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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXIV)

Ribeirão da Ilha, 19 de março de 2041

Como qualquer pai que se preze, o meu amigo Edilson se mostrava preocupado com o futuro escolar do seu filho:

Quero que  o meu Nuno vá para esta escola, porque é uma boa escola”.

E mostrou-me uma revista, que ostentava na capa um sugestivo título: “Conheça as melhores escolas para o seu filho”. A mídia usava e abusava dessa ambígua expressão. Mas, a opinião pública saberia distinguir o que fosse uma “boa escola”? As maravilhas anunciadas iriam gerar filas de espera para matrícula. A publicitada “boa escola” iria ter salas abarrotadas de alunos.

Nos idos de vinte, a “má escola” era a dita “escola pública” demonizada, maltratada, que sobrevivia nas margens da obsolescência. E os indefetíveis partidários do regresso ao passado elegiam como vilã a escola das ditas “novas pedagogias”.

“Novas” não eram. Os seus avatares eram fósseis! Piaget nascera no século XIX. Vigotsky morrera há quase cem anos. Montessori criara a sua escola em 1907. Dewey escrevera o seu livro essencial em 1905.

Numa simples expressão se sintetiza aquilo que o leigo considerava “boa escola”: era aquela que, desde a creche, preparava o aluno para passar no vestibular, aquela que ocupava os primeiros lugares de absurdos rankings.

O que nos diziam os rankings? Assinalavam escolas cujos alunos mais conteúdos aprendiam? Mas aprendiam, ou era apenas decoreba vomitada em prova e esquecida?

A memória é esperta e apaga aquilo que não tem significado. As designadas “boas escolas” apenas adotaram algumas habilidades pedagógicas, que os potenciais clientes adoravam. As lousas digitais não eram mais do que quadros negros do século XXI. Aquilo que distinguia uma “boa” de uma “má” escola não era dispor, ou não dispor, de salas de aula 3d, ou tablets para todos. Esses enfeites pedagógicos apenas davam um ar de modernidade a práticas fósseis.

“Eu quero que o meu filho aprenda, mas também que seja feliz e que seja um bom cidadão”.

Compreendi a preocupação do Edilson, mas questionei-o, quando argumentou que a escola escolhida “ocupava os primeiros lugares dos rankings”. O Edilson partilhava da vontade de qualquer pai, mas a dita “boa escola” cuidaria da formação sócio-moral dos alunos?

Qual a moral que a autorizava a condicionar a matrícula apenas a “bons alunos”, ou a recusar a matrícula de crianças “especiais”? Os rankings atestavam honestidade? Como se explicaria que, entre as élites que as frequentaram, se contassem muitos corruptos de colarinho branco? Quantos conformistas eram produzidos nas “boas escolas”, indo ocupar as cadeiras do poder, incapazes de uma postura humanista e inovadora?

Qual a moral prevalecente nas “boas escolas”? Aquela que legitimava a aplicação de vestibulinhos? Aquela que, entre vestibulinhoe e o vestibulares, impunemente, produziam exclusão? Seriam essas as “boas escolas”? Afinal, o que seria uma “bos escola”? Não seria aquela que a todos acolhesse e a cada qual desse condições de ser sábio e feliz, independentemente de ter patrocínio público ou privado? Seria preciso enjeitar maniqueísmos fúteis, questionar o mito da “boa escola” e pugnar para que todas as escolas a todos garantissem o direito à educação.

O mito da existência de “boas escolas” legitimava a existência das “más”. Quer os zelosos e abastados progenitores dos alunos das “boas”, quer os indiferentes pobres pais dos alunos das “más”, as patrocinavam. Uns com mensalidades faraónicas, outros com a bolsa famíla, ajudavam a manter a “boa escola” das suas representações. E a tragédia educacional parecia não ter mais fim. Até que…

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXIII)

Santo António de Lisboa, 18 de março de 2041

Hoje, confesso que senti algum receio nas viagens que fiz no tempo da pandemia, admito que foi temerário o meu gesto de deambular entre aeroportos, em aviões superlotados, de passar por rodoviárias e viajar em ônibus repletos de pessoas sem máscara protetora.

Em pleno pico da pandemia (ou da sindemia?) nos meus setenta anos, integrava o “grupo de risco” sem vacina no horizonte. Recebi inúmeras mensagens de gente amiga, que me aconselhavam a ficar em casa. Mas o vício da viagem solidária me impelia para espaços onde uma nova educação já acontecia. E fui até Floripa.

Me acolheram nas suas casas, comigo partilharam alimento do corpo e da alma.

