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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXXXII)

Novo Hamburgo, 27 de dezembro de 2040

A Clarice dizia-nos que aquilo “que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesmo”. Talvez por isso, em plena ditadura, o Mestre Agostinho recusou assinar um documento, que os esbirros da época exigiam de qualquer candidato ao exercício da profissão de professor. Esse e outros corajosos gestos valeram-lhe o exílio no Brasil (o que acabou sendo benéfico para o Brasil).

Um ativista indiano entrou em greve de fome e disse estar disposto a morrer contra a corrupção. E, no Brasil, a OAB criou um site: “Observatório da Corrupção”. Perante a ética deturpada dos idos de vinte e a inversão de valores como não há memória, esses sinais diziam-nos que nem tudo estava perdido.

Na contramão desses esperançosos gestos, o correspondente no Brasil do jornal “El País” escrevia:

Que país é este que junta milhões numa marcha gay, outros milhões numa marcha evangélica, muitas centenas numa marcha a favor da maconha, mas que não se mobiliza contra a corrupção?”

Quando o seu time perdia, o brasileiro reclamava, ia ao aeroporto, de madrugada, para xingar os atletas. Por que não se exigia a reforma política, o acabar de aposentadorias milionárias, a prisão de políticos corruptos? Vivíamos numa sociedade enferma de uma total inversão de valores. Quase não fazia sentido distinguir honestidade e desonestidade, valia tudo na senda de um “vencer na vida” que tudo permitia, deturpava, corrompia. O medo se instalara na sociedade brasileira. O medo provocava o esquecimento, como se jamais algo hediondo tivesse acontecido.

A palavra ética deriva do grego ethos (caráter, modo de ser de uma pessoa), representa um conjunto de valores morais e princípios da conduta humana. Sempre que me perguntavam qual fora o maior obstáculo à concretização do projeto da Escola da Ponte, eu respondia: o maior obstáculo fui eu. Fui eu, enquanto não me indignei, enquanto não agi, para assegurar o saber e a felicidade aos meus alunos.

Sem o saber, nos idos de setenta, eu adotara o princípio do Darcy: “Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca”. Num agir não-solitário, poderia mudar algo. Ainda que alguém acreditasse que o esforço de um só nada valia, era preciso agir. Mesmo que o medo nos assaltasse, era preciso reagir. Sem a coragem da indignação, a sabedoria é estéril 

Nos idos de vinte, dezenas de projetos surgiram, a educação do século XXI chegava (enfim!) ao Brasil e a Portugal. Em breve, vos contarei a estória da minha ida a Portugal, do meu regresso a Escola da Ponte. Viajei na companhia de educadores brasileiros. Levamos na bagagem utopias concretizadas nas terras do sul, para que fossem inspiração de utopias realizáveis nas terras do norte. Através de uma nova educação, se provou que a corrupção, o consumismo, o negacionismo, o racismo e outros ismos não eram fatalidades.

“Tropa de Elite 2” foi um dos meus filmes do Natal de 2020. Nada melhor, para escapar ao frenesim neurótico dos shoppings, do que mergulhar num caos de violência e morte, assistir às tentativas vãs de um Capitão Nascimento idealista, que se apercebia de que a guerra que travava não era dos bons contra os maus, que o mundo não era a preto e branco.

O filme terminava com a câmara de filmar sobrevoando Brasília. E o público irrompia numa entusiástica ovação. Depois, toda aquela gente, que aplaudira um herói entregue às suas lutas contra policiais e políticos corruptos, voltava para as suas casas, para a segurança de um emprego, para vidinhas feitas de novelas e big brother. Onde acabava a realidade? Onde começava a ficção?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXXXI)

Garibaldi, 26 de dezembro de 2040

O André estava prestes a reprovar, porque já quase havia ultrapassado o limite permitido de “faltas disciplinares”. O pai do André foi saber o que se passava. Foi-lhe explicado que o filho saía da sala de aula sem autorização da professora. Chegado a casa, o pai do André perguntou-lhe se tinha consciência do risco que estava a correr. O jovem respondeu afirmativamente.

Ainda mais preocupado, o pai voltou à escola, tentando entender a obstinação do filho. Um professor amigo acolheu-o e explicou o que vinha acontecendo, desde que uma professora nova tomara a responsabilidade de dar aulas à turma do André.

A professora era uma senhora insegura. No início da aula, gritava, ameaçava de mandar sair da sala, com falta disciplinar, todo o aluno que perturbasse a aula. Havia na turma um aluno, que parecia estar sempre de bem com a vida, dado que um sorriso permanentemente lhe enfeitava o rosto. A professora, supondo que o sorriso correspondia a desafio, pusera esse aluno fora da sala várias vezes. Tantas vezes quantas o André havia saído e, consequentemente, sido punido com “falta disciplinar”.

