nas chamadas “ciências exatas”, dava por mim a usar metáforas da Física. Por exemplo, o conceito de inércia. Perante os trágicos efeitos que produziam, por que razão os professores não mudavam? Se era certo e sabido que, dando aula, o professor não lograva ensinar todos, se negava o direito à educação à maioria, por que continuava dando aula?

Outro conceito era o da resiliência. Por que razão alguns mudavam, apesar dos imensos obstáculos com que deparavam? Que estranha energia os animava? Se a maioria cultivava a “resistência à mudança” – conceito caro às ciências da educação – como e por que acontecia a mudança em alguns?

Em 1905, o físico Einstein criou a fórmula e=mc². Ensaiei a sua adaptação, dado que a Pedagogia adotava conceitos da Física. No meu entendimento, assim ficou: a energia (e) de alguns é resultante de uma mudança (m) operada por contágio (c) num determinado contexto (c), numa comunidade,.

A mudança acontecia decorrente do exemplo dado por educadores, com referência a uma práxis coerente com os valores dos seus projetos. Acontecia sempre que esse contágio se associava ao contexto no qual uma boa educação poderia e deveria acontecer. O lugar de aprender era todo o lugar transformado em espaço de aprender, tanto o universo físico como o virtual. Era a vizinhança fraterna, a comunidade.

Einstein afirmava que insistir no errado era sintoma de loucura. Nos idos de vinte, seguindo-lhe o exemplo e porque já estava idoso e desejava vir a ser um velho insuportável, eu transformava o dito de Einstein em perguntas consideradas incômodas.

“O que se aprende dentro de um edifício escolar, que não possa ser aprendido fora dos seus muros?”

“Quando se aprende? Nas quatro horas diárias de uma escola-motel? Duzentos dias por ano, ou 365 dias? Que sentido faz uma “idade de corte”?”

A todo o momento aprendíamos, desde que a aprendizagem fosse significativa, integradora, diversificada, ativa e socializadora. O tempo de aprender era o tempo de viver, eram as vinte e quatro horas de cada dia, nos trezentos e sessenta e cinco dias (ou 366) de cada ano.

Urgia rever os conceitos de espaço e tempo de aprendizagem, para que os “paidagogos” não mais conduzissem as crianças da comunidade para a escola, mas as libertassem da reclusão num gueto escolar e as devolvessem à vida vivida. O prédio da escola poderia constituir-se num um nodo de uma rede de aprendizagem colaborativa, talvez numa ágora da comunidade.

Enquanto se falava de desenvolvimento sustentável, de saberes, de competências, para fazer face a um mundo incerto e em mudança acelerada, os profissionais da educação reproduziam práticas fósseis. Assistíamos à perpetuação de uma gestão centralizada do sistema, impedindo que as escolas assumissem a dignidade da autonomia e se constituíssem em elementos orgânicos de comunidades de aprendizagem.

Num tempo em que se proclamava o reconhecimento das diferenças, as escolas mantinham-se cativas de um fordismo tardio, ainda que se enfeitasse a sala de aula com novas tecnologias.

Mas havia motivo para ser esperançoso. De uma escola agonizante, via surgir educadores, que aprendiam com outros educadores, mediatizados pelo mundo, sabendo que não se tratava de “levar a comunidade para a escola”, ou de fazer “visitas de estudo à comunidade”, pois ninguém visitava… a sua casa.

O negacionismo retrocedeu. Núcleos familiares se organizaram em círculos de vizinhança. Nas escolas, surgiram turmas-piloto, inaugurando um novo tempo: o tempo da educação.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXLVIII)

São Sebastião do Umbuzeiro, 22 de fevereiro de 2041

Vai para uns trinta anos, a conceituada revista Science deu a conhecer um estudo, que contrariava tendências reveladas em decisões de política educacional de então. A publicação da Associação Americana para o Avanço da Ciência parecia ser uma das revistas preferidas de ministros da educação acérrimos defensores do aumento do número de aulas dedicadas à Matemática e à Língua Materna e que apostavam no aumento da quantidade de testes, provas, exames e quejandos, como antídotos para o descalabro da educação. O negacionismo prosperava também no campo da educação.