O Gilvan, ser humano dotado de extraordinário bom-gosto musical e de outros dons, ofereceu-me um livro, que o seu pai, educador e poeta, quis que fosse meu. Fui cumulado de gentileza e carinho. Sobretudo pela Cecília, mulher de fortes convicções, incansável na tentativa de transformar em realidade uma nova visão de mundo. Mãe estremosa de uma jovem muito especial de delicado trato e vasta sensibilidade chamada Helena E do tímido e amoroso Thales, que me levou a conhecer a sua casa da árvore.

A Bárbara me foi buscar ao aeroporto de Floripa. Deixou-me com um molhinho de ervas, “para fazer um chá, que o senhor bem precisa”. Altas horas da noite, por ruas desertas, voltou para a sua casa, “lá no meio do mato”. Na manhã de partir para Porto Alegre, foi também ela quem me levou ao aeroporto, cuidando de me presentear com “alguma coisa para que se alimente bem, que bem precisa”.

Nessas viagens, eu só conhecia boa gente. Educadores devotados, seres humanos, que me davam lições de vida. A Agnis, chorando de emoção por estar na presença deste velho. A Juliana (“sem ypslon, sem dois eles, nem dois enes no nome”), atenta e disponível, a Amanda que, embora tivesse sintomas “talvez de covid”, ainda participou no primeiro dos encontros. A Ariadne, que viria a ter importante papel na consolidação do projeto da comunidade Cristal, na tela do ifone, porque, apesar de ter saído ilesa da covid, recentemente, não quis fazer-nos correr risco de a contrair. Os maravilhosos professores da Escola Albertina, uma escola da rede pública, onde o Eduardo e a Susana buscavam melhorar as suas práticas, vizinha de uma escola particular, que eu havia ajudado e confiava que regressasse a vias de mudança e inovação

Dei por min divagando por memórias de um tempo em que percorria o meu país, ao encontro daquilo que, mais tarde, seria conhecido pelo nome de “círculo de vizinhança”. Eram peculiares formas de mutualismo, no ganha-ganha de aprender com os outros, que um Morin dos idos de 77 comentava: 

“A nossa necessidade histórica é a de encontrar um método que detecte e não oculte as ligações, articulações, solidariedades, implicações, imbricações, interdependências, complexidades”.

O isolamento físico e psicológico dos educadores de então engendrava insegurança e fomentava individualismo. No contacto fortuito com colegas do mesmo ofício dotados de outras experiências e outros saberes manifestavam atitudes de reserva, ou de objetiva recusa. O receio de pedir ajuda para a resolução de problemas concretos, de trabalhar em equipa, de trocar experiências, de partilhar o vivido, o receio de se exporem, constituíam outros tantos traços do perfil dos profissionais do “sistema de ensino”.

Aqueles a quem eu prestava ajuda, rumavam contra uma maré de loucura generalizada, buscando a substituição do “sistema e ensino” por redes de aprendizagem. Então, valia a pena correr o risco de viajar…

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXII)

Itatiaia, 17 de março de 2041

De visita à Ponte, o Senhor Ministro mostrou-se surpreendido:

“Então, a vossa escola não tem diretor?”

“Não, Senhor Ministro. Não precisamos de diretor. Somos todos diretores. Somos autônomos”.

É sabido que professores autónomos não carecem de “big brothers”. À semelhança de outros conceitos muito em voga, naquele tempo, a “autonomia das escolas e dos professores” ainda não havia ultrapassado o estatuto de ornamento de leis ou de teses de doutoramento. E num país de tradições napoleónicas, acontecia que um órgão que, segundo a lei, se supunha ser colegial, na prática, era unipessoal. E, não raramente, autocrático, autoritário.

Quem mandava era um diretor, que nada “mandava” pois estava sujeito ao dever de obediência hierárquica. Poderia discordar da ordem do Senhor Secretário-Geral, ou do Presidente, mas teria de cumprir “ordens superiores” e fazê-las cumprir pelo “inferiores”. Por isso (e por muito mais…), substituímos órgãos unipessoais por colegiados.

O termo burocracia tem origem num sufixo grego, que significa poder, força. A palavra presta-se a equívocos, pois pode designar abusos e excessos de funcionários detentores de um qualquer poder. Nas escolas, os excessos eram bem visíveis: artigos da lei por regulamentar ou regulamentados segundo uma racionalidade técnico-administrativa, nomeações políticas e ideológicas, professáurios ancorados nos podres poderes de estatutos disciplinares.

Uma dúvida se instalou no meu espírito, quando escutei de um professor uma frase proferida tal e qual a transcrevo:

“O bom professor é o que consegue deixar de dar aulas. A prova é que passa a ganhar mais dinheiro do que se as desse. Se não, veja quanto ganham os presidentes, os vices, os diretores. Muito mais do que nós!”