Na primeira vez, o André tentara explicar que o sorriso do colega era natural, uma caraterística. Não conseguira fazê-lo. A professora o mandou calar. O André saiu tantas vezes quantas o colega havia sido expulso, porque não concordava com a atitude injusta da professora e manifestava-o desse modo: num protesto mudo.

A solidariedade era um dos valores do quadro axiológico do projeto da escola que o André frequentara, antes de ingressar naquela, em que… quase reprovara por excesso de “faltas disciplinares”. São valores traduzidos em atitudes, o que define o rumo de um projeto. Na sua primeira visita à Escola da Ponte, o Rubem deteve-se a observar uma menina, que consultava um dicionário. Perguntou por que o fazia. A menina respondeu:

Estou a fazer uma lista de palavras “difíceis” deste texto e a escrevê-las de uma maneira mais simples”.

O Rubem insistiu:

“Foi um professor que te mandou fazer essa tarefa?”

“Não!” – disse a menina – “Eu sei o sentido destas palavras. Mas os meus colegas mais pequenos ainda não sabem consultar o dicionário e eu decidi ajudá-los, para que eles compreendam o texto, que é bem bonito. Nós somos como uma família. Estendeu?”

O Rubem entendeu. Encontrara, finalmente, a escola com que sempre sonhara, sem imaginar que ela já existia.

Poderá haver educação em práticas sociais que impedem a assunção de vida plena? Num tempo em que a Escola da Ponte começava a deixar de ser uma “escola dos pobres e deficientes”, passando a ser uma escola de todos, um pai transferiu a sua filha de uma escola particular para a Ponte e me confidenciou:

A minha filha aprenderá nesta escola aquilo que outras escolas lhe poderiam ensinar. Mas pode aprender aqui coisas, que outras escolas não lhe ensinariam”.

Em 1934, a primeira Constituição atribuiu ao Estado a responsabilidade pela educação do povo. Inspirava-se em valores e princípios prevalecentes na época. Decorrente de tais valores e princípios, o Brasil da educação cuidou de formar falsas elites e descuidou a educação do povo. Nos idos de vinte, desdenhava-se a ética. Não havia dia em que não se noticiasse crimes de políticos de baixo escalão, ou de colarinho branco, num jogo de salve-se quem puder. A educação familiar, social e escolar fragilizara a responsabilidade social.

Na contramão do caos e coerentes com os valores matriciais dos seus projetos, educadores resgatavam o sentido de união, em amorosos gestos, que nada esperavam em troca.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXXIX)

Belém do Pará, 24 de dezembro de 2040

Queridos netos,

No Dia de Natal de há vinte anos, enviei aos amigos votos de que a celebração daquele dia significasse mesmo o anúncio do Advento de novos tempos. Ontem, ao vasculhar velhos cadernos, encontrei notícias de primeira página de jornais desse distante Natal:

“Menina abusada e morta por padrasto”.

“Condenado a 18 anos de prisão por crimes de abuso e violação de enteada”.

“Mulher suspeita de espancar filha de 3 anos é presa”.

“Jovem tenta matar amigo a pedradas por ciúmes da própria mãe”.

Professora contou que uma vizinha a chamou de “preta nojenta”.

“Mulher é libertada após viver em condições de escravidão”.

“Presépio brasileiro mostra Menino Jesus negro em uma Amazônia devastada, um bebê negro, filho de uma virgem negra, rodeado de querubins indígenas”. 

Na sua “Antologia Poética”, Torga assim evocava o Natal:

“Nasce mais uma vez, Menino Deus! Não faltes, que me faltas, neste Inverno gelado. / Nasce nu e sagrado, nasce e fica comigo, secretamente, até que eu, infiel, te denuncie aos Herodes do mundo. / Até que eu, incapaz de me calar, devasse os versos e destrua a paz, que agora sinto, só de te sonhar”

No Natal de 2020, para evitar grandes aglomerações, a tradicional árvore de Natal do Ibirapuera foi transferida para uma área particular, na marginal Pinheiros. E a “Festa da Família” do ano que nunca existiu foi diferente do habitual. A OMS avisava: “A situação é gravíssima. Nem o Natal nem o Ano Novo poderão ser festejados como se pensava”. Para o Ernesto, a natalícia solidão não seria novidade. De rosto estampado na página de um jornal, ele comentava:

“Estou sozinho em casa. Preparo tudo para a ceia, mas não tenho ninguém”.