Ao longo de 35 anos, Deborah Stipek, docente da Faculdade de Educação da Universidade de Stanford, trabalhou no referido estudo. A autora enuncia o facto de os jovens serem treinados para obter bons desempenhos em testes e afirma que é aberrante uma educação centrada em resultados mensuráveis e em rankings. Acrescenta que a preparação para exames sufoca a formação de uma personalidade madura e equilibrada.

Sublinho que este diagnóstico foi dado a conhecer pela Science, que não se trata de uma afirmação leviana. No artigo científico “Educação não é uma corrida”, Deborah sublinhava o facto de o sistema de exames produzir especialistas em provas, enquanto “prejudica vidas que poderiam ser promissoras”. Em suma: um ambiente escolar competitivo, voltado para testes e exames era prejudicial à aprendizagem. Uma pesquisa com 35 anos de duração nos avisava que não bastava efetuar mudanças pontuais e que era urgente mudar o modo como funcionavam as universidades e as escolas. Escutemos a pesquisadora:

“O sistema atual, baseado no desempenho em testes, pode prejudicar muito a formação de grandes pensadores. Essa forma de ensino promove um verdadeiro extermínio de grandes mentes. A maneira como a educação é organizada na atualidade faz com que potenciais vencedores do Prêmio Nobel sejam perdidos antes mesmo do fim da educação básica, já que o modelo de ensino massacra qualquer outro interesse que não seja cobrado nos exames. É importante desenvolver talentos. Isso sim tem um papel importante no futuro de alguém”.

Os estudos disponíveis na época diziam-nos que o problema era maior nas escolas privadas, voltadas para a aprovação no vestibular. Afirmava uma professora da Universidade de São Paulo:

“É preciso redescobrir o significado de ir à escola, de estudar. Mercado de trabalho, preconceitos e status social são questões que devem deixar de nortear as políticas educacionais. A sociedade valoriza muito mais o trabalho cooperativo, mas a escola forma alunos muito mais focados no trabalho individual. Quem disse que é preciso ser o melhor aluno, frequentar a universidade mais renomada? A maioria dos grandes pensadores, que deixaram um legado para a humanidade, seguiram caminhos muito diferentes do convencionalmente estabelecido. Fizeram o que fizeram unicamente porque gostavam daquilo e não por uma imposição social”. 

A lista era extensa: Gandhi, Edison, Picasso, Einstein…

Nos idos de vinte, lamentavemente, os equívocos ministeriais ocultavam e adiavam a compreensão e a transformação que, desde há muito tempo, o mundo da educação requeria. Até que chegou o tempo de agir e de convidar o poder público para um diálogo esclarecedor.

Nesse tempo, a educação era maltratada por sucessivos desgovernos. Mas, seria através da educação que o país progrediria. Não pela velha ordem da educação negacionista, mas por uma nova ordem, um processo político de compreensão da realidade e de transformação do mundo.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXLVII)

Santa Cruz do Capibaribe, 21 de fevereiro de 2041

Recordemos algo que qualquer manual de história ou de sociologia de educação explicará. A escola contemporânea dos idos de vinte – tal qual a conhecíamos e enquanto formação experiencial de alunos e professores – era herdeira de necessidades sociais do século XIX, ainda que as suas raízes fossem mais fundas, adentrando os séculos anteriores.

O modelo “tradicional” de escola adotara formas e procedimentos característicos das instituições mais respeitadas na época em que foi implementado – aplicou modos de organização dos espaços e métodos utilizados em casernas, mosteiros e prisões. A arquitetura escolar refletia (e reproduzia) uma visão de homem e de mundo pronta e acabada.

Eu acompanhava o cotidiano de escolas que ousaram operar rupturas com o obsoleto modelo instrucionista, escolas que se preocupavam com a formação integral dos jovens e cujos professores se assumiram responsáveis por aquilo que fizeram de si, a partir do que deles a vida (e a escola) havia feito.

Eu valorizava o que os professores sabiam fazer, as suas competências, avultando a competência de dar aula. E os professores que, no Paranoá, decidiram trabalhar em comunidade de aprendizagem, usaram a sua competência de dar aula, para acabar com a aula. Uma extraordinária equipe saída do CEF 04 foi pioneira, quando, comigo e com a Cláudia, correspondeu a um pedido da secretaria de educação. Ousaram partir de uma formação experiencial madura no ensino tradicional para novas e melhores práticas. Reelaboraram a sua cultura pessoal e profissional, para lograr obter a plena realização pessoal e social dos seus alunos.