Não precisei de me alongar na reflexão, para me aperceber de outra realidade oculta: os professores que “deixavam de dar aula” passavam a controlar os que as davam (ou as vendiam baratinhas). Numa espécie de hierarquia invertida, aqueles que, efetivamente, prestavam um serviço útil ficavam dependentes daqueles que de útil pouco ou nada faziam.

Durante a sua pesquisa de doutorado, o meu amigo António descobriu que a maioria dos “diretores de agrupamento” estavam longe da sala de aula, há dez, vinte, ou mais anos. E que delegavam nos vices a função pedagógica. Veio-me à memória uma estória contada por um zeloso funcionário público.

O novo responsável pela repartição, já tinha sido repreendido pelo ritmo rápido que imprimia ao desempenho das tarefas. Tendo-se desenvencilhado com presteza de uma delas, foi junto de colegas, inquirindo se precisariam de ajuda. Perguntou ao primeiro:

“O que é que o colega está a fazer?”

“Eu? Eu não estou a fazer nada!” – exclamou, com ar de estar muito ocupado.

Surpreendido, perguntou ao segundo:

“E o senhor? Que serviço está a fazer?”

“Eu estou a ajudar o nmeu colega” – respondeu com ar de enfado.

Como todo o funcionário público que se preze, o jovem chefe de repartição aprendeu a lição, afrouxou o ritmo e afivelou no rosto um semblante misto de fadiga e pressa, de modo a projetar uma imagem de sobreocupação.

Algo semelhante fez o presidente do conselho executivo de uma escola. Eleito, instalado na solidão de um gabinete, nauseou-se de lazer. Para mitigar o aborrecimento, inventou funções, fez afixar diretivas, convocou fastidiosas reuniões, reformulou organogramas, produziu resmas de inútil papelada, para chegar à conclusão de que o nada fazer é um exercício deveras cansativo.

Então, nomeou um assessor, para nele delegar tarefas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXI)

Penedo, 16 de março de 2041

No tempo dos dinossauros da educação, escutei uma mãe indignada queixar-se de o seu filho não querer ir para a escola, porque a professora lhe batia. Ao que parece, naquele recuado tempo, a mestra usava a régua como auxiliar de instrução.

A senhora dirigiu-me a palavra. Eu respondi que não queria acreditar, que não considerava que fosse possível tal comportamento. Assegurou-me que sim, que tinha sido tal e qual. Procurei uma rebuscada explicação, para justificar o estranho costume. Aleguei eventual desgaste psíquico da professora e que teria sido um incidente apenas.

“Não é isso, não, professor! É quase todos os dias. Só não bate quando vai ao bar da esquina. Isso é coisa de professora, é?”

“Se as professoras vão ao bar, talvez seja porque não têm chá e café na escola” – repliquei, em abono da corporação.

“O senhor não entendeu. As professoras vão ao bar no tempo em que deviam estar a dar aulas. Ó, senhor professor, as escolas de hoje não são muito diferentes da que nós tivemos! A professora do meu filho até me faz lembrar a Dona Bertinha.”

Tangeram a minha corda sensível e logo perguntei:

“Quem é a Dona Bertinha?” 

“Quem é, não! Quem foi!” – retorquiram os meus amigos, de quem a Dona Bertinha tinha sido mestra. E logo desfiaram uma história, que abreviarei, para não vos cansar.

Contrastando com a fineza de estilo de outras professoras do seu tempo – e com o perfil que o diminutivo poderia sugerir – a Dona Bertinha nutria ressentimentos face aos seus alunos e assumia-os. Quase no fim de uma carreira de mais de quarenta anos, a matriarca fazia questão de sublinhar que, quando morresse, “queria ir para o inferno, porque o céu deveria estar cheio de criançada”.

A “criançada” fora culpada de uma queda, que lhe fez partir o fémur e passar metade da vida apoiada numa bengala. Este utensílio, presumivelmente utilizado no restabelecer do equilíbrio, foi recurso prodigamente utilizado “no lombo dos pequenos diabretes, que a puseram assim”.

Fique sabendo o leitor que era esse rude atributo que “fazia a diferença”. A Dona Bertinha era apontada como exemplo, unanimemente considerada a melhor de quantas professoras havia na região. Não porque o “seu método” fosse diferente do “método” das outras professoras, mas porque, no ocaso da carreira – quando “a idade era um posto”, como gostava de realçar – era considerada como “uma professora que se dava ao respeito” (sic). Não constava que alguma vez, tivesse questionado o “seu método” porque, como costumava dizer, “a letra com sangue entra”. E por convencimento de que o pior dos defeitos que um professor poderia ter era o de perder tempo a pensar.