Ernesto somava o terceiro Natal passado sozinho. Só na Internet encontrava refúgio, para se abstrair do isolamento.

Nos natais da minha juventude, eu dirigia coros de igreja e cantava na Missa do Galo. Quando, em 2020, li notícias, que davam conta de uma profunda crise moral (a que a escola não era estranha), recordei um Natal de finais da década de sessenta.

Pouco passava da meia-noite, saí da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, cantando a plenos pulmões o cântico final da Missa do Galo:

“Paz na Terra, Paz na Terra e Glória a Deus nos altos céus. Glória ao Filho, Glória à Mãe. A Paz na Terra! A Paz na Terra!”

Noite fria foi aquela! Talvez estivessem uns cinco graus abaixo de zero. E eu descendo a rua, que me levaria a casa, cantando, possuído por um esbraseante espírito natalício. Até que… numa reentrância de loja chique, deparei com um quadro, que me era familiar. Fora o último que vira, ao sair da igreja: a Pietá.

Uma mulher acalentava uma criança. Aturdido, escutando o seu soluçar, me aproximei, sem saber o que fazer. Ao seu lado, um velho jazia, tremendo. debaixo de uma manta esburacada. Ao seu redor, começava a formar-se uma fina camada de geada. Também chorava. Debrucei-me sobre aquele corpo franzino, passei a minha mão pelo seu enrugado rosto. Perguntei o que poderia fazer por ele. Com voz trémula, me disse:

“O que eu quero, meu filho é que a morte não demore a chegar. Vai, meu filho, vai! Deixa-nos. Vai para casa”.

Fui me afastando, possuído por um estranho sentimento. Mais abaixo, numa esquina da Praça da Liberdade, deparei com duas prostitutas seminuas, tão trémulas quanto os moradores de rua. Em vão, esperavam clientes, mas… era Noite de Natal.

Senti vontade de correr, corri, fugi dali, fugindo não sabia de quê. Exausto, quase chegado a casa, sentei-me nos degraus de pedra das Escadas da Vitória. Subitamente, soltou-se um mar de lágrimas feitas de impotência e raiva.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXXX)

Alter do Chão (Pará), 25 de dezembro de 2040

Quando, hoje, me preparava para rascunhar esta cartinha, eis que a minha amiga Amanda me envia uma mensagem. Sincronicidades? Talvez.

“E quem diria que já estaríamos no Natal? Que esta data nos lembre o verdadeiro significado de estarmos juntos em nome do amor. Hoje, te convidamos a agradecer e celebrar a vida, honrando todos aqueles que deixaram esse plano num 2020 tão cheio de desafios. Diante de todos os obstáculos aos quais fomos expostos, esse ano nos mostrou a importância do reaprender e nos ensinou que, juntos, podemos transformar o mundo. Agradecemos sua caminhada ao nosso lado nessa grande missão de sermos agentes de transformação! Gratidão! Seguimos juntos, sempre, por um mundo melhor! Muita luz e um Feliz Natal!”

Pouco depois, recebi esta notícia:

Casados há 61 anos, Doris e Sherwood morreram de mãos dadas no hospital.”

O casal deu entrada no hospital, uma semana antes do Natal, com sintomas graves da covid-19, e ambos precisaram de auxílio de ventiladores para respirar. Na véspera de Natal de há vinte anos, Doris Pope, de 78 anos, e Sherwood Pope, de 82, morreram de mãos dadas, segundo relatos de enfermeiros de um hospital em Raleigh, na Carolina do Norte, Estados Unidos. Quando o quadro clínico se agravou, Sherwood pediu aos médicos que o deixassem ficar junto da sua mulher. Médicos e enfermeiros acederam ao pedido. Colocaram as duas camas próximas uma da outra, para que pudessem segurar a mão um do outro, durante três horas, antes da morte. Sherwood morreu primeiro. Doris juntar-se-ia ao Amor da sua Vida, alguns minutos depois.

Durante a minha vida, por três vezes, soube o que era a solidão de uma Noite de Natal. Em 2020, vivi a minha terceira Noite de Natal solitária. E, mais uma vez, confirmei que quem ama nunca está sozinho.

A primeira ocorrera em 1974. Pela primeira vez me privei da companhia de quem mais amava, para ficar dentro de um quartel, na companhia de alguns militares, que também optaram por passar uma noite de vigília. Era preciso defender a “Revolução dos Cravos” daqueles que, na sombra, contra ela conspiravam.