Achadas as instalações apropriadas para instalar o projeto, logo os engenheiros da secretaria projetaram… salas de aula. Os regulamentos da secretaria assim ordenavam que se fizesse. Somente ao cabo de muitas reuniões, uma arquiteta entendeu que nas práticas do paradigma da aprendizagem não havia lugar para… salas de aula. Não se pense, porém, que as múmias pedagógicas da secretaria desistiram dos seus nefastos intentos. Decorridos alguns meses, obrigaram alguns dos professores a trabalhar em… sala de aula, contribuindo para descaracterizar quase por completo o projeto.

Entretanto, uma escola particular, que eu acompanhava, requereu a sua municipalização mantendo práticas coerentes com o seu projeto, que eu bem conhecia e admirava. Contatado por mim, um responsável pelo processo de municipalização respondeu, peremptório:

Se a escola for municipalizada terá de ser como todas as outras. Nada de projetos!”

A educação do Brasil andava ao compasso de mentalidades retrógradas. Até aos anos trinta, ainda sentiríamos os efeitos da pérfida ação de múmias pedagógicas, pois os “projetos” escapavam à compreensão de burocratas pedagogicamente míopes. Argumentando com uma regulamentação instrucionista da lei, abusavam do poder para destruir aquilo que não entendiam e que, na realidade, nenhuma lei impedia que se concretizasse.

Quando lhes pedia que me dissessem qual a lei que evocavam, não sabiam dizer qual fosse. O “não pode” era resposta. O autoritarismo, o argumento. Em muitas das minhas intervenções públicas, eu fui interpelado por professores e gestores, que afirmavam não ser possível “autorizar certos projetos, porque a LDB não permitia”. Perguntava-lhes pelo artigo da lei que não permitia “autorizar”. Não sabiam dizer qual fosse, simplesmente, porque não existia qualquer impedimento legal – existia uma mentalidade conservadora e burocrática.

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXLVI)

Campina Grande, 20 de fevereiro de 2041

Nos idos de vinte, havia quem dissesse “os tempos são outros”. Pois, os tempos eram outros, mas as práticas eram as mesmas e de recuados tempos. Eu sabia, porque também fora professor “transmissor”. Foi isso que me ensinaram desde a carteira da escola primária até à universidade. E era isso que, nos idos de vinte, se ensinava.

Durante algum tempo da minha vida de professor, dei aula, acreditei (santa ingenuidade!) que palrar informação produzisse conhecimento. Até que descobri algo que qualquer professor sem síndrome de pensamento único pode descobrir: que há outros modos de ser professor e que o professor não transmite o que diz, mas aquilo que é. E o professes nem a informação conseguia transmitir, devido a múltiplos “ruídos” que interferiam na comunicação.

Contudo, eu preferia um professor “tradicional”, que tentasse transmitir conhecimentos, a um professor que considerasse que “a escola deveria ser apenas brincadeira”, ou que “a criança poderia fazer tudo o que quisesse”. Ambos estavam errados. O primeiro, porque insistia num modelo fóssil; o segundo porque praticava uma pedagogia fóssil. Era bem verdade que a aprendizagem passava pelo lúdico, mas, para que acontecesse aprendizagem, a criança não faria o que quisesse, a criança quereria o que fizesse. A criança saberia por que aprendia, dado que atribuiria significado ao objeto de estudo. Entre os cinco princípios da aprendizagem do Bruner, figura o da “aprendizagem significativa”.

A não-diretividade ingênua, que não entendeu a recomendação “segue a criança”, comprometeu a aprendizagem de muita gente. Por seu turno, aqueles que defendiam um “ensino transmissivo”, abominavam aquilo que designavam por “novas pedagogias”. Presumo que usassem tal adjetivo por ignorância da História da Educação. As “novas pedagogias” que eles criticavam eram velhas. Piaget publicara teoria em meados do século XX e as matrizes construtivistas tinham sido elaboradas há mais de um século!

Nos idos de vinte, quem aceitaria ser submetido a uma cirurgia comandada por um médico que se orientasse por ciência produzida há mais de um século? Mas, havia quem entregasse os seus filhos ao cuidado de auleiros praticantes de uma pedagogia com mais de duzentos anos.