Durante mais de quarenta anos, a Dona Bertinha contou os dias que lhe faltavam para a sua “bendita aposentadoria”. E lá se foi, um dia, na paz dos simples, sem se ter apercebido da riqueza do pensar sobre o que se faz.

Nos idos de vinte, ainda era suposto que, se o professor leccionasse, a aula serviria para que o aluno aprendesse a lição. Os mestres fingiam que ensinavam e escassos eram aqueles que aprendiam. Vivia-se na ilusão de que, trocando a violência física pela violência simbólica, algo se modificaria.

Ledo engano! Entre a bengalada certeira da Dona Bertinha e a disciplina de caserna imposta por docentes “tradicionais” e por professores e militares em serviço nas escolas “cívico-militares”, distavam algumas décadas e nenhuma alteração no estilo. Uma distância temporal despicienda, se considerarmos serem as mudanças em educação tremendamente morosas, em decorrência de um “ensino tradicional” enraizadíssimo nos costumes.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXX)

Araçá, 15 de março de 2041

Visitei uma escola, que diziam ser “inclusiva”. Constava que, numa “turma de terceiro ano”, havia um aluno “incluído”. Encontrei-o ao lado de uma “professora de apoio”, copiando frases escritas no quadro, tão lentamente que, no fim da cópia, a folha foi para o lixo – estava empastada em saliva, que escorria da boca sem que ela conseguisse contê-la. No fundo da sala, o “incluído” tornou-se invisível, condenada à mais cruel forma de exclusão. A professora explicou por que razão a “incluída” ali estava:

“Que quer que eu faça, Professor Pacheco? Ela continua com o livro do primeiro ano. Com mais de vinte alunos já é difícil ensinar os normais. Agora, põem-me um deficiente na sala. Eu nunca tive formação para isto. Não dá! A colega do especial que vá fazendo o que pode!”

À impotência e frustração de professores juntava-se o desespero dos pais. Na hora de matricular era aquele abraço:

 “Nós vamos dar conta da sua filha, pode ficar descansado”. Depois, a minha filha passava o tempo todo passeando pela escola, ou no fundo da sala. Ela tem treze anos, mas não sabe fazer a tarefa que a professora manda fazer em casa. Ela está no terceiro ano, mas tem o livro do primeiro ano e passa as aulas a fazer cobrinhas. A professora é muito simpática, mas… Quando a professora me disse que não sabia trabalhar com a minha filha, eu disse à professora que trabalhasse como trabalhava com todos os outros. Mas a professora disse-me que a Belita não se sabe explicar…”

No decurso de um congresso, alguém afirmou:

“A organização em turmas e anos não combina com Inclusão.”

Esse palestrante viu, claramente visto, o logro de uma “inclusão de fachada”. Mas havia quem não quisesse ver. Todas as escolas tinham incorporado a “inclusão” no discurso. Na prática, eram escolas inclusivas não-praticantes. A “olhómetro”, uma professora arriscou a sentença:

“A sua filha deve ser disléxica. Leve–a ao psicólogo.”

Após muito dinheiro gasto no psicólogo, a mãe da Rita entregou um relatório à professora. O psicólogo recomendava que se ajudasse a aluna a elevar a sua autoestima. Na prova seguinte, a vermelho, a Rita recebeu a primeira “ajuda”:

“Tens de estudar mais. Assim, nunca vais conseguir passar de ano.”

A mãe insurgiu-se, protestou. No ano seguinte, a Rita foi transferida para outra escola, porque… “naquela escola não havia vaga para deficientes”.

O discurso que apelava à integração dos diferentes nas escolas ditas regulares não bastava. Não era condição suficiente assegurar o direito à inclusão; era preciso assegurar a inclusão. Eu sei que sempre disse o mesmo, mas nunca desisti de dizer. Mais de trinta anos de prática numa escola diferente, fizeram com que eu visse a realidade dos diferentes com diferentes olhares. Escrevia, porque nunca foi demais voltar ao assunto, para lembrar que, apesar da teoria e contra ela, a realidade nos dizia que, desde há séculos, tudo estava escrito e tudo continuava por concretizar.

Nunca seria demais lembrar que os projetos humanos careciam de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica clara, baseada no saber cuidar, no conviver com a diversidade. A chamada Educação Inclusiva não surgira por acaso, nem era missão exclusiva da Escola. Era um produto histórico de uma determinada época e de realidades educacionais contemporâneas, que requeriam que abandonássemos muitos dos nossos estereótipos e preconceitos.