O Natal de 74 seria o último para a pessoa que eu mais amava: a minha mãe. Menos de um mês decorrido sobre essa primeira solitária Noite de Natal, no fim de tarde mais triste de quantos me aconteceram, de coração corroído por uma vida de sacrifícios, serenamente deitada nos meus braços, a minha jovem mãe exalou o seu último suspiro.

O segundo Natal solitário aconteceu em 2015, quando decidi vir viver em Brasília. Dele não quero falar. Apenas vos direi que muitos seres humanos nascem longe de casa. Aqui encontrei a minha casa e nela fiquei. Costumava dizer que, daqui, apenas partiria para o crematório de Valparaíso de Goiás (era o mais próximo).

Reparai que escrevi Amor e Vida com letras maiúsculas. A Vida é um contínuo ato de Amor, ou não é Vida. O Amor é a única realidade e a coragem de Viver é a sua tradução.

Escutemos Drummond:

Provisoriamente não cantaremos o amor / Que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos / Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços / Existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro”.

E o Galeano:

O inimigo principal qual é? A ditadura militar? Não, companheiros. Nosso inimigo principal é o medo!”.

Não nos esqueçamos de que “Dignidade” era o nome de um dos campos de concentração da ditadura chilena e de que “Liberdade” era o nome da maior prisão da ditadura uruguaia.

Depois de um terceiro Natal de solidão, chegou um ano feito de Coragem, Vida, de Amor. Nas próximas cartinhas, contar-vos-ei tudo o que aconteceu naquele extraordinário 2021.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXXVIII)

Caxias do Sul, 23 de dezembro de 2040

Certamente, todo mundo conhece a história do pescador que, tendo acabado de pescar três peixes, considerava ser alimento suficiente para a família, naquele dia e ia para casa, saborear o dia, saborear a vida. Alguém, contando essa história, acrescentou que esse pescador era um “selvagem”. Mas seria selvagem quem recusava ter a subjetividade industrializada, quem se mantinha alheio aos ditames de uma economia predadora?

Quando me zanguei com o Natal do consumismo, discretamente me ausentava da mesa da Consoada, antes da balbúrdia do desembrulhar dos presentes. A avidez invadia a sala de jantar, o chão ficava juncado de papel rasgado e o ar ficava empestado de irritantes sons de jogos eletrônicos.

Numa crônica de jornal, a minha amiga Rosely falou da febre consumista. A aquisição desenfreada de brinquedos colaborou muito para que o ato de brincar ficasse em segundo plano. Nesse recuado tempo, quando as crianças queriam brincar, não podiam. E, quando podiam, não queriam ou já nem sabiam brincar.

As vitrines das lojas estavam repletas de presentes para o Dia de Natal. Um pai ofereceu um celular de última geração à filha, que acabara de completar cinco anos de idade. O Brasil ocupava o primeiro lugar entre os países do mundo que praticavam cirurgia plástica para jovens. Um jornal noticiava a venda de sutiã com enchimento para meninas de seis anos! Os jovens acreditavam que escolhiam aquilo que usavam e eram manipulados. Quando chegaria o dia em que todas as estações de televisão seguiriam o exemplo daquela que aboliu comerciais nos intervalos de programas destinados à infância?

No auge do triunfo do hedonismo, a felicidade restringia-se à satisfação de desejos reciclados. Para os escravos do consumismo, renunciar a alguma coisa prazerosa parecia significar perda de liberdade. Talvez nunca tivessem olhado os lírios do campo…

Ninguém nascia consumista. O consumismo era um hábito mental instalado. Onde estava a educação para um consumo crítico, inteligente? Quando se ensinaria a consumir, quando se aprenderia a viver? Se isso não se aprendesse na escola, onde e quando os jovens iriam aprender?

Dar a conhecer os perigos do fast food era tão necessário quanto o saber colocar a pontuação correta num texto. Desenvolver a sensibilidade do aluno, de modo a que ele fosse sensível a uma suite de Bach era tão necessário quanto saber fazer multiplicações por dois algarismos.

Os 20% mais ricos da população mundial consumiam 86% de todos os serviços e produtos. Os 20% mais pobres consumiam apenas 1,3%. Os EUA eram 5% da população mundial e utilizavam 25% dos recursos mundiais. Poderíamos ignorar que o crescimento econômico e social, da forma como acontecia, promovia o acúmulo de capital, de modo excludente e com impactos ambientais irreparáveis?

Em 1960, uma cidade brasileira símbolo do desenvolvimento econômico contava com seis livrarias e uma academia de ginástica. Nos idos de vinte, dispunha de mais de sessenta academias de ginástica e só três livrarias. A mesma cidade registava um índice significativo de endividamento dos jovens.