Aqueles que influenciaram sucessivos elencos ministeriais e conduziram a política educativa ao desastre evocavam ciências fósseis da educação. Fazendo teorização de teorias mal digeridas e jamais praticadas, alguns “iluminados” contribuíram para lançar um estigma sobre as ciências da educação.

As introduções das bases curriculares, por exemplo, eram enfeitadas com repositórios de lugares-comuns do escolanovismo e modismos híbridos. Contrastando com o discurso das introduções, as bases eram instrucionistas, pervertiam o discurso e se constituíam em obstáculos à mudança e à inovação.

Havia quem disse “os tempos são outros”. Sê-lo-iam?

Não consegui disfarçar a minha perplexidade, quando escutei este diálogo, numa sala de professores:

“Não me sinto preparada para cumprir a BNCC”.

“Medo de quê? Só tens que passar o conteúdo. Vais ver que é fácil! É só escrever na lousa digital e eles copiam…”

Nos idos de vinte, a Pedagogia parecia ser palavra maldita. Foi proscrita, afastada das universidades. Em Portugal, os cursos de Pedagogia foram extintos. O resultado estava à vista de quem soubesse ver: o debate sobre educação era paupérrimo. Apropriado por pseudo-especialistas, exposto ao alvitre de qualquer um e à opinião de todos, transformou-se em terra de ninguém.

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXLV)

Serra Branca, 19 de fevereiro de 2041

Aquando de uma dita “reforma curricular”, um dos pontos fortes do debate era “o tempo de duração de uma aula”. E, no decurso de um congresso, alguém perguntou se eu estava de acordo com a “carga horária” em vigor. Respondi que “carga” era coisa de jegue, com o devido respeito pelo colega e pelo jegue.

O colega voltou à carga. Perguntou-me se aprovava a alteração do tempo de aula de cinquenta para noventa minutos. Respondi, perguntando:

“Cinquenta minutos ou noventa minutos para qual aluno?” 

A loucura normal instituiu os noventas minutos de aula, uma espécie de dose dupla de tédio. Alegavam os burocratas que, desse modo, os professores teriam um tempo para “dar a matéria teórica” (sic) e outro tempo para “aplicação prática da matéria dada” (sic). Assim passou a ser: durante quarenta e cinco minutos, os professores mandavam abrir o livro didático na página dezoito e liam o conteúdo do livro; no minuto quarenta e seis, mandavam os alunos abrir o manual na página noventa e papagueavam a componente prática.

O colega não sabia que, há mais de cem anos, alguns pesquisadores chegaram à conclusão de que o “aluno médio” teria, “em média”, uma capacidade de atenção seguida de cerca de cinquenta minutos. Que não era por acaso que as aulas duravam, “em média”, esse tempo. Mas que “pesquisas” recentes referiam que as crianças do século XXI tinham uma capacidade de “concentração média” (sic) de cerca de seis minutos.

A duração da aula era uma falsa questão de um debate estéril. O problema consistia em ainda haver aula, fosse de cinquenta, fosse de noventa minutos. Expliquei que teríamos de ultrapassar um discurso semeado de abstrações (aluno médio, carga horária etc.) para falar do aluno concreto. Mas o debate acabou ali, fez-se silêncio, porque aquilo que era óbvio não carecia de explicação.

Li num jornal dos idos de vinte algumas pérolas de ignorância:

“A experiência afirma que o melhor período para aprender a ler é entre os cinco anos e oito meses e os oito anos”.

“O governo federal pretende unificar em seis anos a idade em que os estudantes brasileiros começam a ser alfabetizados. Nenhum aluno poderá ser matriculado, se não tiver completado seis anos até fevereiro. Se fizer o seu aniversário, nem que seja um dia após o limite estabelecido, terá de continuar a educação infantil”.

O azar era daquele que nascesse entre o estabelecido “dia derradeiro” e o dia seguinte. Alguns estados aceitavam matrículas de crianças que perfizessem seis anos até 31 de dezembro, outros estabeleceram o critério do sexto aniversário até 30 de junho. Disposições legais fixaram o limite em 30 de março.

Alguém saberia dizer por quê? Nem eu!

Tanto tempo se perdia em questões bizantinas! Já não se acreditava ser possível deslindar o sexo dos anjos, mas insistia-se em determinar a “idade para aprender a ler” ou a “idade para ingressar no primeiro ano”.