Em 2021, urgia que se transformasse a escola de iniciativa estatal ou particular em escola pública, uma escola que a todos acolhesse e a cada qual desse reais oportunidades de ser e de aprender.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXIX)

Lembrança, 14 de março de 2041

Há muito, mesmo muito tempo, escrevi umas estórias, que compilei em alguns dicionários. Preocupava-me com o uso e abuso de termos como “inovação”. Transitara por lugares onde, efetivamente, acontecia inovação. E, enquanto formado em ciências da educação, havia estudado o conceito de “resistência à mudança”. Na fundamentação mais ou menos científica da minha desobediência civil pedagógica e antropogógica, a ele recorri para contestar tentativas de reformas lançadas do centro do sistema, que em nada contribuiriam para a melhoria do dito.

Esse conceito teve origem remota nos trabalhos de Kurt Lewin (1947), que o definiu recorrendo a uma metáfora da Física. Segundo ele, o indivíduo que vivia num sistema de equilíbrio buscava sempre estabilidade, a sustentação do status quo. Talvez por isso o conceito “resistência à mudança” tivesse sido adulterado, para que fossem atingidos fins menos nobres: a manutenção do status quo e os privilégios dos burocratas.

Quando os dirigentes que não “davam aula” vegetavam distantes da realidade sofrida entre as quatro paredes das salas dos que “davam aulas”, dispunham de muito tempo livre, para burocratizar e complicar a vida das escolas. Era bem verdade, nos idos de vinte! Até um titular do Ministério da Educação reconheceu que o seu Ministério complicava a vida das escolas. A declaração caiu em saco roto, pois o Ministério continuou a sua cruzada e muitos gestores tomaram-no como exemplo a imitar nas suas escolas.

Os funcionários “superiores” diriam, porventura, que controlavam presenças, organizavam horários, justificavam faltas. Mas, tanta burocracia enquistada no quotidiano das escolas apenas agia como fator de desperdício. As escolas poderiam passar muito bem sem a tralha administrativa, que infantilizava a pessoa e desresponsabilizava o profissional.

Alegavam que distribuíam ordens pelos subordinados e que faziam reuniões. Mas, o que resultava de útil dessas reuniões? Diziam que preenchiam mapas, redigiam ofícios, instauravam processos disciplinares, mas o que resultava de útil de toda essa azáfama, que se traduzisse na melhoria do trabalho dos professores, ou no aumento da qualidade das aprendizagens dos alunos? Nada!

Outra atividade inútil, entre muitas que as escolas ainda cultivavam nesse tempo, era a realização de provas, exames. Os professores que “davam aula” queixavam-se de que o número de aulas era insuficiente para “dar o programa”. Mas, muitas escolas suspendiam totalmente as aulas, muito antes do termo do ano letivo, para que fossem realizados… exames.

Segundo a lógica de um jovem professor, se lhes foi ministrado um curso para corrigir provas e lhes era pago um suplemento remuneratório pelo policiamento, isso constituía prova insofismável de que “não dar aula” elevava o estatuto profissional. Obrigados a marcar o ponto, milhares de professores passavam os dias a deambular por corredores, porque não tinham “serviço de exames distribuído” (o discurso escolar era pródigo em eufemismos), ou porque ainda não havia chegado a hora de fazer de polícia. Ainda que por efémeras horas, esses docentes conseguiam “deixar de dar aula”.

Há muitos, mesmo muitos anos atrás, conheci um professáurio, que já “não dava aula”, mas que se gabava de, no tempo em que as dava, ser considerado um “bom professor”, pelo facto de reprovar muitos alunos. Conservo até hoje a dúvida que, nesse tempo, me assaltou e um amigo brasileiro assim definiu:

“Se o bom professor é o que mais alunos reprova, o melhor médico será o que mais doentes mata?” 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXVIII)

Tamanduá, 13 de março de 2041

Perguntais-me se tudo aconteceu do modo como o descrevi nas últimas cartinhas. Dir-vos-ei que foi como o descrito… e muito pior. A história da Ponte e de muitos outros projetos de mudança e inovação foi feita de resiliência e sofrimento, de escassas alegrias e transformações.

Por volta do ano 2000, o pior que poderia acontecer à jovem equipa da Escola da Ponte seria ter de aturar um velho professor, que por lá andava há trinta anos. Abalei para longes paragens. Separado da Ponte pelas águas de um grande mar, desimplicado do quotidiano da escola, eu era espectador atento da crise de transição por que passava. Mais uma vez, fui ao fundo do baú, em busca de antiguidades. Encontrei anotações sobre estágios de professores, psicólogos, sociólogos. Numa carta dirigida aos professores da Ponte, uma socióloga escreveu:

“Nunca consegui entender algo que, ainda agora, quando penso nela, me intriga. Nas reuniões em que participei, os professores diziam, cara a cara, tudo o que pensavam dos seus pares, de modo enérgico, por vezes, mesmo rude. E, quando me parecia que a reunião iria terminar numa zanga e confusão total, os professores davam a reunião por finda e iam tomar chá, comer bolachas e contar anedotas.” 