Urgia que os educadores se interrogassem sobre qual seria a relação entre educação e vida sustentável. Ensinávamos os nossos alunos a prevenir a obesidade mórbida, ou a distinguir música de lixo sonoro? Ajudávamos os jovens a defenderem-se da febre consumista? Contribuíamos para que tivessem uma boa qualidade de vida?

Insistindo no óbvio, vos deixo com uma derradeira pergunta: para que houvesse boa qualidade de vida, não seria necessária… uma boa educação?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXXVII)

Tapera, 22 de dezembro de 2040

“O correr da vida embrulha tudo. Vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. Dizia-nos Guimarães Rosa que a Vida requeria coragem. E coragem foi o que não faltou a quem viria a transformar as suas práticas escolares, no dezembro de há vinte anos – uma nova construção social de educação emergia das cinzas de um ano que nunca existiu.

As escolas careciam de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica clara, baseada no saber cuidar e conviver. Os projetos humanos dos idos de vinte requeriam o abandono de estereótipos e preconceitos, exigiam que se transformasse uma escola obsoleta numa escola que a todos e a cada qual desse oportunidades de ser e de aprender, que praticasse “educação integral”.

Anísio Teixeira, a maior referência do “Currículo em Movimento” concebia a ideia de uma educação integral, onde se acolhesse toda a amplitude do ser e se usasse como matéria prima a própria vida:

Se o nosso interesse é pela vida, aprender significa adquirir um novo modo de agir. Aprende-se através da reconstrução da experiência. Toda aprendizagem deve ser integrada à vida, ou seja, adquirida em uma experiência real de vida”.

Uma portaria publicada pela secretaria de educação, em 2009, estabelecia diretrizes que possibilitavam a ampliação de tempos, espaços e oportunidades educacionais. Não se tratava apenas de lutar pela melhoria da educação, mas de fazer desse processo uma estratégia para a melhoria da vida das pessoas. Uma nova forma de fazer educação era pensada a partir do contexto da comunidade onde a aprendizagem ocorria, na medida em que transformava positivamente a sua realidade socioambiental.

Numa pesquisa, que coordenei no IBICT, verifiquei que o conceito de comunidade era diverso e difuso, assim como a capacidade da escola de estabelecer ações efetivas com o seu entorno. Para os entrevistados, o fato de a escola acolher alunos de realidades territoriais distintas, não próximas da escola, dificultava o sentido de pertencimento dos alunos ao contexto territorial e impossibilitava a interação da escola com a comunidade de origem dos alunos. A relação entre escola e comunidade mostrava-se precária. A participação das famílias acontecia, quase exclusivamente, em escassas reuniões formais.

Em finais de 2020, um cenário de inovação viria a substituir a velha política educacional praticada pela secretaria de educação e que muito dano provocou. 2021 seria o ano de implantação de protótipos de comunidade de aprendizagem estruturados numa rede. Núcleos familiares se organizaram em círculos de vizinhança, nos quais a aprendizagem presencial – em pequenas aglomerações – se articulava com a aprendizagem por tutoria remota. No decorrer de 2021, esses núcleos de projeto deram origem a “turmas-piloto”, que transmutaram a prática de muitas escolas.

Porque escolas são pessoas, as comunidades eram feitas de pessoas, que participavam na produção conjunta de conhecimento. Aprendia-se na intersubjetividade, numa tripla dimensão curricular e no contexto de uma multiplicidade de espaços. Entre os edifícios das escolas, das igrejas, das habitações, das associações, das empresas, ou nos espaços de lazer, estabelecia-se uma interação humana capaz de concretizar os ODS e de dar sentido ao quotidiano das pessoas, influenciando positivamente as suas trajetórias de vida. Num projeto educacional inovador, os objetivos educacionais da Constituição se concretizavam e o ECA era (finalmente!) respeitado.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXXVI)

Mato Castelhano, 21 de dezembro de 2040

Todos os avós são contadores de estórias. Por isso, contar-vos-ei as estórias da criação de comunidades, de outros “causos” e projetos. Antes, precisarei falar de lealdade, condição sine qua non de qualquer projeto. Como qualquer outro valor, com gente leal e no exercício da lealdade a aprendi.

Diz-nos o dicionário que lealdade é qualidade, ação ou procedimento de quem é honesto, fiel a compromissos. Se os jovens dos idos de vinte estavam atentos ao exemplo de vida dos adultos e aos valores que eles traduziam, se através do exemplo não fossemos leais, abriríamos espaço para desenvolvimento de contravalores.

