Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXCVII)

Ereira, 2 de novembro de 2041

A “turma do lixo” era formada por alunos, que não tinham conseguido aprender a ler. Perguntei-lhes por que não tinham aprendido.

“As professoras que tivemos ensinavam bem. A gente é que não tem cabeça para ler. No ano passado, a senhora professora até disse que nós éramos uns burros.”

“Dizei-me como as professoras ensinavam.”

“Era assim… Todas ensinaram o a e i o u. E nós fizemos carreirinhas de as, de es, is…”

“E… depois?”

“Depois, davam a lição do p, a lição do t e a lição do v. Do livro. Está a entender?”

“Sim. Estou.”

“E nós juntávamos: pa, pe, pi, ta, te, ti… va, ve, vi, o pipi, o pato, o titi e o pópó, o vovô viu a uva…”

Vi-me numa situação delicada. Até àquela altura, eu sempre ensinara pelo “método fônico”, o mesmo que as anteriores professoras da turma tinham utilizado. Era certo que, se continuasse a ensinar a ler do mesmo modo, aqueles jovens estariam destinados à educação de adultos ou marcados pelo estigma do analfabetismo. Que fazer?

Um dilema se impôs. Num cruzamento da minha vida profissional, dois caminhos se abriram: modificar a metodologia da alfabetização, ou… abandonar a profissão de professor. Optei por tomar a decisão ética de mudar. Nisso não tive qualquer mérito. Mas, mais tarde, essa decisão se traduziria em, não só mudar o modo de ensinar a ler e a escrever, mas de fazer escola.

Fui aprender a ensinar a ler. Dos silábicos “ti-jo-lo, tu-já-lê” ou “das 28 palavras” ao “método natural de leitura do Freinet”, aprendi mais de vinte metodologias. Com máquina de escrever e cartolina, fabriquei os materiais necessários. Apercebendo-me de que, quando os jovens chegavam à escola, já sabiam ler (por exemplo, palavras como Big Brother, Mcdonalds, Coca-Cola, Toyota, Rá-Tim-Bum…)  aprendi a fazer o levantamento do repertório linguístico dos alunos. Muito antes do Gardner, explorei diferentes “estilos de inteligência”.

No tempo de um isolamento político imposto pela ditadura, não sabia que, no sul, uma senhora chamada Emília Ferrero formara um grupo de pesquisa e publicara uma tese de doutorado sobre alfabetização. Sem saber que o Piaget existia, apenas com a intuição pedagógica, que Deus me deu e muito antes da Ferrero, me apercebi de que a capacidade de diferenciar ou reconhecer sons e sinais, ou a leitura de palavras simples, não eram suficientes para modificar o esquema de assimilação das crianças, promovendo aprendizagem. Seria necessário que a criança compreendesse o sentido do que fazia, que experimentasse e construísse conhecimento.

Sem o saber, eu entrava em meandros construtivistas e socioconstrutivistas. O conhecimento era construído por meio de experiências, que eu lhes facultava. Aqueles jovens construíam interpretações pessoais do mundo, num processo ativo de construção de significados. E tudo aprendiam solidariamente. Começava, aí, na solidariedade, a gênese da matriz axiológica do que mais tarde viria a ser… a Escola da Ponte. E cada qual no seu ritmo.

Aqueles jovens, nos seus sete aninhos, tinham chegado à escola sabendo ler. Quando os encontrei, já levavam sete anos de desaprendizagem, eram tratados como “burros”, estavam a um passo de sair da escola na condição de analfabetos. Ao compreender que eles não tinham “dificuldades de aprendizagem” e que eu padecia de dificuldades de ensinagem, conseguimos – exatamente, no plural, porque sozinho, nunca o conseguiria – em equipe, com o “quanto baste” de amor e intuição, besteirando e acertando, aqueles jovens se alfabetizaram.

Por que vos conto tudo isto?

Estou certo de que sabereis a resposta.

Por: José Pacheco

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