Essa jovem socióloga talvez não tivesse compreendido algo essencial. Partilhar um bolinho e dois dedos de conversa com os mesmos parceiros que, minutos atrás, nos tinham criticado, era sinal de autenticidade, de “clareza”. Ainda que se reconheça que nem tudo foi transparência, ainda que (em algumas situações) tivéssemos afivelado a máscara, fomos capazes da transcendência de que cada um foi capaz. Talvez a maior ruptura com o modelo tradicional concretizada na Ponte tivesse sido acabar com a solidão do professor. Nessa escola, ninguém estava sozinho.

A Ponte foi mais uma, entre muitas escolas, que, durante o último século, ousaram defrontar o pensamento único e toda a espécie de fundamentalismos. Opôs-se à burocracia dos ministérios, travou uma luta titânica contra a mediocridade dos políticos, defendeu-se de professores sem escrúpulos.

Sabemos que, se o maior aliado do professor é outro professor, o maior inimigo do professor que ousa ser diferente é, também, outro professor. Porque assim é, a Ponte foi alvo de calúnias e agressões provindas de professores de outras escolas. E, porque a reelaboração da cultura pessoal e profissional é um processo lento, também foi necessário defrontar a erosão interna.

Queridos netos, quando visitou a escola, o professor Lemos Pires disse-me que a Ponte só acabaria, se os seus professores acabassem com ela, por dentro. Os “invasores” de que vos falei em cartinhas recentes causaram danos, por vezes, irreversíveis.

A Ponte procurou caminhos para os descaminhos da educação, buscou concretizar “Escola Pública”. Aquela que – quer seja de iniciativa estatal, quer de iniciativa particular – a todos os alunos conferiria garantia de acesso e a todos daria condições de sucesso.

É fácil conceber, começar projetos. Difícil é mantê-los, sem que se degradem. Um projeto humano é um ato coletivo, feito de pessoas em contínua aprendizagem. E é da humana natureza complicar o que é simples. Subitamente, sem explicação, os “invasores” ligavam os seus “complicadores” e tudo se complicava.

Tal como no Mito de Sísifo, a continuidade de um projeto dependerá da capacidade de cada um e todos os participantes serem resilientes e de ousarem recomeçar. Numa efetiva cooperação, na recíproca aceitação das diferenças – omnia in unum – e sem deixar de interrogar evidências.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXVII)

Morada Nova, 12 de março de 2041

Em meados do mês de março de há vinte anos, notícias de primeira página dos jornais brasileiros avisavam que a tragédia anunciada se consumava. Passageiros se aglomeravam em trens do metrô, enquanto vigorava a fase vermelha da pandemia. As escolas de São Paulo registravam 21 mortes e 4.084 casos de Covid-19 em um mês de “volta às aulas”. Dois alunos e dezenove funcionários haviam morrido, após infecção pelo vírus. A televisão dava conta de que os jovens tinham passado a representar 25% dos internados com a doença.

Em meados do março de 2021, o Brasil atingia a marca de 2.349 mortes diárias. E muitas mais vidas se perderiam, num luto cruel e desnecessário.

Um médico saía do seu hospital, quando avistou um ajuntamento. Gente sem máscara de proteção, xingando quem passava usando máscara. Chamado de “maricas” reagiu. Disse que havia saído de uma UTI superlotada e apelou ao bom senso. Foi espancado pela multidão.

O negacionismo expunha os vivos ao contágio e ofendia os mortos. Quando escutei um educador lamentar a situação, dirigi-lhe algumas perguntas:

“Por que será que tanta gente acredita que a Terra é plana? Por que há gente acreditando em fake news? Tens feito um bom serviço na tua escola? Qual a tua quota parte de responsabilidade”?

Num dos seus discursos, o ditador Salazar disse” “Cada povo tem o governo que merece”. No Brasil dos idos de vinte, talvez o país não tivesse o povo que merecia. Quem o teria posto assim?

Em “O Brasil e as colónias portuguesas”, Oliveira Martins referia-se à transferência da família real para o Rio de Janeiro como a origem dos males que afetavam o Brasil. Em pleno século XIX, no jornal “O Repórter”, zurzia as medidas de política educativa de então, que em nada diferiam daquelas que, nos idos de vinte do século XXI, as secretarias de educação adotavam:

Tudo isto é uma miséria, tudo isto está pedindo uma reverendíssima reforma. A organização atual dos nossos estudos está abaixo da crítica. Encasquetar na memória rosários de abstrações incompreendidas é o acume da insensatez. Embrutecemos os alunos com um ensino que é uma hipótese apenas, no fundo da qual está uma grande ignorância de mãos dadas com bastante especulação”. Em 2021, era surpreendente a atualidade da prosa… de 1888.