Terei de vos contar uma manifestação de deslealdade de que foi vítima a escola a que o vosso avô deu trinta anos de vida. Mais uma vez, metaforicamente, como a contei à Alice, vai para quarenta anos. Não referirei os nomes dos desleais autores, pois ainda estão vivos e já lhes perdoei.

A fama da escola das aves chegou longe. Ainda que muitas outras escolas de voo não acreditassem no novo método de voar, vinham pássaros de toda a Terra, em longas migrações, só para verem se era tal como se contava. Dos olivais aos montados, das serranias aos vales profundos, acorria à escola das aves uma grande diversidade de pássaros e de intenções. Os pássaros que na fala das gaivotas se reviam delas se aproximavam. E, se alguns as desdenhavam, outros se lhes juntavam: o rouxinol com o seu maravilhoso trinado, o melro saltitante, o beija-flor de voo gracioso…

Mas, certo dia, vinda do outro lado do rio, caiu sobre a escola das aves uma praga de maldade. Algumas negrelas urdiram uma sórdida conspiração, parasitaram saberes e imitaram o canto de outros pássaros, para lhes roubar o futuro. As gaivotas deixaram-se enganar pelo seu encantatório canto. Espantaram-se quando as negrelas recusaram elevar a alma à altura do sonho, quando as negrelas decidiram trocar a liberdade pela proteção dos galhos velhos da densa vegetação das margens de charcos e lamaçais.

Por tudo ter sido tão súbito e surpreendente, as gaivotas ficaram indefesas perante os ataques que se seguiram. Aperceberam-se de quão frágeis são os espaços de liberdade. Aves sem cuidados, foram presas fáceis para as traiçoeiras arremetidas de predadores. Os ares ficaram empestados por grifos instigados pelo bando de negrelas, que deixaram atrás do si um rasto de destruição. Não passou muito tempo até que os ventos trouxessem do outro lado do rio ecos de infâmias. Atreveram-se mesmo a publicar falsidades nos jornais da passarada, pois ignoravam que a ignorância não é pecado – pecado é não querer saber.

Não creias, querida Alice, que na História dos pássaros sejam raros episódios tão tristes como o que acabo de narrar. Nem creias tampouco que o mal possa alguma vez triunfar. Na História dos homens, houve um Galileu que foi caluniado e perseguido pela Inquisição, só porque afirmava que a Terra girava em volta do Sol. E houve outro galileu caluniado e perseguido, só porque transgredia por amor e anunciava novos tempos. Porém, até na morte ele triunfou.

Quando vos contar as estórias dos idos de vinte, ireis perceber que a história não se repete, mas que essas estórias também falarão de lealdade e de deslealdades.

O antídoto da deslealdade é a esperança. Tudo o que é justo se ergue das cinzas, como a Fénix. As gaivotas da nossa história continuaram a sobrevoar mares longínquos em busca de novos sóis, rumaram ao sul, animadas da coragem que permite reconstruir ninhos devassados, envolvidas numa verdade tranquila, acima da espuma dos dias e de marés negras.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXXV)

Gramado, 20 de dezembro de 2040

Num dos seus sermões, o Padre Vieira assim se pronunciava: “Quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, qual será a causa desta corrupção? Ou é porque os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber”.

Desistindo de convencer os homens, Vieira dirigiu os seus sermões para seres mais sensíveis, os peixes, por serem seres alheios falsidades e renúncias dos homens. Aos peixes, discretas testemunhas da corrupção de costumes praticada por aqueles que pela terra iam cumprindo os seus dias e que das injustiças não traduziam consciência.

Escutemo-lo: “Ou é porque os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem”. Ou – poderia acrescentar, séculos depois – porque andavam tão distraídos nas suas lides de ganhar a vida, que a perdiam. Ou por pressentirem que da corajosa denúncia da corrupção poderia advir nefasta consequência para si e para os seus.

Nos idos de vinte, assistíamos ao uso e abuso do poder. O património comum era usado em favor de uns poucos, em atos ilícitos, que quedavam impunes, não sendo raro que os suspeitos autores fossem considerados pessoas de bem. Convivíamos com um descarado tráfico de influências, víamos o erário púbico ser defenestrado. O respeito pela pessoa humana e de justiça eram conceitos deturpados, banalizados.

