Viana do Castelo, 27 de janeiro de 2041
Até aos anos trinta, as modalidades de formação tradicionais – curso, módulo de curso, seminário, estágio – reproduziram o velho e obsoleto modelo instrucionista,
reforçaram dependências nada consentâneas com as metáforas tradicionalmente aceites no discurso contemporâneo das ciências da educação. Disso tomei consciência, quando umas amigas professoras me pediram que as ajudasse.
Era assunto urgente, disseram, e no fim de semana imediato, no meu carrinho em segunda mão, abalei para o Portugal mais profundo. Viagem longa, por estradas onde Cristo não passara, até chegar à aldeia onde me esperava uma sopinha de pedra e a simpatia das minhas colegas. Após o repasto, reunimos.
“Olha, Zé, estamos aflitas. Passou por aqui um inspetor, perguntou pelo nosso projeto. A gente sabe lá o que isso é! Tu, que andas lá pelo sindicato, poderás ajudar-nos? Tens isso, lá na Ponte? O homem disse que voltaria para o mês que vem e que quer ver o tal de projeto. O que é isso? Ele disse que saiu uma lei… ”
Sosseguei-as. Expliquei o que era “o tal de projeto” e me predispus a voltar. Entretanto, poderiam telefonar (naquele tempo só havia telefone fixo). Não telefonaram, mas eu liguei. E combinei voltar à aldeia.
Foi rápida a reunião e eu pude voltar a casa no mesmo dia. Uma professora foi lendo o “projeto”, enquanto as restantes faziam crochet, ou conversavam sobre a “Gabriela” (uma novela de TV). A certa altura, a leitora disse:
“Levaremos os nossos alunos à lota…”
As professoras pareciam estar alheias à fala da colega, mas estavam bem atentas e possuíam uma boa memória dicótica.
“Ora repete lá isso outra vez, ó Joaquina!”
A Joaquina repetiu. E a pergunta veio em coro:
“O que é isso de lota? Eu não sei”.
Interrompi, para informar que lota era um lugar onde se expunha o peixe, quando os barcos voltavam da pesca.
“Estais a ver?” – disse a Joaquina – “Fizemos mal em copiar o projeto das colegas da Póvoa”.
Póvoa era uma localidade junto ao mar. A aldeia ficava a mais de duzentos quilômetros do mar, mas a criatividade daquelas professoras era imensa. Logo uma delas sugeriu:
“Não faz mal. Apaga a lota e põe a horta”.
E assim ficou um projeto de que o senhor inspetor muito gostou. E que foi parar no fundo de uma gaveta.
Regresso a um assunto, em que me considero a pessoa menos indicada para o abordar. Fui formador de professores – inicial e continuada – formador de formadores, consultor e avaliador de formação, diretor de um centro de formação, autor de uma dissertação sobre formação. Enfim! O que aprendi em setenta anos de formativa labuta foi que formar professores é missão impossível. Mas que é possível ajudá-los a transformar-se.
A lógica administrativa invadia espaços formativos onde deveria predominar a pedagogia e a antropogogia. O academismo constituía-se num óbice ao efetivo desenvolvimento pessoal e profissional dos professores. E a herança reprodutora condicionava a autonomia dos projetos.
No planejamento da formação, era frequente a referência à metáfora do professor “profissional intelectual, autónomo, reflexivo, crítico da sua prática”, mas a hegemonia da modalidade curso (com ou sem esta designação), as metodologias e o tipo de avaliação utilizado, contrastavam com os pressupostos introdutórios dos planos de formação.
Sabemos, hoje, que toda a formação é auto-formação. Mas, no contexto daquela que se fazia, o professor não era considerado sujeito de formação, mas mero cliente de produtos pré-confecionados. A metáfora do “professor autónomo, reflexivo” não passava de simples figura de retórica.
Por: José Pacheco