Cento e trinta e três anos depois, as estatísticas davam conta de défices acentuados na alfabetização, de miseráveis índices educacionais. Nas terras que Cabral achou, os jornais davam notícia de “alunos analfabetos na oitava série, de abandono dos estudos, do descalabro no ensino”.

As decisões dos políticos visavam atenuar efeitos, sem intervir nas causas. Eram inúteis exercícios de cosmética legislativa, que um sistema assente em viciosas rotinas se encarregava de perverter. Insistia-se no “dar aula”, apesar de os afirmarem que os professores ensinavam, mas os alunos não aprendiam. Nada conseguira abalar a estrutura herdada do velho Lancaster. Exauria-se recursos, na sujeição a uma racionalidade caduca, que condenava ao insucesso sucessivas gerações

Um professor quis saber por que razão não havia séries na minha escola. Expliquei-lhe. Pessoa inteligente – como qualquer professor – ele entendeu as razões que levaram a Ponte a abandonar a cartesiana segmentação.

“E há séries na tua escola?” – perguntei.

Ele respondeu com o silêncio e um sorriso maroto. Sosseguei-o:

“Não te preocupes. Já fiz essa pergunta a muita gente. Ninguém soube dar resposta. Se a procurares nos livros, não encontrarás fundamento, que possamos chamar “científico”, de haver séries. Pero que las hay, las hay”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXVI)

Todos os Santos, 11 de março de 2041

Cheguei ao auditório onde iria fazer uma “palestra” ainda a tempo de escutar a palestrante que me antecedeu. A Emília falava de uma visita que fizera à Escola da Ponte, creio que em finais da década de oitenta, e de pormenores que a surpreenderam:

“Quando cheguei, achei estranho que não houvesse portaria. Tudo aberto, tudo acessível. Procurei o “gabinete do diretor” e não encontrei. Perguntei a uma criança onde estaria o diretor. Ela assim respondeu: 

“Onde deveria estar, minha senhora? O professor Zé está com as crianças! Vá por ali, que já o encontra”.

Após a minha vinda para o Brasil, visitava a Ponte, observando como a escola evoluía na minha ausência. As visitas de início do século me deixavam confortável. Dispondo de um contrato de autonomia – o primeiro contrato celebrado entre uma escola pública e um estado – a Ponte escolhia os seus professores e não havia “gabinete do diretor”. Porém, os últimos tempos da minha participação no projeto foram conturbados. Para aqueles que por lá ficaram, tornou-se difícil a gestão de mais uma “crise”, agudizada pela pérfida ação do ministério.

Eu conversava com alunos, que que tinham interiorizado o projeto. Eles se abriam comigo, manifestando senso crítico:

“Parece-nos que os professores novos andam muito desorientados. Precisam de alguém que os ajude a perceber como se trabalha na nossa escola.” 

“Porque dizeis isso?” – quis saber.

“Por exemplo… Ainda ontem houve problemas com uma professora. No debate da tarde, o Rui deu a sua opinião sobre um assunto, mas uma professora nova disse-lhe para estar calado”. 

“E então?” – insisti.

“E então, Professor Zé, o Rui respondeu assim: Eu fico calado, minha senhora. Mas o que eu disse tem de ficar na pauta do debate. Nesta escola, nós sempre fomos ensinados a dizer o que pensamos.” 

A Ponte estava, mais uma vez, a passar por tempos difíceis. Mas a inexperiência dos novos professores não era o principal fator de alguns “desvios de rota”. Ao longo de mais de meio século, houve quem “invadisse” a Ponte com propósitos mesquinhos. E, quando os invasores primavam pela inteligência, discretamente conseguiam degradar um delicado sistema de relações. Quando se afastavam, remoíam ressentimento e degradavam a imagem social da escola tanto quanto era capaz a maldade humana.

Os professores – como todos os seres humanos – são uma mistura de belo e de horrível. Um dos invasores provocou danos irreversíveis. Referiu-se a colegas, num tom que refletia um ridículo complexo de superioridade:

“Com professores como os que temos, não é possível fazer um projeto.” 

