Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXII)

Santo Isidro de Pegões, 19 de novembro de 2041

Num dos novembros dos anos oitenta, um vizinho bateu-me à porta, com um envelope na mão, em demanda de “correção, se faz favor, senhor professor, que eu sou quase analfabeto”. 

Pediu-me que colocasse a pontuação numas cartas que escrevia a um seu compadre emigrado na Alemanha. Isto acontecia desde o dia em que um “idiota com canudo” – ou “pessoa de vistas curtas, apesar de se dizer um doutor”, conforme as designou o compadre – maldosamente, criticou a escrita sem pontuação por ele adoptada. 

Não tive coragem para macular a carta com alterações conformes à arte de bem pontuar. Se a estas e a outras liberdades se entregara o José galardoado com o Nobel da Literatura, por que não se permitia que o compadre desse largas à inovação? E o Habermas que me perdoasse, mas o estilo adoptado pelo compadre até conseguia imprimir um cunho pós-moderno ao texto. 

No pressuposto de que o compadre também me perdoaria a inconfidência, aqui vos deixo alguns excertos. 

“(…) Porque até lhe tinham dito que a escola onde meteu o moço no ano passado era das melhores e que neste ano aparece no fundo da tabela e até uma senhora que parece que é doutora escreveu nos jornais que o sistema não presta e veja lá ó compadre se ela é mesmo doutora como diz e não tem confiança como é que a gente a há-de ter inda pra mais está aflita de os catraios não poderem ir para as universidades da europa onde o compadre mora que ela até falou na Heidelberga acho que é assim que se escreve que é aí pertinho e por aqui eu já nem sei se deva pôr o meu ganapo na universidade dos pobres e remediados onde ainda me fica um gandulo ou se o meta numa particular que me vai custar os olhos da cara mas onde como disse a doutora mesmo os que são uma nódoa saem doutores e como uma desgraça nunca vem só o compadre neca ficou de cama já vai para uma semana por via de uma discussão com o toino beato que é um vizinho temente a deus e respeitador das autoridades mas também é um venenoso que já quando o catraio andava no ciclo e tirava mais quatros que o filho do neca entesava-se e atirava que as escolas não tinham culpa da estupidez dos filhos dos necas olhe compadre foi uma discussão do caraças e o neca até atirou com a do filho do toino que quando veio embora do seminário já trazia vantagem como o benfica nos ranquingues dos futebóis e que houve escolas que disseram que foram prejudicadas pelos alunos da consulta externa que foram esses externos que as puseram nos últimos lugares e a gente ainda vai ir ver os ranquingues dos hospitais que curam mais doentes e dos lares da terceira idade que matam menos velhinhos e por aí adiante que a gente não pode ficar ignorante toda a vida que eu sei é que o meu ganapo me vai acabar este ano os estudos e ó pai tu nem penses que eu cá precisava de mais de vinte valores e os dezanoves viste-os e os senhores do ministério pensam que a gente somos todos uns analfabetos e agora estão sempre a malhar nuns senhores das ciências de educação ou lá o que é que dizem que os exames não servem para nada e um vizinho o zeca bife disse que é verdade que meteu uma coisa que se chama recurso e vai-se a ver o catraio do vizinho passou de 14 para 20 de modos que a gente andamos cada vez mais baralhados e também veio um senhor doutor explicar que as notas era conforme os pobrezinhos de cada concelho e coisa e tal e a gente ficou a perceber o mesmo e adei vossemecê nem sabe a sorte que teve de ir ganhar a vida nas alemanhas.” 

Vox populi… Se nos abstrairmos do seu peculiar estilo, o compadre até conseguia ser bem mais explícito do que certos autores de teses, que não iam além de má literatura de cordel e de ficção científica.

 

Por: José Pacheco

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