Quando foi matriculado no primeiro ano, o Daniel já sabia ler. Numa visita à sua família, vi que ele estava a fazer os “trabalhos de casa”. Consistia em “escrever uma frase sobre a ida ao circo”.

O Daniel já sabia ler, mas estava atrapalhado. Perguntei por que estava nervoso. Ele assim respondeu:

“Eu quero escrever que o que mais gostei foi de ver os palhaços”. 

Por que não escreves essa frase? –  Quis eu saber. Ao que o Daniel respondeu: “Não escrevo palhaços porque a professora ainda não deu o “lh” aos meninos. Nem o “c de cedilha”!!”

A culpa era do Daniel, que aprendia mais rapidamente do que o ritmo das aulas. O culpado era o Daniel, porque não cumpria o calendário estabelecido para… aprender a ler.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXLIII)

Vendinha, 17 de fevereiro de 2041

Foram muitas, mesmo muitas, as vezes que ouvi esta pergunta:

“A Escola da Ponte e o Projeto Âncora não têm aula nem turmas, não têm série, não aplicam prova, nem dão nota. Estão dentro da lei?”

“Sim. Estamos dentro da lei”.

“Então, as escolas que têm aula, turmas, série, que aplicam prova e dão nota… estão fora da lei?”

“Sim, estão fora da lei. Basta olhar para os péssimos indicadores que o instrucionismo produz”.

Nos idos de vinte, muitos professores estavam crentes de que a lei não permitia a mudança das práticas. E, com mágoa, inferi que a maioria nem sequer tinha lido a lei, que autorizava o funcionamento da sua escola: o seu projeto político-pedagógico.

Por isso, convidei os educadores das turmas-piloto para fazer análise documental. Propus que procurassem artigos de leis, que permitiam mudança, inovação. E que identificassem aqueles que a administração escolar não cumpria.

Dar-vos-ei exemplos de irregularidades, começando por aquele que com eles partilhei, no fevereiro de há vinte anos: o incumprimento da Constituição.

No artigo 205, a Constituição de 1988 nos dizia que a educação era direito de todos e dever do Estado e da família, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania. A educação era considerada direito subjetivo, direito de todos!

O direito de todos á educação já estava inscrito na Constituição de 1934. A Constituição de 1946 assim o definia: “A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola”.

Na Constituição de 1969, o artigo 176º assim rezava: “A educação, inspirada no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado, e será dada no lar e na escola”. A educação já era considerada direito social e se prefigurava como serviço público. Era dever do Estado facultá-la.

Porém, o poder público, através da administração educacional, impedia o cumprimento de um direito fundamental. Se uma lei era publicada, criando abertura para a melhoria do sistema educacional, logo uma regulamentação instrucionista surgia para a neutralizar.

Nos idos de vinte, a racionalidade burocrática prevalecia sobre critérios de natureza científica. Quase todas as leis se fundamentavam em propostas escolanovistas, no paradigma da aprendizagem. Mas, quando regulamentadas, eram descaracterizadas, menosprezadas. Impunemente, o negacionismo educacional se impunha.

Se a “Carta de 1824” e a Constituição de 1891 definiam a educação apenas como instrução, a Constituição Federal de 1988 passou a considerá-la instrumento de comunicação, processo de socialização, de aprendizagem, voltado ao desenvolvimento intelectual e ético, à construção de uma nova cidadania. E acrescentou a participação da família no processo educativo.

O Estado reconhecia que a tarefa de educar também cabia a uma sociedade civil organizada. Nada impedia que associações comunitárias e organizações não-governamentais pudessem, em conjunto com as famílias e o Estado, realizar o ato de educar. A educação, como direito de todos e dever do Estado e da família, não poderia ser confinada em estabelecimentos de ensino, mas contextualizada em comunidades.

Até aos anos vinte, a imposição de uma regulamentação instrucionista contrariou os desígnios da lei. Até ao momento em que, cumprindo o disposto numa portaria publicada por uma secretaria de educação, professores, famílias e comunidades se uniram num projeto comum.

Netos queridos, o prometido é devido e disso vos falarei.

Beijos com saudades dentro!

 

Por: José Pacheco

Posts navigation

1 2 3 7 8 9 10 11 12 13 19 20 21
Scroll to top