Respondi:

“Foram professores como os que desprezas que fizeram da Ponte o que, hoje, ela é e representa. Muito antes de teres chegado com as tuas brilhantes teorias e contraditórias práticas. Nós não temos os professores que idealizamos. Temos professores concretos, tão limitados e capazes como tu, como eu. Aceitemo-los como são. Dêmos-lhes meios e o tempo de que precisam.” 

Esse invasor não partilhava informação útil. Manipulava-a, moldava a realidade do modo que lhe convinha. Apenas sensível aos seus argumentos, explorava a fragilidade dos professores mais novos, tentando destruir a minha reputação e o projeto.

Em Portugal, como no Brasil, precisei – precisamos, porque todo o projeto humano é coletivo – de curar feridas e ajudar a reconstruir projetos. Porque deveremos cuidar do que se trabalha e trabalhar o que se cuida. O cuidar dos outros, ajudando-os a refazer-se, pressupõe uma responsabilidade voluntária e um dom que os invasores não possuíam: o respeito.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXV)

Mocambinho, 10 de março de 2041

Perdi a conta de quantas vezes repeti a frase “escolas são pessoas e as pessoas são os seus valores”. No dia em que pedi à Maria José e à Maria Luísa para colocarem num papel os dez valores que comandavam as suas vidas, a matriz axiológica do projeto da Ponte se apresentou – autonomia, responsabilidade e solidariedade eram valores que constavam dos três papeis. Uma sólida amizade cresceu, ao longo de mais de vinte anos. Até ao dia em que um dos elementos da equipe passou a criticar sem propor soluções, a fazer acusações infundadas, reclamando respeito, quando era ela quem ofendia, desrespeitava.

Quando lhe chamamos a atenção para o desgaste que a sua atitude provocava, passou a denegrir a imagem do coordenador do projeto, em conversas paralelas. A lealdade de alguns professores me alertou para a “conspiração”. Ciente da gravidade da situação e dos riscos que o projeto corria, apelei a uma mudança de atitude.

No decurso de uma reunião, a “conspiradora” reagiu com chantagem emocional:

“Estás a pôr em causa a nossa amizade?”

Respondi:

“Não me faças escolher entre a nossa amizade e a defesa as crianças.”

Escolhi a defesa do projeto.

A história da Ponte foi feita de resiliência. Sobreviveu, mas a erosão de devassas provindas de dentro da equipe de projeto deixou dolorosas marcas.

Sou um ser humano feito de escassas virtudes e de muitos defeitos. Sei que não existe certo ou errado, ou verdades absolutas. Por essa razão, em tempos da pós-verdade, reagi ao espezinhamento de pessoas e projetos. O farisaísmo imperava. Numa sutil inversão de valores, se acusava outrem de negar valores. Com falas “mansas” se preparava assassinatos de caráter. No descabido uso da expressão “não violência” se usou da maior violência verbal que se possa imaginar. Assisti à teorização da sociocracia feita por quem agia como autocrata. E, entre quezílias privadas e jogos de poder, pessoas idôneas foram caluniadas, a reputação de pessoas íntegras foi lesada.

Eu já estava cansado de tanto autógrafo rabiscar. Manifestei ao meu amigo Rubem a vontade de parar e até de ir embora. O Rubem se pronunciou contrário à minha intenção:

“Não vá embora. As pessoas precisam tocar no santinho.”

Quis o destino que, involuntariamente, eu me tornasse “figura pública”. Não um símbolo, porque nunca permiti que a Ponte fosse mitificada, mas uma espécie de “ícone” – pesada responsabilidade a deste ser humano tão frágil e limitado!

Exposto a adulações, veementemente as rejeitava. Quando me tentavam envolver em discussões sobre comportamento moral, eu dava réplica, me indignava e exaltava, para preservar projetos. Mas, se sofria ataques pessoais, eu reagia como o junco.

Esopo foi um escritor grego que, nas suas fábulas ou parábolas, reproduzia o drama existencial do homem, substituindo os personagens humanos por animais, objetos, ou coisas do reino vegetal e mineral. Sua intenção era mostrar como os seres humanos podiam agir, para o bem ou para mal. Completo esta cartinha com o resumo da fábula do Carvalho e do Junco.

Um carvalho foi arrancado do chão pela força de forte ventania. Rio abaixo, arrastado pela correnteza, se cruzou com alguns juncos. Em tom de lamento, exclamou: “Gostaria de ser como vocês, que, de tão esguios e frágeis, não são afetados por fortes ventos.” 

Os juncos responderam: “Você lutou e competiu com o vento, por isso mesmo foi destruído. Nós ao contrário, nos curvamos, mesmo diante do mais leve sopro da brisa, e por esta razão permanecemos inteiros e a salvo.”

Resta dizer-vos que só fui carvalho quando estritamente necessário.

 

Por: José Pacheco

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