Bento XVI dizia que os cristãos não deveriam respeitar leis injustas. Mas, num país que contava mais de um milhão de leis, a única lei que se cumpria sem exceção parecia ser… a da gravidadeNuma época de injustiças como a que nos coube viver, fazíamos a nossa parte, lançávamos luz sobre os males de que o mundo padecia, para que fossem abertos rasgões de luz numa cortina de escuridão, sob a qual prosperavam ladrões e tiranos. Clamávamos por justiça, onde quer que os nossos atos pudessem promovê-la, atenuando a crise da sua ausência. Urgia debelar o medo, esse disfarce usado quando se fazia o que sempre se fez, como se nada de indigno tivesse acontecido.Diz-nos o dicionário que valor (do latim valôre) é qualidade de quem pratica atos extraordinários e, eticamente, um princípio passível de orientar a ação humana. Se assim erar, conviria seguir o preceito do Dalai Lama:

“Precisamos ensinar, do jardim de infância até a faculdade, que a moralidade é o caminho da felicidade”.

O sistema educacional moderno prestava atenção ao desenvolvimento do cérebro, esquecendo o desenvolvimento moral. Se a escola não era o primeiro lugar para se educar o indivíduo, também não deveria ser o primeiro lugar de o deseducar, mas um lugar e tempo de aprendizagem de valores.

Quando, no quadro de uma reorganização curricular, se instituiu “uma hora semanal de educação para a cidadania”, eu questionei os autores da proposta: por que razão não deveriam ser as restantes horas de “educação na cidadania”? Quem nunca viu uma criança a furar a fila da merenda? Quem nunca viu a família dessa criança a jogar lixo na rua e a entupir os bueiros? Até que ponto a escola apenas promoveria uma inútil acumulação de informação, demitindo-se da função de educar?

Boff dizia que a crise que nos afetava não era uma mera crise cíclica e que uma nova ordem mundial se mostrava necessária, um novo modo de habitar a Terra. E Tourraine lançava um sério alerta: “Ou a crise acelera a formação de uma nova sociedade, ou vira um tsunami, que poderá arrasar tudo pela frente, pondo em perigo a nossa própria existência no planeta”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXXIV)

São Valentim do Sul, 19 de dezembro de 2040

Muito tempo atrás, o Guardian publicou um estudo realizado na London School of Economics, no qual se defendia que o principal objetivo das escolas deveria ser o de ajudar a criar pessoas bondosas e felizes. O estudo recomendava que se intensificasse a educação moral dos jovens, mostrando-lhes que a felicidade não se alcançava quando se concebia o mundo como objeto de satisfação pessoal, mas quando existia preocupação pelo bem-estar do próximo.

Um inquérito realizado junto de pais de alunos de escolas de Belo Horizonte confirmava a conclusão desse estudo. Inquiridos sobre o que mais desejavam que a escola desse aos seus filhos, os pais responderam:

“Mais do que aprender conteúdos, que também é preciso aprender, queremos que os nossos filhos sejam felizes na escola”.

A resposta majoritária só surpreenderia quem não conhecesse, por dentro, as escolas que ainda tínhamos. Nelas reinava a obsessão por uma competitividade que deteriorava a relação e produzia solidão, que o mesmo é dizer, infelicidade. Em contraste com o desejo explicitado pelos pais dos alunos, os projetos político-pedagógicos raramente referiam a felicidade como valor, ou objetivo a alcançar. E as práticas predominantes iam na contramão desse desiderato.

Urgia converter as nossas escolas em espaços de bem-estar, onde não se fragmentasse a realidade, nem se banalizasse gestos de humanidade, num ambiente caracterizado pela serenidade, pelo cuidar. Numa relação de um Eu com um Tu, na qual o professor fosse tão autêntico quanto fosse possível e o Tu não fosse tomado por mero objeto.

Infelizmente, muitos pais agravavam ainda mais os efeitos de uma escola desumanizada, quando convenciam a prole de que a felicidade era um direito adquirido e de que os filhos de tudo eram merecedores sem esforço. Num tempo de inflação hedonista, tornava-se premente a tarefa de aprender a saber lidar com frustrações pessoais.

São de Pestalozzi estas palavras: “O meu coração estava preso às crianças, a sua felicidade era a minha felicidade – elas deviam ler isso na minha fronte, perceber isso nos meus lábios, a cada instante do dia”. E Sopelsa contrapõe: “dificilmente encontramos uma criança que não anseie entrar na escola, cheia de sonhos e fantasias. Mas a maioria das crianças sente a escola como algo que oprime, ridiculariza e discrimina”.

Atingimos um estado de espírito, que pode ser considerado de felicidade, quando aliamos realização pessoal à aprendizagem das coisas, em comum concretizada – a minha realização é realização com os outros. Felicidade é fazer amigos, dar-se sem medida, aceitar e ser aceite, viver em harmonia consigo e com os outros.

“Vamos fazer uma escola feliz” foi o nome que as crianças deram ao primeiro jornal escolar da Escola da Ponte. Com os alunos, compreendemos que havia muitos modos de fazer escolas felizes.

O Nelson chegava à escola pontualmente atrasado. Naquele dia, somente se dignou chegar no fim da manhã. Eu quis saber a razão de tamanho atraso e o Nelson esclareceu:

Olha, professor, nesta noite, ninguém conseguiu dormir na minha casa. Os ratos roeram uma orelha do meu irmão mais pequenino. Ele estava cheio de sangue, gritou muito, e a minha mãe foi com ele para o hospital. Eu tive de cuidar dos meus irmãos novinhos, até ela voltar.

Mas por que não ficaste em casa, a descansar? Por que vieste para a escola, amigo Nelson? – perguntei.

Olha, professor, eu vim porque, quando venho para a escola, pelo caminho, sinto uma coisa cá dentro de mim…  Professor, o que eu sinto cá dentro de mim parece mesmo… alegria!

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXXIII)

Farroupilha, 18 de dezembro de 2040

Na entrada de um hotel, li este dístico: “Caro hóspede, devido à triste estatística de três ou quatro toalhas extraviadas por mês, estamos intensificando a revista após o fechamento da sua conta”. O absurdo virara instituição, o desrespeito pela pessoa humana banalizara-se. O Brasil estava imerso numa profunda crise moral.

Uma escola brasileira, que enviava deveres de casa através da internet, prometeu que aqueles alunos que realizassem todas as tarefas seriam recompensados com um ponto extra na média do bimestre. A “inovação” foi um sucesso enquanto durou. Cessou, quando um professor descobriu que as respostas constavam de um site de relacionamento criado por uma aluna. A criativa aluna foi ameaçada e instada a retirar as respostas do site.

Os efeitos colaterais da velha escola se faziam sentir. Vivia-se à sombra de falsas moralidades, sutilmente se fomentava a corrupção dos costumes. E – Pasme-se! – contrariamente ao que o senso comum tradicionalmente assumia, os escândalos eram frequentes em períodos de ditadura. Se de mais espaço dispusesse, dar-vos-ia a conhecer muitos exemplos. Porém, não quero gastar muitas linhas com lixo e apenas evocarei o do “Ballet Rose”, divulgado vai para mais de setenta anos.

Como já o velho Platão nos avisava, é curta a distância entre a corrupção moral e a tirania. Subprodutos da velha educação, guardiães de “bons costumes” que se reclamavam moralistas eram desmascarados pelo jornal inglês “Telegraph”. Altas figuras do governo de Salazar e da alta sociedade portuguesa estavam envolvidos num escândalo de abuso sexual de menores. Gente da alta sociedade, sustentáculos do regime ditatorial, tinham envolvido crianças de tenra idade em orgias. Inacreditável, mas real!

No final do ano que nunca existiu, a comunicação social dava notícia de nobres gestos. Numa cidade da Bélgica, os moradores de uma rua inteira decidiram aprender a linguagem de sinais, para que um vizinho surdo, uma criança de  seis  anos de idade pudesse comunicar. Entretanto, nos antípodas das boas notícias, o New York Times informava que  o site com mais visitas da Netflix estava infestado com material de exploração e agressão a crianças e mulheres, disseminando vídeos de pornografia infantil e de estupros.

No 2020, que nunca existiu, assomava à superfície do pântano social, situações de duvidosa moral e puritanismo barato. No início da década de vinte, vivíamos o caos de uma sociedade hedonista, feita de vícios privados e públicas virtudes. A Internet, como se fora um “big brother” generalizado, agredia-nos com boçalidade:

“G. exibe barriga sarada em biquíni e web exalta: ‘Que corpo!”. “T. exibe curvas em foto no banheiro, sob o olhar do marido”. “M. posa com body nude e exibe marca de biquíni em decote. Fotos!” “Dançarina posou durante momento de depilação”. “P. esbanja sensualidade e mostra corpão, a bordo, de lingerie”. “S. publica foto nua e impressiona internautas.

Vos garanto que extraí estas “pérolas de jornalismo” da pen drive de que vos falei numa cartinha, à mistura com notícias dos idos de vinte.

Na contramão da barbárie, novos arranjos sociais emergiam do caos. Marginal ao exercício de podres poderes, surgia um movimento de vida digna, contrapondo à amoralidade vigente uma moralidade anunciada pelos novos formatos de uma nova escola.

Uma nova construção social para uma “nova normalidade” surgia. A crise moral viria a ser civicamente debelada, mas não através da educação hegemonicamente praticada em 2020. Outra educação era possível.

 

Por: José Pacheco

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